Crise sistémica global: O surrealismo financeiro
Junho de 2009: Quando o mundo sai definitivamente do quadro de
referência dos últimos 60 anos
O surrealismo financeiro que terá presidido às
evoluções bursáteis e aos indicadores financeiros e
comentários políticos destes últimos dois meses é o
canto do cisne do quadro de referência no qual o mundo vive desde 1945.
Do mesmo modo que, em Janeiro de 2007, no GEAB nº 11, o LEAP/E2020 havia
descrito a viragem 2006/2007 como caracterizada por um "ruído
estatístico" típico da entrada em recessão e
concebido para por em dúvida os passageiros de que o Titanic estava em
vias de flutuar
[1]
, hoje a nossa equipe considera que este fim de Primavera de 2009 marca a
saída definitiva do referencial utilizado desde há 60 anos pelos
actores económicos, financeiros e políticos mundiais para
efectuar as suas tomadas de decisão, e em particular da sua
versão "simplificada", utilizada maciçamente desde a
queda do bloco comunista em 1989 (o referencial foi então tornado
puramente centrado na América). Para além de todo aspecto
teórico, isto significa concretamente que os indicadores que cada um tem
o hábito de utilizar para as suas decisões de investimento, de
rentabilidade, de localização, de parceria, etc... tornaram-se
obsoletos e que doravante é preciso procurar alhures os índices
pertinentes se se quiser evitar a tomada de decisões desastrosas.
Este fenómeno de obsolescência acentuou-se fortemente desde
há alguns meses sob a pressão de duas tendências:
-
por um lado, as tentativas desesperadas de salvamento do sistema financeiro
mundial, e em particular dos sistemas americano e britânico, de facto
"partiram os instrumentos de navegação" devido a
manipulações de todo o género efectuadas pelos
próprios estabelecimentos financeiros, pelos Estados e pelos bancos
centrais afectados. Dentre estes indicadores enlouquecidos e enlouquecedores,
as bolsas constituem o melhor exemplo. Retornaremos ao assunto mais amplamente
nas recomendações deste GEAB nº 35. E os dois
gráficos abaixo ilustram magistralmente como estes esforços
desesperados não impediram uma grande reviravolta na
classificação dos grandes bancos mundial (foi essencialmente a
partir de 2007 que se encadeou o fim da dominação
histórica americano-britânica desta classificação).
-
por outro lado, as quantidades astronómicas de liquidez injectadas em
um ano no sistema financeiro mundial, e em particular no sistema financeiro
americano, conduziu o conjunto dos actores financeiros e políticos a uma
perda total de contacto com a realidade. De facto, nesta etapa, todos eles
parecem atingidos pelo síndrome da ebriedade das profundezas que
se desencadeia naqueles que são afectados por uma impossibilidade de se
localizarem nas profundidades marítimas, o que os leva a mergulharem
cada vez mais profundamente acreditando de facto subir de volta à
superfície. A ebriedade das profundidades financeiras tem visivelmente
os mesmos efeitos que a da sua homóloga aquática.
Captadores destruídos ou pervertidos, perda do sentido de
orientação dos dirigentes financeiros e políticos, eis os
dois factores-chave que aceleram a saída do sistema internacional para
fora do referencial destas últimas décadas.
Isto é, bem entendido, uma das características de toda crise
sistémica. Pode-se aliás constatar facilmente que o sistema
internacional ao qual estamos habituados assiste ao multiplicar de
acontecimentos ou tendências que saem de quadros de referência
multi-seculares, provando até que ponto esta crise é de uma
natureza sem equivalente na história moderna. E o único meio de
mediar a amplitude dos movimentos em curso é tomar um recuo de
vários séculos. Ao limitar-se às estatísticas de
algumas décadas não se percebe de facto que os pormenores desta
crise sistémica global; não se tem a visão de conjunto.
O LEAP/E2020 citará aqui, como exemplo, três casos mostrando que
vivemos numa época de ruptura como não acontece senão uma
vez a cada dois ou três séculos:
1- Em 2009, a taxa de juros do
Banco da Inglaterra
atingiu o seu mais baixo
nível desde a criação desta venerável
instituição (0,5%), ou seja, desde 1694 (em 315 anos).
2- Em 2009, a
Caisse des Dépôts et Consignations
, braço financeiro do estado francês desde 1816 sob todos os
regimes (reino,
império, república, ...), experimentou a sua primeira perda anual
(em 193 anos)
[2]
3- Em Abril de 2009, a China tornou-se o primeiro parceiro comercial do Brasil,
uma posição que desde séculos antecipa fielmente as
maiores rupturas da liderança mundial. Com efeito, desde que, há
duzentos anos, o Reino Unido pôs fim a três séculos de
hegemonia portuguesa, é apenas a segunda vez que um país acede a
esta posição. Os Estados Unidos haviam efectivamente suplantado o
Reino Unido no princípio dos anos 1930 como primeiro parceiro do Brasil
[3]
.
Não retornaremos aqui à multiplicação das
tendências próprias dos Estados Unidos que saem igualmente dos
referenciais nacionais destes últimos cem anos (além disso, o
país não tem verdadeiramente referencial utilizável para
comparações pertinentes): perda de valor do dólar,
défices públicos, dívida pública acumulada,
défices comerciais acumulados, afundamento do mercado
imobiliário, perdas dos estabelecimentos financeiros, ...
[4]
Mas, bem entendido, nos países no cerne da crise sistémica
global, os exemplos desta natureza são legiões e amplamente
comentados nos números do GEAB desde 2006. É de facto a
multiplicação de países e de zonas afectadas que é
sintomática desta saída do referencial global: se houvesse um
único país afectado ou um único sector aflito, não
se trataria senão de um período fora da norma para os
países ou o sector considerado. Mas hoje, são numerosos
países, no cerne do sistema internacional, e uma multidão de
sectores económicos e financeiros que são afectados
simultaneamente, por esta "saída da estrada multi-secular".
Assim, para concluir esta perspectiva histórica, contentar-nos-emos em
sublinharemos que esta saída de referenciais multi-seculares é
graficamente visível sob a forma de uma curva que, muito simplesmente,
sai do quadro que permitia desde há séculos representar a
evolução do fenómeno ou do valor afectado. E a
tendência para a saída destes quadros de referência
tradicionais acelera-se, afectando um número de sectores e de
países cada vez mais importante. Este fenómeno reforça
automaticamente a perda de significado dos indicadores utilizadores diariamente
ou mensalmente pelas bolsas, pelos governo ou pelos institutos de
estatísticas, e acelera a tomada de consciência generalizada do
facto de que os "indicadores habituais" não permitem mais
compreender, nem mesmo representar, a evolução actual do mundo. O
planeta abordará portanto o Verão de 2009 sem nenhum referencial
fiável disponível.
Naturalmente, cada um é livre para pensar que a variação
mensal de alguns pontos, para mais ou para menos, de tal ou tal indicador
económico ou financeiro, ele próprio amplamente afectado pelas
intervenções múltiplas dos poderes públicos e dos
bancos, é muito mais portador de sentido e de informação
sobre a evolução da crise actual do que estas saídas de
referenciais multi-seculares. Cada um é livre também para
acreditar que aqueles que não haviam previsto nem a crise nem a sua
intensidade estão hoje em condições de saber precisamente
a data do fim.
A nossa equipe aconselha a estes últimos a irem ver (ou rever) o filme
Matrix
e a reflectirem nas consequências da manipulação dos
captadores e indicadores de um ambiente sobre a percepção deste
ambiente. Isto não será inútil pois, à imagem do
Matrix
[5]
, como pormenorizaremos no GEAB nº 36, especial do Verão de
2009, os próximos meses poderão intitular-se "Crisis
Reloaded"
[6]
.
Neste GEAB nº 35 formulamos igualmente os nossos conselhos referentes aos
indicadores que, neste período de transição entre dois
referenciais, estão em condições de fornecer
informações pertinentes sobre a evolução da crise e
do ambiente económico e financeiro.
Os dois outros grandes temas deste número do GEAB do mês de Maio
de 2009 são, por um lado, o fracasso programado dos dois principais
planos de estímulo económico, a saber, os planos americano e
chinês; e, por outro lado, o recurso do Reino Unido ao FMI daqui
até ao fim do Verão de 2009.
Finalmente, em matéria de recomendações, a nossa equipe
antecipa neste GEAB nº 35 a evolução dos principais mercados
imobiliários mundiais, assim como a do mercado de títulos do
tesouro.
15/Maio/2009
Notas
[1] Nossa equipe acrescentava na época: "como em toda
mudança de fase, a passagem pelo ponto zero caracteriza-se pelo que se
pode chamar de "ruído estatístico", que vê os
indicadores apontarem direcções opostas e as medidas darem
resultados contraditórios, com margens de erros doravante superiores ou
iguais às próprias medidas. Na ocasião, para o planeta em
2007, o naufrágio que vai preocupar todo o mundo é o dos Estados
Unidos, que o LEAP/E2020 decidiu chamar a "Muito grande
depressão", por um lado porque o nome "Grande
depressão" já é utilizado para mencionar a crise de
1929 e os anos que se seguiram; por outro porque para o nossos investigadores a
natureza e amplitude do que se vai passar é de uma dimensão
inteiramente diferente". Fonte: GEAB n°11, 15/01/2007
(2) Fonte:
France24
, 16/04/2009
(3) Fonte:
TheLatinAmericanist
, 06/05/2009
(4) Os dirigentes políticos e os peritos continuam a tentar comparar a
crise actual à crise de 1929 como se esta fosse um referencial
inultrapassável. Contudo, nomeadamente nos Estados Unidos, as
tendências em curso ultrapassaram em numerosos sectores as
evoluções que caracterizaram a "Grande
depressão". O LEAP/E2020 recordou igualmente no
GEAB nº 31
que
doravante era preciso procurar referências na grande crise mundial de
1873-1896, ou seja, mais de um século atrás.
(5) Na série dos filmes
Matrix
, os seres humanos vivem num ambiente cuja percepção é
manipulada informaticamente. Eles imaginam-se a viver uma vida faustosa quando
vivem numa miséria negra, mas todas as suas percepções
(vista, audição, olfacto, tacto, gosto) são manipuladas.
(6) À imagem do título do segundo episódio da série
Matrix,
literalmente "Crise recarregada".
Outros comunicados do GEAB:
Verão de 2009: Confirma-se a ruptura do sistema monetário internacional
Crescem as tensões transatlânticas na véspera do G20
Princípio da fase 5 da crise sistémica global: A deslocação geopolítica mundial
Fase IV da crise sistémica: Começa a sequência da insolvência global
Crise sistémica global: Novo ponto de inflexão em Março de 2009
Fase IV da crise sistémica global: Ruptura do sistema monetário mundial até ao Verão de 2009
Crise sistémica global: Cessação de pagamentos do governo americano no Verão de 2009
Porque manter a previsão da taxa de câmbio Euro-USD a 1,75 no fim de 2008
Julho-Dezembro de 2008: O mundo mergulha no coração da fase de impacto da crise sistémica global
Novo ponto de inflexão da crise sistémica global: Quando a ilusão de que a crise está dominada se desvanece…
Crise sistémica global: Quatro grandes tendências para o periodo 2008-2013
Crise sistémica global Fim de 2008: Derrocada dos fundos de pensão
Crise sistémica global Fase de afundamento da economia real dos EUA: Setembro/2008
2008: Fase de pleno impacto global da Muito Grande Depressão dos EUA
Fase de ruptura do sistema financeiro mundial em 2008
Bancos mundiais aspirados para o "buraco negro" da crise financeira: Os quatro factores desencadeadores da grande falência bancária
As sete sequências da fase de impacto da crise sistémica global (2007-2009)
A crise actual explicada em mil palavras
Crise das subprimes: Após o sector financeiro, a próxima vítima será o US dólar
A economia americana entrou em recessão no 1º trimestre de 2007
Crise sistémica global - Abril de 2007: Ponto de inflexão da fase de impacto e entrada em recessão da economia dos EUA
Fase de impacto da crise sistémica global: Os seis aspectos da "Muito grande depressão americana" de 2007
Novembro/2006: Princípio da fase de impacto da crise sistémica global
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Global Europe Anticipation Bulletin.
O original encontra-se em
www.leap2020.eu
Este comunicado encontra-se em
http://resistir.info/
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