A ressurreição da ortodoxia
A importância social da classe capitalista decorre do facto de o
nível de actividade e emprego numa economia capitalista depender do
"estado de confiança" dos capitalistas (ou daquilo a que
Keynes chamou seus "espíritos animais")
[NT]
. Marx teorizou que os capitalistas, ao competirem uns com os outros (uma
competição ou "rivalidade" que não desaparece
mesmo quando eles entram em conluio) são capturados numa luta darwiniana
em que são obrigados a acumular. Assim, o seu desejo de acumular o valor
excedente
(surplus value),
ao invés de simplesmente consumi-lo, é-lhes imposto e não
depende de qualquer "estado de confiança"; mas a
acumulação pode assumir diversas formas, incluindo a forma de
capital dinheiro. Se eles desejarem acumular na forma de capital dinheiro,
então não é criada procura por bens e serviços, o
que significa que o valor excedente produzido não é
"realizado" e, devido a isto, ele nem mesmo chega a ser produzido
(uma vez que os capitalistas reduzem a produção quando se
acumulam stocks não vendidos). O nível de actividade e de emprego
cai.
Suponha por exemplo que, quando o stock de capital é plenamente
utilizado, seja produzido o valor Rs 100 de bens e serviços. Isto
geraria rendimentos no valor de Rs100, repartidos entre salários e lucro
num rácio, digamos, de 60:40. Se os trabalhadores habitualmente consomem
todos os seus salários e os capitalistas no mesmo período decidem
consumir Rs10 aconteça o que acontecer ao seu rendimento, então
todo esta produção de Rs100 será procurada (ao
preço base) só se o investimento (isto é,
acréscimos ao capital fixo e stocks) montar a Rs30. Mas se os
capitalistas não pretendem acrescentar Rs30 ao seu stock de capital mas
apenas Rs10 e pretendem, ao invés, manter os 20 remanescentes do valor
excedente na forma de dinheiro, então a procura total na economia
será Rs80 (= 60+10+10) quando o produto total é de 100.
Haverá então super-produção, com bens no valor de
Rs20 a permanecerem não vendidos.
Se o output [produto] for reduzido para se livrarem dos stocks não
vendidos, então o output acabará por estabelecer-se não
nos 80 (pois a conta salarial era de 60 só quando o output era de 100,
ela cairá se o output cair), mas num número mais baixo, ou seja,
50. Isto acontece porque o consumo dos capitalistas e o investimento sendo 20
(=10+10), só 20 do valor excedente pode ser realizado, e portanto
produzido, e esta quantidade de valor excedente está contida em apenas
Rs50 do produto. Haverá portanto 50 por cento menos de produto e emprego
em comparação com o nível de "plena capacidade".
(A relação pela qual uma queda no investimento em 20 (10 ao
invés de 30) provoca uma redução do produto em 50 (50 ao
invés de 100) é referida como o "multiplicador").
Agora, se os capitalistas desejam manter 10 ou 20 ou 30 na forma de
acréscimo ao stock de capital isso depende do seu "estado de
confiança". É neste sentido que o nível de actividade
e emprego numa economia capitalista depende do "estado de
confiança" dos capitalistas, "confiança" sobre se
serão capazes de vender, à taxa de lucro desejada, os bens que
serão produzidos a partir do stock de capital adicional. Como disse
Michal Kalecki, o renomado economista marxista polaco: "sob um sistema
laissez-faire o nível de emprego depende em grande medida do chamado
estado de confiança" (dos capitalistas PP).
Entretanto, a despesa do Estado pode aumentar a procura. No exemplo acima, se
do total do valor excedente de 40 produzido a plena capacidade os capitalistas
pretenderem consumir e investir apenas 20, então o Estado pode gastar 20
para compensar a deficiência da procura agregada, caso em que o output
100 será produzido (desde que seja procurado). Quando 100 é
produzido o valor excedente será 40; assim, o Estado tanto pode tomar
emprestado 20 dos capitalistas (o que eles próprios não gastam do
valor excedente) ou pode tributar 20. No primeiro caso haverá um
défice orçamental de 20; no último um orçamento
equilibrado.
Mas mesmo quando há um orçamento equilibrado os capitalistas
não perdem em termos de rendimento; na ausência de
intervenção do Estado, os lucros a acumularem-se para os
capitalistas no exemplo acima teriam sido 20 (gastos no seu consumo e
investimento); e com intervenção do Estado com um
orçamento equilibrado, os lucros (após impostos) a acumularem-se
para os capitalistas ainda são de 20. A intervenção do
Estado pode portanto aumentar o emprego e a actividade na economia sem reduzir
lucros dos capitalistas. Mas então por que os capitalistas tanto se
opõem à intervenção do Estado na
"administração da procura"?
INSTINTO DE CLASSE
Isto se deve a uma grande diferença que ela provoca. E a
diferença é que o "estado de confiança" dos
capitalistas deixa de importar, o que também significa que a sua
importância social diminui. Se o emprego e o produto dependem do
"estado de confiança" dos capitalistas, então o Estado
tem de fazer tudo para promover este "estado de confiança" e
os trabalhadores podem mesmo ser aterrorizados até à passividade
com o argumento de que a sua militância pode minar o "estado de
confiança" dos capitalistas reduzindo o emprego e, portanto,
afectando-os adversamente.
Mas se, sem se importar com o "estado de confiança" dos
capitalistas, o Estado puder sempre intervir através das suas despesas
para promover o nível de procura agregada, então os trabalhadores
não têm de se preocupar em que a sua militância mine o
"estado de confiança" dos capitalistas e podem travar lutas
mais firmes a fim de melhorar seus salários e condições de
trabalho. E uma vez que a despesa do Estado pode sempre assumir a forma de
investimento, mesmo a composição da procura não precisa
afastar-se da despesa de investimento, isto é, gastando para aumentar o
stock de capital, caso em que mesmo a taxa de crescimento da economia, em
oposição ao produto e ao emprego num período particular,
também cessa de depender do "estado de confiança" dos
capitalistas.
É para impedir a erosão da sua importância social que os
capitalistas se opõem tão veementemente à
intervenção do Estado na administração da procura e
insistem em "finanças saudáveis", isto é, em o
Estado equilibrar seu orçamento (sem, não é preciso dizer,
aumentar impostos sobre eles). No exemplo acima se o Estado incidir num
défice orçamental então o lucro dos capitalistas ao
invés de ser 20 (o que se verificaria na ausência de
intervenção do Estado) tornar-se-ia 40 (com os 20 além do
seu consumo e investimento a ser tomado emprestado pelo Estado para financiar o
défice orçamental). Eles portanto estariam numa
situação melhor com um défice orçamental do que com
"finanças saudáveis" e, ainda assim, opõem-se
invariavelmente ao défice orçamental. E isto se verifica porque o
seu instinto de classe diz que qualquer coisa que mine a sua
posição social lhes é desastrosa no longo prazo.
Se a sociedade não tem de se curvar a fim de melhorar o seu "estado
de confiança", se o Estado pode cumprir a tarefa de aumentar o
emprego e o produto sem se importar com o "estado de
confiança", então quem sabe o povo pode começar
amanhã a exigir que o Estado administre empresas sem deixá-las
para os capitalistas. Eles podem, em suma, começar a exigir que,
através da propriedade social dos meios de produção, o
Estado deveria simplesmente livrar-se de uma classe cuja
continuação como proprietária dos mesmos parece
completamente desnecessária. Mais uma vez, como disse Kalecki: "A
função social da doutrina da "finança
saudável" é tornar o nível de emprego dependente do
"estado de confiança".
No período imediato após a crise de 2008, quando os capitalistas
empurraram a sociedade para um estado de desemprego em massa que recordava o da
Grande Depressão da década de 1930, e quando o sistema financeiro
do capitalismo mundial parecia estar à beira do colapso, a
"doutrina da finança saudável" (o que nestes dias
não significa exactamente equilibrar o orçamento, mas ter um
défice orçamental que não exceda uma certa percentagem do
PIB, habitualmente três por cento), foi momentaneamente abandonada. A
cólera do povo contra o capitalismo explodiu e para desviar esta
cólera os Estados empreenderam "pacotes de estímulo
orçamental". Estes pacotes eram minúsculos em
comparação com os montantes com que os Estados se comprometeram
em salvamentos externos
(bailing out)
dos bancos que haviam sido atingidos pela crise. Exemplo: nos EUA, enquanto
US$13 milhões de milhões
(trillion)
foram prometidos pela administração Obama para ajudar o sistema
financeiro, o pacote de estímulo orçamental foi na totalidade de
apenas US$700 mil milhões; mas mesmo isto assinalou uma
alteração que se afasta da ortodoxia da "finança
saudável".
Mais ainda: estes pacotes de estímulos orçamentais também
dedicaram algumas verbas para "medidas de protecção
social", isto é, proporcionar alívio para o povo no contexto
da crise. Durante 2008-09 houve pelo menos 48 países de "alto"
e "médio" rendimento que proporcionaram pacotes de
estímulo orçamental que totalizavam US$2,4 milhões de
milhões, e aproximadamente um quarto desta soma foi dedicada a medidas
de "protecção social". Este facto exerceu um papel ao
isolar o povo dos piores efeitos da crise.
O RELÓGIO VOLTOU PARA TRÁS
Contudo, a partir de 2010 o relógio voltou para trás e a
ortodoxia da "finança saudável" foi ressuscitada.
Não há nada misterioso acerca da razão porque isto
aconteceu. Romper com a doutrina da "finança saudável"
implica romper com a hegemonia do capital financeiro internacional. Isto
significa no mínimo romper com o processo de globalização
do capital pela imposição de controles de capital. Por outras
palavras, não se pode ter apenas uma retirada parcial da ortodoxia
financeira; é preciso fazê-la seguir de um conjunto de outras
medidas que significariam um afastamento do regime da
globalização.
Uma vez que os Estados capitalistas avançados não queriam fazer
isto, o capital financeiro internacional reafirmou seu poder que fora
temporariamente perdido durante 2008-09. Os governos começaram a
reverter a rota e embarcaram na "consolidação
orçamental", a qual significa não só cortar outra vez
despesas do Estado que haviam aumentado no rastro da crise como algo mais. Uma
vez que as receitas do governo haviam caído devido à crise, impor
outra vez os objectivos do défice orçamental significou cortes
drásticos na despesa governamental. E o sector gravemente afectado foi o
sector social.
Em 2014 até 122 governos estão a efectuar a
contracção da despesa pública, dos quais 82 são de
países em desenvolvimento. Mesmo países de "alto
rendimento" estão a contrair a sua "protecção
social" e, na Europa, supõe-se que isto tenha aumentado o
nível de pobreza para 123 milhões de pessoas, ou aproximadamente
24 por cento da população. Não há dúvida de
que alguns se movem na direcção oposta, tais como China, Brasil e
uns poucos outros na América Latina e na África, mas a
Índia, ai de nós, está firmemente comprometida com a
ortodoxia financeira.
A ressurreição da ortodoxia não só
prolongará a crise da economia mundial como também
assegurará que os que mais sofrerão serão aqueles menos
capazes de enfrentar as suas consequências.
[NT]
Foi deliberadamente sacrificada a elegância da forma à
precisão do texto. As repetições de palavras, neste caso,
contribuem para melhorar a sua compreensão.
Do mesmo autor em resistir.info:
O banco dos BRICS
A ascensão e a queda do sul global
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Sobre a crise económica global
Smith, Marx e alienação
A tributação da riqueza
Neoliberalismo e democracia
O valor do dinheiro
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O espectro da austeridade
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/0803_pd/resurrection-orthodoxy
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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