O caso da dívida argentina
O que está a acontecer à dívida da Argentina neste momento
é instrutivo para todos. Na década de 1990, quando Carlos Menem
era o presidente, o seu governo ensaiou o que considerava ser uma
brilhante ideia neoliberal. Ele manteve o valor da divisa argentina ligada
(pegged)
ao US dólar (no rácio 1:1) através do denominado sistema
"currency board"
, na esperança de que isto mantivesse alta a "confiança do
investidor" naquele país. O raciocínio era simples: se o
dólar é considerado pelos possuidores de riqueza de todo o mundo
como sendo "tão bom quanto o ouro", então se a divisa
argentina estiver ligada ao dólar tornar-se-ia também
"tão boa quanto o ouro", e nesse caso o capital afluiria
à Argentina.
Assim, se uma divisa ficar ligada ao dólar, então a oferta
monetária interna fica ligada ao montante de haveres em dólar que
o país dispõe. Isto acontece porque se as pessoas quiserem
cambiar da divisa interna para o dólar (e o governo não pode
impedi-las de fazer isso pois minaria toda a ideia do
"currency board"),
então ali devem estar dólares suficientes para dar em troca. O
que isto significa é que se possuidores de riqueza levarem dinheiro para
fora do país, então os haveres em dólar caem e assim o faz
a oferta monetária interna. E o governo não pode simplesmente
imprimir dinheiro, uma vez que, a menos que seja apoiado por haveres em
dólar, o sistema do
currency board
não pode ser sustentado. Uma redução na oferta
monetária, por sua vez que agora se torna completamente sujeita
aos caprichos dos especuladores (se eles pretendem levar moeda para fora ou
não) tem sérios efeitos recessivos na economia real.
Numa tal situação, manter alto o nível da oferta
monetária exige portanto que os dólares sejam tomados emprestados
do exterior, o que significa que o sistema do
"currency board"
exige tomadas de empréstimos quase automáticas para financiar
fugas de capitais da economia (sem qualquer possibilidade de serem feitas
restrições a tais fugas). E além disso, mesmo que
não haja fuga de capital, o sistema
"currency board"
exige que, só para aumentar a oferta monetária interna, o
país tenha de tomar emprestados dólares no exterior, de modo a
serem mantidas reservas de dólares no banco central contra as quais ele
possa aumentar a oferta monetária interna.
ESTUPIDEZ ABSOLUTA
A Argentina acumulou então uma enorme dívida pública, a
qual em 2002 atingiu quase 200 por cento do Produto Interno Bruto. Esta
dívida não se deveu a qualquer comportamento
"perdulário" do governo; ela nem mesmo significou financiar
qualquer despesa. Os dólares eram unicamente para serem mantidos como
reservas ociosas no banco central contra as quais podia ser criada oferta
monetária, ou para reabastecer reservas que haviam minguado devido ao
facto de o capital ser levado para fora do país. O país portanto
acumulou uma enorme dívida para nenhum propósito, devido
inteiramente à absoluta estupidez desta supostamente brilhante ideia
neoliberal, de um sistema
"currency board",
o qual, embora principiado por Carlos Menem (forçado a demitir-se em
1999) foi continuado pelos seus sucessores, até Nestor Kirchner se
tornar presidente em 2003 e acabar com isso.
Uma vez que a Argentina não estava em posição de honrar
toda aquela dívida, Kirchner rejeitou-a
(disowned it);
mas concluiu um acordo de reestruturação da dívida com os
credores respeitante a 90 por cento do total. A Argentina desde então
tem estado a pagar aos credores as quantias acordadas sob este acordo de
reestruturação. Mas em relação a cerca de 10 por
cento da dívida, alguns credores, ao invés de seguirem o acordo
que cobriu os outros 90 por cento, decidiram vender seus haveres aos chamados
"fundos abutre". Trata-se de companhias financeiras que compram
instrumentos de dívida a preços vis e então utilizam todos
os meios conhecidos de artimanhas e chicanas para recuperar quantias muito
maiores da dívida e ganhar assim uma fortuna. No caso da dívida
argentina, o mais importante "fundo abutre" envolvido chama-se
NML Capital
, o qual é subsidiária de uma empresa dirigida por Paul
Singer que é um bilionário e um importante doador para o Partido
Republicano. Tão agressivos são estes "fundos abutres"
que contrataram mercenários para apresar uma fragata argentina enviada
à costa do Gana e tentaram mesmo capturar o avião presidencial
argentino num aeroporto, para mantê-lo como colateral contra a
dívida (o que não é realmente muito diferente de exigir um
pagamento pelo resgate).
É comum estes "fundos abutre" abrirem um processo legal junto
a algum juiz obscuro que não pode distinguir a sua mão direita da
esquerda e, então, insistir em recuperação de
dívida, armados com uma sentença legal favorável lavrada
por esse juiz. Eles localizaram um tal juiz em Thomas Griesa o qual emitiu uma
sentença pela qual a Argentina não podia pagar a quantia acordada
a todos aqueles credores que aceitaram o plano de reestruturação
da dívida até que houvesse pago àqueles que não o
haviam aceite, isto é, os "fundos abutre", e ainda que a estes
últimos havia que ser pago o montante pleno da dívida.
Em consequência desta sentença, os US$539 milhões que o
governo argentino depositara num banco de Nova York para o pagamento a ser
efectuado aos possuidores de títulos que aceitaram a
reestruturação da dívida, permanecem naquele banco e a
Argentina, sem qualquer culpa sua, surge como incumpridora no pagamento de
empréstimos. De facto não é a Argentina que está em
incumprimento; a sentença de um obscuro pequeno juiz está a
interpor-se entre a Argentina que está ali com o dinheiro e os
possuidores de títulos que concordaram aceitá-lo. Contudo, o que
é realmente grave é que o Tribunal de Apelação e o
Supremo Tribunal dos EUA confirmaram a sentença do juiz Griesa.
O que esta sentença faz é tornar impossível no futuro
qualquer reestruturação de dívida. Mesmo que a esmagadora
maioria dos credores esteja desejosa de aceitar uma
reestruturação, qualquer minúsculo grupo de credores
recalcitrantes que exijam pagamento pleno pode mencionar esta sentença e
torpedear tal reestruturação. E se algum obtiver pleno pagamento,
então porque deveriam os outros aceitar reestruturação? De
facto, uma das questões picantes agora é: o que acontece
àqueles credores da Argentina que aceitaram a
reestruturação da dívida? Se a NML Capital puder obter
pagamento pleno, por que deveriam os outros permanecer satisfeitos com o
esquema de pagamentos reestruturado, caso em que se deve perguntar qual
é o status do esquema de reestruturação acordado entre o
governo da Argentina e 90 por cento dos seus credores.
A ironia é que o NML Capital, o litigante perante o tribunal americano,
não emprestou nem um centavo ao governo argentino. Ele simplesmente
obteve os títulos argentino junto ao mercado a preços da chuva,
alguns dizem que a 20 por cento do seu valor facial. E comprou os
títulos do governo argentino depois de o governo já ter efectuado
um acordo de reestruturação de dívida, quando estava claro
que não pagaria o montante integral.
TENDENCIOSO A FAVOR DOS BILIONÁRIOS
O poder judiciário americano é não só altamente
politizado como também tendencioso a favor dos bilionários,
até o ponto de sentenciar em seu favor mesmo contra a lógica do
mercado. Um sistema de mercado onde instrumentos de dívida são
comerciados deve ter alguma disposição para enfrentar o
incumprimento. No caso de dívida privada há cláusulas de
bancarrota que cobrem tais situações. No caso de dívida
soberana, entretanto, onde governos de nações soberanas
são os tomadores de empréstimos, não há tal
disposição legal. Mas quando são feitos
empréstimos, mesmo a governos, a possibilidade de incumprimento
já é levada em conta na magnitude da taxa de juro cobrada sobre
eles, razão pela qual o governo dos EUA pode tomar emprestado a taxa de
juro virtualmente zero ao passo que governos do terceiro mundo têm de
pagar taxas de juros mais elevadas. E quando empréstimos não
são reembolsáveis, esquemas de reestruturação de
dívida têm sido acordados no passado. Por outras palavras, apesar
de não existir nenhum quadro legal que cubra dívida soberana,
têm sido efectuados esquemas económicos para manter em
funcionamento mercados de dívida soberana. O que agora estamos a
testemunhar é uma interferência legal neste funcionamento, a qual
é a favor dos ricos e poderosos das metrópoles e contra um
país do terceiro mundo, sem dúvida não tão pobre
como a Índia, mas um país com um rendimento per capita de
não mais do que US$14800, o qual é quase um quarto do dos EUA.
Esta sentença, além disso, tem importância para outros
países do terceiro mundo que são ainda mais pobres do que a
Argentina mas cujos governos têm contraído empréstimos nos
mercados internacionais. Qualquer credor, não apenas um credor privado
mas mesmo um banco, pode vender os títulos que possui a um "fundo
abutre" quando um governo do terceiro mundo não puder pagar. E o
"fundo abutre" pode citar esta sentença do Supremo Tribunal
para literalmente exigir seu "pedaço de carne", o qual, se
não puder ser pago a dinheiro, assumirá então a forma de
obtenção de controle sobre os recursos e activos públicos
do país em causa.
A dívida argentina que estamos a discutir foi contraída para
manter o esquema do
"currency board"
em funcionamento. Mas, no contexto da crise económica mundial em curso,
vários governos têm estado a contrair dívida externa, ao
invés de tomar emprestado internamente, a fim de obter divisas
estrangeiras para sustentar suas balanças de pagamentos. E uma vez que a
política da "facilidade quantitativa"
("quantitative easing")
dos gestores do Federal Reserve dos EUA chega a um fim, e portanto estanca o
fluxo de dólares fáceis, muitos governos terão de
contratar dívida externa a fim de atender suas balanças de
pagamentos. A sentença do Supremo Tribunal ameaça todos estes
países com uma situação em que não haverá
possibilidade de qualquer reestruturação de divida. Ao
contrário, terão de pagar a seus credores ou, pior ainda, a um
bando de "fundos abutre", o montante pleno da sua dívida
e em caso de falha podem ter de transferir os recursos da
nação a estes tubarões financeiros.
Muitos encaram o problema actual da Argentina como transitório,
simplesmente um aborrecimento temporário, que realmente acelerará
o surgimento de um sistema global para organizar a reestruturação
de dívidas. Mas apesar de, de tempos em tempos, ter havido propostas de
um tal sistema global, elas têm sido vetadas pelo governo dos EUA. Os
tribunais estado-unidenses parecem ter estragado estes planos no que se refere
aos mercados capitalistas de dívida; eles podem mesmo, ainda que
inconscientemente, ter dado um impulso aos esforços do imperialismo para
adquirir controle sobre recursos do terceiro mundo.
10/Agosto/2014
Ver também:
Seis medidas para vencer a los buitres
Do mesmo autor em resistir.info:
A ressurreição da ortodoxia
O banco dos BRICS
A ascensão e a queda do sul global
Os perigos da distribuição regressiva do rendimento
Sobre a crise económica global
Smith, Marx e alienação
A tributação da riqueza
Neoliberalismo e democracia
O valor do dinheiro
A natureza da actual crise capitalista
O espectro da austeridade
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/0810_pd/case-argentine-debt
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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