Sobre a crise económica global
A crise económica global é vista habitualmente como sequela do
colapso da bolha habitacional nos Estados Unidos. Contudo, este entendimento
é inadequado. A formação daquela bolha e o seu colapso
são episódios que estão eles próprios integrados
dentro de uma crise estrutural mais profunda que aflige o capitalismo
contemporâneo, uma crise relacionada com o fenómeno da
"globalização".
Muitos vêem a actual globalização como não
diferente, na verdade como uma continuação, do episódio
anterior de globalização que foi interrompido pelas duas guerras
mundiais, a Grande Depressão e a adopção do
intervencionismo de Estado no pós-guerra na generalidade dos regimes
económicos nacionais. Contudo, esta visão é
errónea. A actual globalização é um fenómeno
sui generis
que em aspectos importantes torna o capitalismo contemporâneo diferente
de tudo o que o antecedeu.
TRÊS CARACTERÍSTICAS BÁSICAS
O capitalismo que precedeu a actual globalização
caracterizou-se por três traços distintos. Primeiro, o trabalho
não tinha mobilidade livre do "sul" para o "norte",
na verdade ainda não tem. O "longo século XIX",
perdurando até a Primeira Guerra Mundial, assistiu a duas grandes ondas
de migração através do globo. Havia uma
migração de povoamento branco da Europa para regiões
temperadas como o Canadá, os Estados Unidos, a Austrália
e a Nova
Zelândia onde os migrantes ocuparam terra através do
desalojamento dos
habitantes originais. Eles mantiveram seu próprio padrão de vida
e portanto também o salário real da sua origem. Aquilo foi uma
"migração de alto salário, de região temperada
para região temperada".
Houve uma segunda onda de migração às ordens do capital
que foi de países tropicais ou subtropicais como a Índia
e a
China para outras regiões tropicais onde os migrantes eram
empregados
como culis
(coolies)
ou trabalhadores contratados em minas, plantações e projectos de
construção. Os países de onde vieram os migrantes haviam
testemunhado uma "desindustrialização" substancial, no
sentido da destruição da produção artesã
tradicional pela importação de manufacturas das metrópoles
capitalistas, o que lançou grande número de pessoas para fora do
trabalho e intensificou a pressão sobre a limitada massa de terra. Isto
levou a salários reais extraordinariamente deprimidos. Esta segunda onda
de migração, portanto, foi uma "migração de
baixos salários de região tropical para região
tropical".
Cada uma destas ondas envolveu aproximadamente 50 milhões de pessoas mas
foram mantidas estritamente separadas. Ao trabalho tropical não
só não era permitido mover-se livremente para a Europa como
também era impedido de mover-se para regiões temperadas de
colonização branca. Mesmo quando, nos anos pós Segunda
Guerra Mundial, a migração ocorreu numa escala maior do que antes
do "sul" para o "norte" ainda assim permaneceu uma
migração controlada, regulada de acordo com as necessidades do
capital. Não havia livre mobilidade de trabalho.
A segunda característica do capitalismo anterior à
globalização era que o capital não se movia livremente do
"norte" para o "sul". Aqui, não havia
restrições jurídicas sobre o seu movimento; no entanto ele
se movia só para plantações, minas, actividades
exportadores e a infraestrutura exigida por tais actividades, tais como
ferrovias (em que tipicamente as taxas de retorno eram garantidas pelo Estado
colonial). Não havia migração em qualquer sentido
significativo para a manufactura, apesar dos salários reais mais baixos
que prevaleciam no "sul". Tem havido muita discussão acerca da
razão porque houve tão pouca migração de capital do
"norte" para "sul" para o estabelecimento de unidades
manufactureiras. Não precisamos aqui entrar nessa discussão;
simplesmente notamos o facto de o capital do "norte" não se
ter movido livremente para o "sul" apesar de não haver
restrições jurídicas para assim fazê-lo.
A terceira característica era que a importação de bens
manufacturados produzidos no "sul" era pesadamente tributada no
norte. Por causa disto, os capitalistas locais emergentes, mesmo se
conseguissem estabelecer unidades manufactureiras no "sul" (apesar
dos numerosos obstáculos colocadas no seu caminho pelos regimes
coloniais), eram impedidos de entrar nos mercados "nortistas". Eles
estavam confinados, na melhor das hipóteses, aos seus próprios
mercados locais; e mesmo ali tinham de enfrentar a competição dos
bens manufacturados "nortistas" sem que lhes fosse dada qualquer
protecção.
O resultado líquido destas três características foi que a
economia mundial tornou-se "segmentada" em duas partes e os
salários reais em uma parte, o "norte", não foram
restringidos pelas reservas de trabalho maciças do outro, o
"sul". Certamente havia um exército de trabalho de reserva
também dentro do "norte" (o capitalismo nunca pode funcionar
sem um exército de reserva), o qual restringia os salários
"nortistas"; mas sendo a sua dimensão relativamente pequena,
sua influência restritiva sobre os salários "nortistas"
não era tão absoluta a ponto de rebaixar estes salários a
um nível de "subsistência".
Dizendo isto de modo diferente, o capitalismo mundial tinha dois
exércitos de trabalho de reserva: havia um relativamente pequeno no
"norte" o qual, apesar de restringir salários, não
impedia sua ascensão, através da acção sindical,
com os aumentos na produtividade do trabalho. Além disso havia um enorme
exército de reserva no "sul" o qual impedia os salários
ali de ascenderem acima de um escasso nível de subsistência (e com
isso ajudava a alcançar estabilidade de preços nas
metrópoles ao impedir qualquer pressão autónoma sobre os
custos das matérias-primas), mas não restringia salários
"nortistas" dado o facto da segmentação. O que esta
segmentação significava, portanto, era que enquanto os
salários reais no "norte" ascendiam com a produtividade do
trabalho, os salários reais no "sul" continuavam a estagnar a
um escasso nível de subsistência sob a pressão das suas
reservas de trabalho maciças.
Além disso, isto contribuiu também para promover a procura
interna dentro do "norte" global. A ascensão de
salários reais juntamente com a produtividade do trabalho ajudou a
impedir o surgimento do problema da deficiência de procura. Uma
ascensão em salários reais a par e passo com a produtividade do
trabalho certamente não é uma condição
necessária nem suficiente para anular uma possível
deficiência da procura: afinal de contas, mesmo com uma
proporção
(share)
constante de salários e mesmo com todos os salários sendo
consumidos, a deficiência de procura ainda se pode verificar devido a um
declínio do impulso para investir; e da mesma forma as expectativas
eufóricas acerca de perspectivas de lucros entre capitalistas pode
impulsionar investimento até um ponto em que mesmo uma
proporção de salários em declínio não
provoca uma deficiência da procura agregada. Mas uma ascensão de
salários reais ajuda a promover a procura agregada: mantém o
nível de procura mais elevado do que teria estado em qualquer dado
nível de investimento.
A globalização actual arruinou esta segmentação da
economia capitalista mundial. Muito embora o trabalho do "sul" ainda
não seja livre para se mover para o "norte", o capital do
"norte" agora está a mover-se para o "sul" para
ali instalar unidades industriais destinadas a exportações para o
mercado mundial como um todo incluindo os mercados "nortistas", os
quais agora estão abertos a tais exportações do
"sul". Isto também significa, contudo, que os trabalhadores no
"norte" agora estão expostos às consequências
perniciosas das reservas de trabalho maciças do "sul".
ESPADA DE DAMOCLES
Uma óbvia implicação disto tem sido o declínio da
força dos sindicatos nos países avançados. A
essência das "combinações" de trabalhadores na
forma de sindicatos, como Marx observou em
A pobreza da filosofia,
é restringir a competição entre trabalhadores. A
globalização, ao expor os trabalhadores nos países
avançados à competição dos trabalhadores do
"sul", mina os sindicatos nos primeiros. Além dos efeitos da
relocalização real no "sul" das unidades industriais do
"norte", a própria ameaça de tal
relocalização pende como uma espada de Dâmocles sobre os
trabalhadores do "norte", limitando a força dos seus
sindicatos.
A segunda implicação relacionada com isso é que os
salários reais dos trabalhadores nos países avançados
já não pode ascender com a produtividade do trabalho. Sob a
pressão das reservas de trabalho maciças do "sul", eles
tendem a permanecer estagnados. Eles não tendem, naturalmente, para a
igualdade com os salários reais do "sul" (uma vez que
há uma certa irreversibilidade temporal acerca dos níveis de
salário real por razões políticas, se não outras).
Mas o vector dos salários reais no mundo, consistindo nos
salários tanto do "norte" como do "sul", tende a
permanecer inalterado, mesmo quando a produtividade do trabalho aumenta na
economia mundial. Não é de surpreender que nos Estados Unidos,
nas últimas três décadas ou mais, as taxas de
salário real tenham permanecido estagnadas mesmo em termos absolutos.
A estagnação no vector dos salários reais mesmo quando a
produtividade do trabalho aumenta na economia mundial implica um aumento da
proporção de excedente. Isto significa um aumento nas
desigualdades de rendimento no mundo. As desigualdades do rendimento mundial de
facto continuariam a ascender na era da globalização a menos que
as reservas de trabalho mundial fossem progressivamente exauridas. Contudo,
isto não está a acontecer e nem mesmo é provável
que aconteça.
A outra implicação desta ascensão da
proporção do excedente é uma tendência
ex ante
rumo à superprodução devido à procura inadequada,
a qual decorre do facto de os trabalhadores dedicarem uma
proporção maior dos seus rendimentos ao consumo em
comparação com os capitalistas. Uma tal tendência
ex ante
não significa necessariamente uma real ocorrência
ex post
de crise e estagnação por causa disso. A
intervenção do Estado na gestão da procura pode sempre
evitar uma tal tendência (Na verdade, Baran e Sweezy argumentaram, no
contexto da América do pós guerra, que a despesa militar
desempenhou um importante papel na manutenção do nível de
procura agregada naquela economia apesar de uma tendência
ex ante
rumo à superprodução resultante de uma ascensão na
proporção do excedente).
Mas aqui chegamos a um outro importante aspecto da actual
globalização. A globalização do capital, acima de
tudo do capital financeiro, implica que, num mundo de
Estados-nação, todo e qualquer Estado, quer queira quer
não, deve seguir apenas aquelas políticas que são pedidas
pelo capital financeiro, pois do contrário enfrenta a perspectiva de o
capital financeiro abandoná-lo em massa e desencadear uma crise
financeira sobre a sua economia. E o capital financeiro invariavelmente
opõe-se à intervenção do Estado na
administração da procura para manter o nível de actividade
na economia, uma oposição que se exprime na sua insistência
sobre "finanças sãs" (a qual sustenta que os governos
deveriam equilibrar seus orçamentos, ou quando muito terem um
défice orçamental não excedendo uma certa percentagem
fixada do PIB).
Uma vez que os governos são restringidos quanto ao aumento de impostos
num mundo de finanças globalizadas (pois isto afugentaria o capital
financeiro) e também de aumentarem suas tomadas de empréstimos
(devido à pressão para adoptarem "finanças
sãs", ou aquilo que agora é chamado de
"responsabilidade orçamental"), eles não podem intervir
directamente para elevar a procura agregada e, portanto, não podem
compensar a tendência
ex ante
em direcção à superprodução que a
de-segmentação traz no seu bojo.
O único antídoto à estagnação sob tais
circunstâncias, quando não há mercados coloniais
"disponíveis" e quando a intervenção do Estado
na administração da procura é minada pela
oposição do capital financeiro globalizado, é
providenciado pela formação de "bolhas". Na verdade, no
período iniciado com o declínio da administração
keynesiana da procura, enquanto a taxa de crescimento médio do mundo
capitalista avançado desacelerava, tal crescimento, da forma como se
verificou, deveu a sua ocorrência a um conjunto de "bolhas",
nos EUA em particular: a "bolha dotcom" seguida pela "bolha
habitacional".
[NT]
Portanto, a visão que atribui a actual crise económica global
à formação de bolhas e argumenta que medidas
regulamentares para impedir tais bolhas produziriam um capitalismo livre de
crise, é completamente despropositada. Na ausência de tais bolhas,
o capitalismo contemporâneo estaria permanentemente atolado na
estagnação e no desemprego em massa. As bolhas hoje proporcionam
a única base para os
booms,
assim como o seu colapso causa recessões e depressões. A triste
situação do capitalismo contemporâneo decorre portanto
não do facto de experimentar "bolhas" em simultâneo com
o seu inevitável colapso, as quais poderiam ser evitadas. Ela decorre do
facto de que o capitalismo precisa exactamente de tais "bolhas" a fim
de proporcionar o alívio possível em relação
à estagnação e ao desemprego em massa.
Portanto a crise económica global consiste não no colapso da
bolha mas no facto de o capitalismo estar preso a esta triste
situação estrutural, em que doravante continuará a
experimentar estagnação prolongada e desemprego em massa,
aliviado ocasionalmente pelo paliativo temporário dado por uma bolha.
[NT]
Poderia ter acrescentado a bolha recente do
shale gas
e
shale oil,
uma pseudo solução para os problemas energéticos dos EUA
mais uma mistificação do governo Obama.
Do mesmo autor em resistir.info:
Smith, Marx e alienação
A tributação da riqueza
Neoliberalismo e democracia
O valor do dinheiro
A natureza da actual crise capitalista
O espectro da austeridade
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/0608_pd/global-economic-crisis
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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