A tributação da riqueza
Um livro que está agora a atrair muita atenção nos Estados
Unidos é
Capital in the Twenty-First Century,
do economista francês Thomas Piketty. Ele analisa uma enorme quantidade
de dados históricos sobre alterações de riqueza e
desigualdades de rendimentos nos países capitalistas avançados,
antecipa com base nesta análise que as desigualdades de riqueza
provavelmente aumentarão substancialmente nos próximos anos,
até um ponto em que porão gravemente em perigo o funcionamento de
todas as instituições democráticas. Portanto, ele advoga
uma substancial tributação da riqueza, especialmente no alto
nível do espectro da mesma.
Num período em que economistas neoliberais sequestraram o discurso
intelectual e que, também devido aos viéses dos media sob
controle corporativo e à influência crescente do capital
financeiro sobre instituições de ensino superior (e não
por qualquer correcção intelectual dos seus argumentos) o facto
de a publicação de um livro exprimindo preocupação
sobre a ascensão das desigualdades da riqueza e argumentando a favor da
sua tributação ter despertado a atenção do
público deve ser saudado. Ao mesmo tempo, contudo, mesmo com base numa
familiaridade superficial com a argumentação de Piketty, o que
é tudo o que posso afirmar neste momento, dois pontos acerca da sua
argumentação considero que merecem discussão.
AFIRMAÇÃO ESTRANHA
O primeiro é a visão de Piketty de que o aumento na desigualdade
de riqueza ocorre porque a taxa de retorno sobre o capital é maior do
que a taxa de crescimento da economia. Suponha que a taxa de retorno sobre o
capital é de 8 por cento ao passo que a taxa de crescimento da economia
é de 3 por cento e suponha que o stock inicial de capital é de
100. Então os proprietários do capital que estariam a obter um
rendimento de 8 podem consumir metade dele, investir a outra metade (que
é 4) e ainda ter uma expansão na sua riqueza que é maior
do que a taxa de crescimento do produto. Assim, mesmo quando eles chafurdam na
vida luxuosa a sua riqueza ainda pode crescer a uma taxa mais rápida do
que o rendimento da sociedade e portanto mais rapidamente do que os rendimentos
do trabalho. Em suma, eles podem comer o seu bolo e também tê-lo.
Isto contudo levanta um certo número de questões. O que determina
a taxa de crescimento da economia? A resposta de Piketty seria: a soma da taxa
de crescimento da força de trabalho e da taxa de crescimento da
produtividade do trabalho devida ao progresso tecnológico. A economia,
em suma, é sempre assumida como sendo constrangida pelo trabalho, pelo
menos no longo prazo. Isto entretanto parece uma afirmação
estranha, uma vez que historicamente o capital tem movido vastas massas de
pessoas através do globo, como escravos, trabalhadores contratados ou
simplesmente trabalhadores migrantes, a fim de satisfazer suas exigências
de trabalho. Imaginar que o capital simplesmente confia no crescimento interno
da força de trabalho em "unidades de eficiência" (isto
é, incluindo a taxa de crescimento da produtividade do trabalho) dentro
de cada "economia desenvolvida" é irreal.
Além disso, mesmo que o capital acumule mais rapidamente do que a taxa
de crescimento da força de trabalho, não deveria este mesmo
facto, pelo seu impacto sobre a procura de trabalho, ter um impacto sobre a
taxa salarial e portanto sobre a taxa de retorno sobre o capital, de modo a que
finalmente o crescimento dos rendimentos do capital e o crescimento dos
rendimentos do trabalho se tornassem iguais? No exemplo acima, quando a taxa de
retorno sobre o capital caiu para 6 por cento dos 8 por cento (em que
começou), assumindo como antes que os capitalistas consomem a metade dos
seus rendimentos e poupam e investem a outra metade (Piketty assume em outro
lugar todos os problemas da procura agregada e portanto a questão do
mercado em geral), a taxa de crescimento do seu stock de capital seria 3 por
cento, a mesma da taxa de crescimento do produto. E então, daí em
diante, haveria um crescimento equilibrado de rendimentos de salários e
lucros, cada um a crescer a 3 por cento muito embora a taxa de retorno sobre o
capital continuasse a ser de 6 por cento, do qual a metade é sempre
consumida.
Contudo, o problema é que mesmo quando as fatias de salários e
lucros permanecem inalteradas desta maneira, a ameaça para as
instituições democráticas continua séria e na
verdade a crescer em intensidade. Para ver este ponto, deixe-nos
deliberadamente assumir que o consumo dos capitalistas é nulo e que a
taxa de retorno sobre o capital no exemplo acima é de uns meros 3 por
cento, a mesma da taxa de crescimento do produto. Temos, por outras palavras,
não um excesso da taxa de retorno sobre a taxa de crescimento do
produto, mas uma igualdade entre as duas. E deixe-nos assumir, para fins de
ilustração, que a taxa de aumento na produtividade do trabalho
devida a progresso tecnológico é de 2 por cento ao ano ao passo
que a taxa de crescimento da população (e portanto da
força de trabalho em unidades naturais) é 1 por cento,
acrescentando à taxa de crescimento da força de trabalho como um
todo (em"unidades de eficiência") de 3 por cento.
Neste caso o rendimento per capita da sociedade aumenta a 2 por cento (com o
produto a crescer a 3 por cento e a população a 1 por cento), as
fatias de salários e lucros permanecem constantes e a taxa de
salário real aumenta a 2 por cento (a mesma taxa do crescimento da
produtividade do trabalho). Mas o stock per capita de capital também
aumenta a 2 por cento entre os capitalistas, uma vez que o stock de capital
ascende a 3 por cento enquanto o crescimento populacional entre os capitalistas
(assumindo ser o mesmo da população geral) é de apenas 1
por cento. A desigualdade de riqueza, por outras palavras, continua a manter-se
acentuada: a população trabalhadora cujas poupanças
são pequenas continua a ter zero riqueza, ao passo que os capitalistas,
cuja proporção na população não aumenta,
continua a ter aumento na riqueza per capita.
Dito de modo diferente, a desigualdade de riqueza na sociedade aumentaria mesmo
quando as taxas de retorno sobre o capital e a taxa de crescimento do produto
são iguais, porque o capital se reproduz
(breeds)
mais rapidamente do que os capitalistas. Se os capitalistas
constituírem, digamos, os 5 por cento de topo da
população, então a distribuição de riqueza
mudaria ao longo do tempo como se segue: 5 por cento do topo 100, 95 por cento
da base zero; 5 por cento do topo 200 (após algum tempo), 95 por cento
da base zero; e assim por diante. Ninguém pode acreditar que isto
não comprometeria a democracia, quando os 5 por cento do topo consistem
ad infinitum
de pessoas das mesmas famílias.
O PROBLEMA DA DESIGUALDADE DE RIQUEZA É MUITO MAIS GRAVE
Assim, mesmo no mundo evocado por Piketty, onde não há
desemprego, nem exército de reserva do trabalho, nem problemas de
procura agregada e nenhuma preocupação sobre a questão do
mercado, ainda há razão para ficar preocupado com a desigualdade
de riqueza mesmo quando a taxa de retorno sobre o capital equaliza a taxa de
crescimento do produto. O problema da desigualdade de riqueza e os perigos que
ela coloca para o funcionamento de instituições
democráticas é em suma muito mais sério do que é
enfatizado por Piketty. E isto mesmo sem considerar a
centralização do capital, a acumulação primitiva do
capital, o deslocamento de micro produtores e todos aqueles outros factores que
acentuam a desigualdade de riqueza na sociedade mas os quais não
são considerados por Piketty.
O segundo ponto consiste no facto de que a agenda de Piketty é
basicamente social-democrata e o capitalismo não implementa qualquer
agenda social-democrata a não ser que seja ameaçado pelo
socialismo. A ideia de tributar capital, o qual é mais ou menos
sinónimo de riqueza, foi discutida há muito, em 1937, em meio
à Grande Depressão, por Michal Kalecki, o famoso economista
marxista polaco. Kalecki mostrou que de todos os diferentes meios de arrecadar
receitas para financiar as despesas governamentais para aumentar o emprego e o
produto numa economia, tributar capital era de longe a melhor
opção.
Era não só melhor do que um imposto indirecto sobre mercadorias
para aumentar o emprego e o produto (o que é uma conclusão
óbvia uma vez que um imposto sobre uma mercadoria incide também
sobre os trabalhadores e portanto destrói parcialmente a procura mesmo
quando o dispêndio do governo da receita fiscal acrescenta-se à
procura); mas era também melhor do que um imposto sobre os rendimentos
dos lucros dos capitalistas.
Isto acontece porque apesar de ambos, um imposto sobre o capital e um imposto
sobre lucros, quando idênticos para um igual aumento na despesa
governamental, deixam os lucros após impostos inalterados em
comparação com [a situação] que prevalecia
anteriormente (antes de o governo elevar seus impostos e despesas) e têm
também efeitos idênticos sobre o emprego no período em
causa. O primeiro, isto é, um imposto sobre o capital, não tem
quaisquer efeitos sobre o incentivo para investir, ao passo que um imposto
sobre lucros pode ter tais efeitos. A razão é simples: se um
capitalista investe 100 rupias na construção de uma
fábrica ou mantém 100 rupias como cash no cofre, ele de qualquer
forma teria de pagar o mesmo imposto sob um sistema de tributação
do capital; assim não haveria qualquer desincentivo especial por possuir
sua riqueza na forma de fábricas, isto é, por incentivo a
investir.
Kalecki portanto concluiu que a "tributação do capital
é talvez o melhor meio de estimular os negócios e reduzir o
desemprego. Tem todos os méritos do financiamento da despesa do Estado
através da tomada de empréstimos, mas distingue-se da tomada de
empréstimos pela vantagem de o Estado não se tornar endividado.
Mas ele teve então de acrescentar:
"É difícil acreditar, contudo, que a
tributação do capital alguma vez seja aplicada para este
objectivo numa grande escala; pois ela pode parece minar o princípio da
propriedade privada..."
e concluiu mencionando a primeira parte de uma bem conhecida
citação de Joan Robinson:
"Qualquer governo que tenha tanto o poder como a vontade de remediar os
principais defeitos do sistema capitalista, teria a vontade e o poder para
aboli-lo totalmente, ao passo que os governos que têm o poder para manter
o sistema falta-lhes o desejo de remediar seus defeitos".
Como, pode-se perguntar à luz da observação de Joan
Robinson, actuaram os Estados capitalistas do pós guerra para remediar
os maiores defeitos do sistema que consistiram na manutenção de
desemprego em grande escala e a geração de desigualdades
maciças? (Piketty por exemplo acha que as desigualdades declinaram nas
décadas após a Segunda Guerra Mundial até o fim dos anos
70). A resposta jaz no desafio socialista que confrontou o capitalismo naquele
período. Elementos da agenda social-democrata podiam tornar-se
aceitáveis para o sistema não porque ele houvesse mudado,
não porque se houvesse tornado mais "humano" ou mais
"orientado para o bem-estar", mas porque a guerra o havia deixado a
lutar pela sobrevivência em meio à cólera maciça da
classe trabalhadora e a sua relutância em voltar aos "velhos
dias". Agora que a ameaça socialista recuou, há, no
mínimo, uma tentativa de voltar atrás com as tais medidas
social-democratas que o sistema adoptara.
As medidas sociais-democratas do pós guerra foram portanto um
compromisso decorrente do desespero, uma concessão única feita
pelo sistema. Estas medidas não seriam replicadas pelo sistema pelo
facto de na sua ausência as instituições
democráticas poderem ser postas em perigo. Mas exigir tais medidas, como
faz Piketty, tem o mérito de elevar o nível de consciência
do povo trabalhador.
Acerca do livro de Piketty ver também:
Falemos a sério sobre a desigualdade
, Zoltan Zigedy
O combate à ortodoxia e o ataque à desigualdade do Prof. Piketty
, Charles Andrews
Velhas distribuições, nova economia
, Rick Wolff e Max Fraad Wolff
David Harvey, Piketty and the central contradiction of capitalism
, Michael Roberts
Livros para descarregamento
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/0504_pd/taxation-wealth
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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