O espectro da austeridade
Um
estudo
baseado em dados e projecções do FMI para 181
países efectuado na Initiative for Policy Dialogue, Columbia University,
Nova York, por Isabel Ortiz e Matthew Cummins, chegou a algumas descobertas
notáveis. O estudo foca quatro períodos:
-
o período pré crise 2005-07;
-
a fase um da crise abrangendo 2008-09, a qual assistiu à
expansão orçamental na forma de pacotes de estímulo
adoptados por vários países, incluindo, numa escala modesta, os
próprios EUA;
-
a fase dois da crise abrangendo 2010-12, a qual assistiu o início da
contracção orçamental por todo o mundo; e
-
a fase três da crise abrangendo 2013-15 (com base em
projecções do FMI), na qual se assiste a uma
intensificação da contracção orçamental.
O referido estudo descobre que 68 países em desenvolvimento e 26
países de alto
rendimento devem, segundo projecções do FMI, cortar na despesa
governamental em proporção do PIB durante o período
2013-15. E a contracção média na despesa governamental em
proporção ao PIB ao longo deste período é de 3,7
para estes países em desenvolvimento, a comparar com a de 2,2 por cento
para os países de alto rendimento. A austeridade em 2013 afectará
5,8 mil milhões de pessoas, ou 80 por cento da população
mundial, e em 2014 a projecção é de que afecte 6,3 mil
milhões de pessoas, ou 90 por cento da população mundial.
MEDIDAS ADOPTADAS
O estudo também examina as medidas através das quais se pretende
impor austeridade. Em 100 países estas medidas assumem a forma de
eliminação ou redução de subsídios,
incluindo produtos alimentares, agricultura e combustível; em 80
países elas assumem a forma de racionalização e de novos
ataques a redes de segurança; em 86 países assumem a forma de
"reforma de pensões"; em 37 países de "reformas
nos cuidados de saúde"; e em 32 países de
"flexibilização do trabalho" (a qual tem o efeito
inevitável de reduzir pagamentos salariais pelo governo). O que é
gritante acerca do estudo é que a "austeridade" está a
ser imposta numa tamanha escala maciça mesmo sobre países do
terceiro mundo e não apenas sobre países europeus atingidos pela
crise ou economias de países avançados.
Austeridade nesta escala, imposta à economia global como um todo,
à primeira vista pareceria bizarra. A economia mundial está a
cambalear sob uma crise que implicou desemprego maciço e cuja causa
básica é uma deficiência da procura agregada. Esta é
uma época em que governos deveriam estar a expandir a procura, uma vez
que as despesas privadas permanecem esmagadas no rastro do colapso da bolha
habitacional e da florescente despesa de consumo financiada a crédito.
Por que é que governos exactamente nesta conjuntura estariam a adoptar
medidas de austeridade, as quais só podem agravar a crise e que
inevitavelmente assim o farão?
A austeridade, deveria notar-se, terá não só um efeito
directo sobre a procura agregada, através de cortes em despesas
governamentais, como também um efeito indirecto: uma vez que os cortes
em despesa governamental assumem por toda a parte a forma de
redução de apoio orçamental para os pobres e os
trabalhadores, a capacidade de negociação dos mesmos afunda, o
que implica uma redução (em comparação com o que
aconteceria normalmente) dos seus salários; e isto tem um efeito
ulterior de redução da procura. Por outras palavras, uma
redução no apoio orçamental para os trabalhadores
não só atinge-os directamente com também tem o efeito
adicional de provocar uma modificação na
distribuição do rendimento entre salários e lucros em
favor destes últimos. E ambos os fenómenos têm um efeito de
contracção da procura, a qual só agravará a crise.
Por que então os governos estão a insistir na austeridade neste
momento, quando a crise exige precisamente a insistência na
política oposta?
A resposta a esta pergunta é bastante directa. O capital financeiro
sempre se opôs a défices orçamentais, donde a sua advocacia
da chamada "política da finança saudável" a qual
sustenta que os orçamentos devem ser equilibrados. (Sua
encarnação contemporânea declara que orçamentos
podem apresentar um défice não superior a 3 por cento do PIB). E
uma vez que o capital financeiro também se opõe, juntamente com
todos os outros segmentos do capital, a maior tributação pelo
governo, temendo que tal tributação incida sobre os seus
próprios rendimentos maciços, ele tradicionalmente opõe-se
a maior despesa governamental (excepto quando tal despesa é
constituída por transferências directas para si próprio).
Mesmo quando John Maynard Keynes havia proposto maior despesa governamental,
financiada por um défice orçamental, como meio de ultrapassar o
desemprego na Grã-Bretanha em 1929, a City de Londres, que era a sede do
capital financeiro britânico, opôs-se veementemente a isso. Assim,
não há nada de novo acerca da actual oposição da
finança à despesa governamental e a sua preferência pela
"austeridade" orçamental.
O que é novo entretanto é o facto de ter desaparecido a
capacidade do Estado para se contrapor à oposição da
finança a maior despesa governamental. E isto acontece porque enquanto o
Estado permanece uma nação-Estado, o capital financeiro agora
é internacional, movendo-se de um país para outro "num
piscar de olhos". Portanto, nenhum Estado isolado, que seja arrastado no
turbilhão dos fluxos de capital globalizados, pode-se opor aos caprichos
da finança pois se o fizer então a finança perderia
"confiança" naquela economia e mover-se-ia alhures,
provocando-lhe uma aguda crise financeira.
Se houvesse um Estado
mundial
capaz de confrontar a finança
globalizada
, seria concebível que as coisas pudessem ser diferente, no sentido de
que um tal Estado podia avançar com políticas keynesianas de
gestão da procura a fim de ultrapassar a crise e ampliar o emprego.
Analogamente, se mesmo as nações-Estado existentes pudessem
ter-se congregado para iniciar uma
política coordenada
de estímulo da procura, e portanto actuado em
substituição a um Estado mundial, as coisas poderiam ter sido
diferentes. Mas este não e o caso: mesmo na Europa não pode haver
acordo acerca de uma política coordenada devido à
insistência da Alemanha em políticas que mereçam a
aprovação do capital financeiro. Não é
surpreendente portanto que o jugo da finança, que quer austeridade,
esteja agora a pisotear o mundo como um todo, mesmo em meio a uma crise que
só pode ser agravada por ela.
PERGUNTA MAIS PROFUNDA
Contudo, a pergunta mais profunda é a seguinte: por que a finança
se opõe à intervenção do Estado para estimular a
procura mesmo em meio de uma crise?
Todo argumento teórico que é avançado contra tal
estimulação é enviesado,
muito embora seja aceito por vários economistas (os quais geralmente
seguem a linha do capital financeiro porque sabem qual o meio pelo qual o seu
pão fica amanteigado). De facto, Joan Robinson chamou o argumento para a
busca perene da "finança saudável" (inclusive mesmo em
meio a uma recessão) de a "impostura da finança"
("humbug of finance").
Ele não tem base teórica legítima; é apenas
impostura, propalada pela finança para apoiar a sua
predilecção. Isto entretanto traz-nos de volta a pergunta: por
que esta predilecção?
Michael Kalecki respondeu a esta pergunta ao enfatizar que qualquer abandono da
doutrina da "finança saudável" mina a legitimidade
social e portanto o poder dos capitalistas. Se governos podem intervir
directamente para aumentar o emprego na economia então a necessidade de
estimular os "espíritos animais" dos capitalistas, de promover
o seu "estado de confiança" através de toda
espécie de persuasões, desaparece o que pode mesmo
encorajar pessoas a fazerem a pergunta: afinal de contas por que precisamos de
um grupo de capitalistas? E o segmento de capitalistas mais vulnerável a
este perigo de erosão da legitimidade social é aquele segmento,
nomeadamente o financeiro, aos quais o próprio Keynes classificou como
"investidores sem funções" e que não desempenham
qualquer papel na organização da produção ou no
progresso tecnológico. O capital financeiro portanto constitui
sistematicamente o mais veemente opositor da intervenção do
Estado na administração da procura, uma condição
para a administração da mesma é o abandono da doutrina da
"finança saudável".
Mas este argumento de Kalecki precisa ser situado dentro de uma
percepção mais geral que os capitalistas têm, nomeadamente
que o único meio de ultrapassar uma crise numa economia capitalista
a qual, isto é considerado como garantido, constitui o melhor de
todos os universos económicos possíveis é
através do fortalecimento dos capitalistas a expensas dos trabalhadores.
De facto a própria crise é ou não reconhecida de todo como
uma crise, mas apenas como uma aberração temporária; ou,
se reconhecida, é atribuída ao fenómeno de
"salários mais altos do que o justificado" pagos aos
trabalhadores.
Ela nunca é reconhecida como um resultado inevitável da anarquia
do sistema capitalista, como um fenómeno que é imanente ao
capitalismo.
Sugere-se que se for permitido ao sistema capitalista funcionar suavemente,
isto é, com completa flexibilidade de salários e preços, o
que significa impor cortes salariais se houver desemprego, ele nunca
experimentará qualquer desemprego involuntário. Se há
desemprego involuntário, o que é muitas vezes posto em
dúvida (alguns economistas americanos esforçaram-se mesmo por
argumentar que o desemprego maciço na década de 1930 era todo
voluntário!), então a única razão possível
para isso deve ser que está a faltar a tal flexibilidade, e em
particular que os salários estão "demasiado altos". E
se os salários devem ser rebaixados, então o apoio
orçamental para os trabalhadores, o qual melhora o seu padrão de
vida (constituindo um salário social) e portanto fortalece seu poder de
negociação e resistência a revisões salariais em
baixa, torna-se um empecilho. A austeridade, envolvendo uma
redução em tal apoio orçamental, torna-se então uma
panaceia para ultrapassar a crise, ao invés de algo que agrava a crise.
Não há dúvida de que certas espécies de despesas
governamentais que não implicam apoio orçamental, mas que
beneficiam directamente os interesses corporativo-financeiros, mesmo sem
implicar subsídios ou transferências directas, podem ser saudadas
por eles. A principal dentre elas é a despesa militar e desde a
década de 1930 o capital financeiro não se tem oposto a maior
despesa militar do governo, a qual também tem a "vantagem"
acrescida de não minar a legitimidade social dos capitalistas (desde que
ela pode sempre ser dissimulada como necessária ao "interesse
nacional"). Mas numa situação como a presente, em que
não é o momento apropriado para qualquer acumulação
militar competitiva, o espaço para aumentar tal despesa é
limitado. A oposição ao apoio orçamental para os
trabalhadores assume portanto a forma de oposição à
despesa governamental enquanto tal.
Mas, pode-se perguntar, será que os próprios capitalistas
acreditam que o sistema não tem tendência imanente em
direcção a crises? O que capitalistas
individualmente
acreditam, contudo, é irrelevante. A visão de que o capitalismo
não tem tendência imanente para crises é apenas uma
extensão do "fetichismo da mercadoria" que caracteriza as
percepções acerca do sistema.
Marx rastreou o "fetichismo da mercadoria" como decorrente do facto
de que "uma definida relação social entre homens ... assume,
aos seus olhos, a forma fantástica de uma relação entre
coisas". Assim, a Lei de Say, que nega a possibilidade de crises de
super-produção, assim o faz porque não vê a
"relação social entre homens" mas apenas "uma
relação entre coisas" ou valores de uso; e coisas que
são valores de uso possivelmente não podem ser super-produzidas.
Se o vendedor não pode vender o que produziu então ele sempre
pode utilizar o produzido por si próprio; logo, nunca pode haver
qualquer super-produção generalizada. A insistência na
austeridade é um aspecto deste fetichismo da mercadoria.
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
People's Democracy
, vol. XXXVII, Nº 25, 23/Junho/2013. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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