Crise sistémica global
A União Europeia na encruzilhada em 2010:
cúmplice ou vítima do afundamento do dólar?
As grandes tendências das fase 4 e 5 da crise sistémica global
(fase de decantação e fase de deslocação
geopolítica mundial) a cada dia revelam-se um pouco mais
[1]
. Doravante todo o mundo compreende que os Estados Unidos estão
capturados numa espiral incontrolável que associa a insolvência
generalizada do país com a incompetência flagrante das elites
estado-unidenses para por em execução as soluções
necessárias. A anunciada cessação de pagamentos dos
Estados Unidos já está em curso como é ilustrado pela
queda do dólar e pela fuga dos capitais para fora do país: apenas
o nome do liquidador e o reconhecimento da falência ainda não
são conhecidos, mas isso não deverá tardar. E, como
espelho do seu líder, o Ocidente, de que o Japão se afasta um
pouco mais a cada dia com a execução das suas novas
orientações políticas, económicas, financeiras e
diplomáticas
[2]
, já está em plena deliquescência tal como a NATO no
Afeganistão
[3]
.
Assim, segundo o LEAP/E2020, o ano de 2010 vai colocar a União Europeia
no cerne de quatro constrangimentos estratégicos que lhe vão
impor escolhas urgentes num contexto de colapso acelerado do campo ocidental,
que se poderia simplificar resumindo-o ao destino do US dólar. Estas
escolhas definirão duradouramente o papel dos europeus no mundo
após a crise. Quer se afirmem como actores-chave da
estruturação do mundo de amanha afirmando a sua própria
visão do futuro e procurando parceiros
ad hoc
sem exclusividade, quer se contentem em serem vítimas aquiescentes do
naufrágio do Ocidente seguindo a cegueira de Washington na sua descida
aos infernos. No primeiro caso, a UE assumiria plenamente a sua finalidade
histórica de dar outra vez aos europeus o domínio do seu destino
colectivo; nos segundo, revelar-se-ia ser apenas o pingente ocidental do
Comecon
[4]
, apêndice sem futuro da superpotência tutelar.
As tendências pesadas já são identificáveis e
vão, segundo a nossa equipe, empurrar fortemente a Europa para
direcções antecipáveis a partir deste momento. Dito isto,
a fraqueza intelectual da actual liderança política europeia
(União e Estados membros em conjunto) obriga a modular os
prognósticos.
Em qualquer caso, sendo a UE a primeira potência económica e
comercial mundial
[5]
, as consequências destas evoluções
terão um impacto directo e rápido no mundo inteiro sobre
numerosos factores económicos, financeiros e geopolíticos
essenciais: taxas de câmbio, preço das matérias-primas,
crescimento, sistema sociais, equilíbrio orçamentais,
governação mundial.
Neste GEAB nº 38, além das suas recomendações
estratégicas e operacionais para enfrentar a crise e das suas
antecipações 2009-2014 dos riscos-país face à
crise, a nossa equipe analisa os quatro constrangimentos estratégicos
aos quais a UE terá, a partir de 2010, de dar respostas de
consequências pesadas, a saber:
1- Enfrentar a ruptura do sistema monetário fundado sobre o dólar
e evitar deparar-se sem recursos diante da perspectiva de 1 EUR = 2 USD
2- Evitar a explosão dos défices orçamentais à moda
americana e britânica
3- Responder ao agravamento da crise Irão/Israel/EUA e da guerra no
Afeganistão definindo uma posição especificamente europeia
4- Aprender a trabalhar de modo independente e construtivo com os novos actores
chave do mundo após a crise: China, Índia, Brasil e
Rússia, nomeadamente.
Com efeito, em todos estes pontos cruciais para os europeus e o resto do mundo,
não é concebível esperar para além de 2011. Para
perceber isto basta imaginar que os europeus permaneçam colectivamente
passivos face a estes quatro constrangimentos para se darem conta da
impossibilidade de esperar para além de 2010:
1- Assim, se os europeus se contentarem em olhar o dólar afundar, as
suas exportações para os Estados Unidos e numerosos outros
países com moedas ligadas ao US dólar daqui a um vão estar
totalmente sinistradas, agravando a crise económica e social na UE.
2- Se os europeus, e sobretudo os dirigentes da zona euro, deixarem correr os
défices públicos, à semelhança do que faz a
França, a zona euro vai ser submetidas muito rapidamente a conflitos de
interesses brutais entre europeus do Norte e europeus do Sul.
3- Se os dirigentes europeus se contentarem em seguir o eixo Israel/Washington
na questão do nuclear iraniano e de ajustar o passo à
administração Obama para o Afeganistão, entrarão
num processo de confrontação com as suas opiniões
públicas para a qual não estão nem preparados nem em
posição de força, o que garante instabilidade
política grave no seio de cada um dos Estados membros.
4- Se os europeus se recusarem a discutir de maneira independente acerca dos
seus interesses comuns eventuais com os chineses, os indianos, os brasileiros e
os russos, privar-se-ão muito simplesmente de qualquer meio de fazer
valer a sua visão das coisas no que se refere aos três
constrangimentos anteriores uma vez que estes países representam hoje as
potências sem as quais nada de decisivo pode ser executado
[6]
.
De acordo com os nossos investigadores, é certo portanto que 2010
será um ano crucial para os europeus e o seu futuro colectivo. A
posição da UE, e mais particularmente da zona euro, face ao
dólar, vai ser determinante para os europeus, assim como para o
dólar e a ordem monetária mundial. Não que os europeus
tenham escolhido o ano (2010) ou o assunto (o dólar) (os dirigentes da
Eurolândia prefeririam certamente continuar o seu "business as
usual"), mas a História é dotada de uma notável
ironia que daqui em diante põe os "aliados" dos Estados Unidos
encostados ao muro: afundar agora com Washington ou sair sem Washington.
Ora, tal como o desenrolar do conjunto dos fenómenos da crise
sistémica global em curso, o tempo experimenta uma fonte
contracção: tudo anda muito rápido. A este respeito,
pode-se aliás manifestar espanto por ver os "peritos" de todo
género apresentarem como excêntrico o artigo de Robert Fisk
"O crepúsculo do dólar"
[7]
, relatando que russos,
chineses, franceses, japoneses e países petrolíferos do Golfo
discutiriam uma cotação dos preços do petróleo numa
outra divisa diferente do US dólar daqui a nove ano. Para o LEAP/E2020,
o único elemento surpreendente desta informação refere-se
ao prazo de nove ano. Esta evolução acontecerá bem mais
rapidamente, daqui a dois anos, sob a pressão dos acontecimentos.
Recordemos o mundo de há nove anos para compreender a
extraordinária aceleração da História
constituída por esta crise: há nove anos, G. W. Bush acabava de
ser eleito; o 11 de Setembro não iria ocorrer senão dois anos
mais tarde; os Estados Unidos ainda não haviam afundado no
Afeganistão e no Iraque; o Katrina ainda não havia arrasado Nova
Orleans; um euro valia 0,9 dólar; a Rússia não era
senão um país à deriva; a UE acreditava elaborar uma
constituição popular; a China era um actor internacional fraco; a
economia estado-unidense era apresentada como exemplo para o mundo e o Reino
Unido dava a lição ultra-liberal para toda a Europa; os bancos de
investimento da Wall Street pareciam invencíveis. ... a lista poderia
continuar longamente. O que chama a atenção é que cada um
destes acontecimentos teria parecido impensável à maior parte dos
"peritos" apenas algumas semanas antes que decorressem. Pensar
então que serão precisos nove anos para pagar o petróleo
em outra coisa diferente do dólar, moeda que não se mantém
senã pela vontade (cada vez mais má) dos bancos centrais em
comprar, comprar e ainda comprar esta divisa para evitar que ela se afunde,
é francamente fazer prova de uma ingenuidade histórica espantosa.
Já no segundo trimestre, os bancos centrais do mundo inteiro
começaram a por fim à sua acumulação de US
dólar (o dólar tem representado apenas 37% das suas compras de
divisas ao passo que representa 63% das reservas)
[8]
. Já em Julho de 2009, foram US$100 mil milhões de capitais
líquidos que deixaram os Estados Unidos
[9]
, e isto no momento mesmo em que o país pretende conseguir que entre nas
suas caixas mais de US$100 mil milhões por mês para financiar o
défice federal (sem falar dos outros défices públicos).
Neste quase, apresenta-se uma questão essencial: que realmente compra
estes 100 mil milhões de Títulos do Tesouro dos EUA a cada
mês? Certamente não os cidadãos americanos que estão
endividados para além do razoável não dispõem mais
nem de poupança nem de crédito. Certamente não os
operadores privados estrangeiros que a cada dia mais se inquietam com o estado
de saúde dos Estados Unidos. Certamente não tão pouco os
bancos centrais chinês, russo, japonês que tentam por um lado
cessar as suas compras de títulos a longo prazo e, por outro,
começar a vender os T-Bonds ou a transformar os seus títulos a
longo prazo em títulos a curto prazo. Estranhamente, unicamente o Banco
da Inglaterra ainda parece ter este apetite
[10]
. Assim, não restam mais do que os
"usual suspects",
a saber o Fed e a sua rede de
"primary dealers",
ou seja, a "máquina de imprimir" de uma amplitude muito mais
importante do que aquela reconhecida pelo Fed com a sua política oficial
de
"quantitative easing".
Com o anúncio de orçamentos federais com défices de
US$1000 mil milhões por ano durante a próxima década
[11]
, que honestamente pode pensar que o resto do mundo vai aceitar durante ainda
mais nove anos ser pago com moeda de macaco? Talvez aqueles que em Setembro
último pensavam ser impossível o colapso da Wall Street? Ou os
que acreditavam que Obama iria mudar a América e o mundo
[12]
? Ou os que persistem em acreditar que o consumidor americano vai renascer das
suas cinzas e alimentar a "retomada impossível"
[13]
?
Ao contrário do ano passado, a actual recaída do dólar
não beneficiará de um alívio inesperado devido ao
pânico. Desta vez, a divisa americana faz figura de espantalho e
não mais de refúgio, pois o desligamento do resto do mundo
(Ásia, América do Sul e Europa em particular) está em
acção
[14]
. É igualmente por isso que 2010 será um ano tão crucial
para os europeus. Se deixarem as evoluções em curso prosseguirem,
é o Euro que se vai tornar uma moeda-refúgio e a sua
cotação abafará a economia europeia. A zona Euro deve
portanto tornar-se mais agressiva e debater com os outros grandes actores
económicos e financeiros a fim de evitar esta situação, a
fim de evitar que o Euro se evapore face ao Yuan, ao Yen e a outras moedas dos
seus parceiros comerciais.
De facto, chegados a este ponto a Europa já não tem realmente
escolha, pois comprar a cada dia milhares de milhões de USD que valem
cada vez menos dado o ritmo crescente em que são criados, não
pode ser política durável
[15]
. E além do mais, aquela que
verdadeiramente dispõe de uma margem de manobra para negociar no FMI
é realmente a UE, tanto para suprimir o direito de veto dos Estados
Unidos como para dar lugar às potências "re-emergentes"
[16]
.
Como acontece muitas vezes, os acontecimentos externos é que
irão impor aos europeus que ajam de maneira unida e voluntarista. Neste
caso, para o LEAP/E2020, o dólar vai ser um dos poderosos
aguilhões à acção europeia no ano de 2010. E a
História, de que a equipe do LEAP/E2020 sublinha sempre que o seu
único "sentido" é o da ironia, prepara-se visivelmente
para dar aos europeus um papel que todo o mundo se preparava para ver
desempenhado pelos chineses...
15/Outubro/2009
Notas:
(1) Ver GEAB anteriores.
(2) Ver GEAB N°37 a este respeito. A mudança radical de
política monetária é em si o golpe mais brutal dado ao
dólar e às compras de Títulos do Tesouro dos EUA por um
"aliado" desde há décadas.
(3) Desde a Holanda à Alemanha ou à Itália, os
países da Aliança envolvidos no conflito afegão evocam
cada vez mais abertamente o seu desejo de deixarem o Afeganistão em
2010, ao passo que o Japão anunciou a cessação do seu
apoio logístico à coligação.
(4) Organização de entreajuda económica do bloco
comunista, dirigida pela URSS, e que foi dissolvida dois anos após a
queda do Muro de Berlim. Fonte: Wikipedia
(5) A UE é igualmente a única dotada de uma moeda que pode
desempenhar um papel de alternativa ao US dólar, enquanto detém
as terceiras reservas mundiais de activos denominados em dólares e as
maiores reservas de ouro do planeta, e tendo um comércio externo pouco
dependente do consumidor americano. Entalada numa situação
indefensável, ela representa um actor extremamente poderoso, tornado
este ano o mais rico do mundo diante da América do Norte. Fonte:
Bloomberg, 15/09/2009
(6) Como bem constatou Barack Obama ao assinalar o fim do G7 e como ilustra o
gráfico abaixo. Com efeito, não só o tandem
China-Índia viu a sua parte do PNB mundial aumentar de aproximadamente
um terço em 10 anos como, além disso, no longo prazo, ponde de
parte os dois últimos século, estes dois países em geral
têm representado cerca de 50% da riqueza mundial. Difícil para os
europeus ignorar este "pormenor duradouro".
(7) Fontes: The Independent, 06/10/2009 e para versões
linguísticas em tradução livre: "Le crépuscule
du Dollar", Contre-Info, 07/10/2009.
(8) Fonte : Bloomberg, 12/10/2009
(9) Fonte : ShockedInvestor, 16/09/2009
(10) Mas dado o estado das finanças públicas britânicas,
isso não pode ser de grande socorro para os Estados Unidos. O partido
conservador parece com efeito desempenhar o papel do FMI com o seu programa de
cortes radicais nas despesas públicas ao passo que Gordon Brown vende as
"jóias de família" do Estado. Fontes: BBC, 06/10/2009 ;
BBC, 12/10/2009
(11) E pode-se supor sem grande temor de engano que estas estimativas
serão muito inferiores à realidade uma vez que se apoiam sobre as
previsões de crescimento do governo federal. Fonte: US Congressional
Budget Office, 08/2009
(12) Visivelmente, restam ainda alguns anos, por exemplo nas neves norueguesas,
dentre aqueles responsáveis pelo Nobel da paz.
(13) Ver GEAB N°37
14) Ver as antecipações dos riscos-país face à
crise neste GEAB N°38.
(15) Foi igualmente uma das mensagens que os cidadãos japoneses quiseram
transmitir ao mudar radicalmente o poder existente em Tóquio há
pouco mais de um mês.
(16) Quando se conhece a História, é com efeito um pouco
difícil chamar a China, a Índia ou a Rússia de
potências "emergentes".
Outros comunicados do GEAB:
Em busca da retomada impossível
Crise sistémica global: O choque acumulado das três "ondas monstruosas" do Verão de 2009
Crise sistémica global: O surrealismo financeiro
Verão de 2009: Confirma-se a ruptura do sistema monetário internacional
Crescem as tensões transatlânticas na véspera do G20
Princípio da fase 5 da crise sistémica global: A deslocação geopolítica mundial
Fase IV da crise sistémica: Começa a sequência da insolvência global
Crise sistémica global: Novo ponto de inflexão em Março de 2009
Fase IV da crise sistémica global: Ruptura do sistema monetário mundial até ao Verão de 2009
Crise sistémica global: Cessação de pagamentos do governo americano no Verão de 2009
Porque manter a previsão da taxa de câmbio Euro-USD a 1,75 no fim de 2008
Julho-Dezembro de 2008: O mundo mergulha no coração da fase de impacto da crise sistémica global
Novo ponto de inflexão da crise sistémica global: Quando a ilusão de que a crise está dominada se desvanece…
Crise sistémica global: Quatro grandes tendências para o periodo 2008-2013
Crise sistémica global: Fim de 2008: Derrocada dos fundos de pensão
Crise sistémica global: Fase de afundamento da economia real dos EUA: Setembro/2008
2008: Fase de pleno impacto global da Muito Grande Depressão dos EUA
Fase de ruptura do sistema financeiro mundial em 2008
Bancos mundiais aspirados para o "buraco negro" da crise financeira: Os quatro factores desencadeadores da grande falência bancária
As sete sequências da fase de impacto da crise sistémica global (2007-2009)
A crise actual explicada em mil palavras
Crise das subprimes: Após o sector financeiro, a próxima vítima será o US dólar
A economia americana entrou em recessão no 1º trimestre de 2007
Crise sistémica global - Abril de 2007: Ponto de inflexão da fase de impacto e entrada em recessão da economia dos EUA
Fase de impacto da crise sistémica global: Os seis aspectos da "Muito grande depressão americana" de 2007
Novembro/2006: Princípio da fase de impacto da crise sistémica global
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Global Europe Anticipation Bulletin.
O original encontra-se em
www.leap2020.eu
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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