A ascensão e a queda do sul global
Foi pintado um quadro da globalização que é como se segue:
os salários reais no sul são muito mais baixos do que no norte,
uma vez que o sul está sobrecarregado com grandes reservas de trabalho.
Num mundo onde o capital é móvel, ainda que o trabalho não
o seja, o capital do norte mudará a localização da sua
actividade produtiva do norte para o sul, para aproveitar destes
salários baixos, a fim de atender à procura global. Ainda que o
capital do norte não se mova para o sul, capitalistas locais no sul que
têm acesso (ou possam obter acesso) a tecnologias de
produção de vanguarda num grande número de sectores, podem
produzir no sul a fim de atender a procura global. Eles podem assim fazer com
êxito devido aos baixos salários do sul, desde que não haja
barreiras para o fluxo de bens e serviços do sul para o norte. Uma vez
que "globalização" implica a ruptura de barreiras ao
livre fluxo de bens e serviços e de capital, incluindo aquele na forma
financeira, segue-se que a era da globalização é a era da
emergência do sul, de uma difusão maciça do
"desenvolvimento", dentro da ordem capitalista mundial, do norte para
o sul, pela que desaparecerá a dualidade historicamente observada da
economia mundial.
Durante algum tempo este prognóstico parecia justificado. A China
registou enormes taxas de crescimento com base no aumento de
exportações. A Índia testemunhou um aumento significativo
em exportações do sector de serviços e também
alcançou taxas de crescimento impressionantes, em
comparação aquelas muito mais baixas na era dirigista pré
liberalização pareciam insignificantes. A ascensão nos
preços das
commodities
primárias, causada entre outras coisas pelo aumento da procura de uma
economia chinesa em rápido crescimento, ajudou a África e a
América Latina a registarem também taxas de crescimento
expressivas. Com a globalização parecia que havia chegado o
"momento" do sul. E o capital financeiro internacional publicitou
este tema da difusão do "desenvolvimento", uma vez que ele
"legitimava" a globalização, pintando-o numa luz
extraordinariamente favorável como uma ruptura com todas as dicotomias
passadas.
Este prognóstico também tinha um corolário: o sul
já não precisava de se preocupar acerca do seu próprio
mercado interno, nem acerca da distribuição igualitária de
activos entre o seu povo, acerca de reformas agrárias, acerca da
elevação do padrão de vida da sua população.
Ficar "aberto" a fluxos de bens e serviços e de capital era
tudo o que importava, uma vez que automaticamente asseguraria crescimento e
elevaria o padrão de vida da população, se não
imediatamente pelo menos ao longo do tempo mas nenhuma estratégia
de expansão do mercado interno era realmente necessário. Ao
contrário, se o sul executasse reformas estruturais para uma
distribuição igualitária de activos e rendimentos,
então a inquietação social resultante poderia mesmo
afastar a entrada do capital global e privá-lo da oportunidade de
crescimento que a globalização havia aberto. O que havia a fazer,
em suma, era evitar quaisquer reformas igualitárias e simplesmente
acalentar o neoliberalismo, uma conclusão que ia tão directamente
contra toda a tradição teórica que havia emergido das
correntes "nacionalistas" e leninistas que, por algum tempo, aquelas
correntes teóricas pareceram fora de moda e obsoletas.
CENÁRIO ALTERADO
Este cenário foi completamente alterado. A crise que em 2007 afundou o
mundo capitalista avançado propagou-se agora ao sul, com taxas de
crescimento tanto na China como a Índia a desacelerarem notavelmente. E
além disso o velho mecanismo de estímulo ao crescimento dentro da
globalização parece ter chegado ao seu fim, levando as
economistas sulistas a um beco sem saída.
Isto era de esperar. Se o estímulo ao crescimento de uma economia
decorre basicamente da sua capacidade de exportar para o mercado mundial,
então a taxa de crescimento da procura mundial terá uma
influência importante sobre a sua taxa de crescimento. A recessão
mundial, não surpreendentemente, atingiu as economias do sul, incluindo
a China e a Índia e as suas taxas de crescimento também
vieram abaixo.
Mas levanta-se aqui uma questão: uma vez que os salários sulistas
continuam a ser consideravelmente mais baixos do que os do norte, por que o
processo de "difusão" de actividades não deveria, ainda
que sob a égide do capital metropolitano ou de produtores internos,
continuar em plena força, de modo a que a taxa de crescimento nos
países de baixos salários não afectasse a taxa de
crescimento da procura mundial? Por outras palavras, por que a taxa de
crescimento da economia mundial não deveria afectar exclusivamente os
países de altos salários e excluir aqueles de baixos
salários dos seus efeitos destrutivos, até que as
diferenças salariais na economia mundial tivessem desaparecido?
A resposta a esta pergunta repousa na própria natureza da
globalização. A globalização não provocou a
transferibilidade de todas as actividades de todas as actividades, mas apenas
de algumas. Em particular, ela realmente fortaleceu o monopólio do
capital metropolitano sobre tecnologias de vanguarda num grande número
de sectores, acima de tudo através da institucionalização
global de um regime de Direitos da Propriedade intelectual. Isto significa que
naqueles sectores onde o capital metropolitano não pretende localizar
suas unidades de produção no sul, os produtores locais no sul
não estão em posição de produzir para o mercado
mundial. E o próprio capital metropolitano não pretende, em
actividades de tecnologia intensiva, mudar a sua base de produção
para o sul, privando-se de todas as vantagens que desfruta nas suas
localizações actuais no norte. O resultado de tudo isto é
que há limites para a difusão de actividades mesmo sob a
globalização actual: actividades que incorporam tecnologia barata
conseguem difundir-se no sul mas não actividades que incorporem
tecnologia avançada.
DESACELERAÇÃO DAS TAXAS DE CRESCIMENTO
Se existe um tal limite para o espectro das actividades que podem ser
difundidas, isto aponta claramente para o facto de salários mais baixos
no sul deixarem de importar no que se refere à difusão. E nas
actividades que são difundidas, a taxa de crescimento da procura mundial
determina que as taxas de crescimento dos países hospedeiros seriam
aquelas em que tal difusão se verificou. Esta é a razão
porque países do sul, que até recentemente estavam a experimentar
taxas de crescimento extraordinariamente altas, agora começam a
desacelerar.
Certamente esta desaceleração no sul não foi concomitante
com a desaceleração da economia mundial. Ao contrário, por
algum tempo parecia que o sul havia escapado ao destino do norte, que
não seria vítima da crise tal como as economias nortistas. Mas a
razão para este interregno repousa não no facto de o sul estar
livre da influência da recessão mundial mas sim em outra coisa,
nomeadamente na formação de "bolhas" num certo
número de economias do sul mesmo após o colapso da
"bolha" imobiliária nos EUA.
Uma vez que o capital financeiro internacional prefere "finanças
saudáveis", isto é, quer que os governos equilibrem seus
orçamentos (ou no máximo que tenham um défice
orçamental que não exceda uma certa percentagem do PIB,
habitualmente 3%), a utilização do instrumento orçamental
para ressuscitar a actividade económica tem primado pela sua
ausência durante a actual crise global. O que o tem substituído
é um vigoroso recurso à política monetária. No
principal país capitalista do mundo, os EUA, as taxas de juro a curto e
longo prazo foram virtualmente conduzidas para zero através da
intervenção do banco central (inclusive no mercado de
títulos a longo prazo do governo onde o banco central normalmente
não intervém).
No processo de compra de títulos do governo o Federal Reserve tem estado
a bombear enormes montantes de dinheiro, um fenómeno que é
chamado "facilidade quantitativa"
("quantitative easing").
Embora haja alguma redução do montante bombeado a cada mês
em relação ao nível anterior de US$80 mil milhões,
ainda há uma abundância de dólares a inundarem o mundo os
quais têm ido para as economias do sul com crescimento mais
rápido, os chamados "mercados emergentes", e ali criaram
"bolhas".
A desaceleração do crescimento entre as economias mais
dinâmica do sul devido à recessão mundial foi portanto,
numa certa medida, contrariada pelo estímulo à procura dado pela
formação destas "bolhas" e isto manteve as taxas
de crescimento nestas economias avançarem por algum tempo. A
influência das mesmas, no entanto, começa a desvanecer-se. O sul
que supostamente estava em ascensão está agora a testemunhar uma
queda, a qual só pode ser impedida se o mercado interno for expandido
através de medidas igualitárias quanto à riqueza e
à distribuição do rendimento, mas que, além da
China numa certa medida, nenhum outro país está a fazer de
qualquer maneira significativa (a China tem aumentado seus salários
reais internos, pelo menos nas regiões costeiras).
É improvável que a economia capitalista mundial registe qualquer
recuperação robusta no futuro previsível. Isto se deve ao
facto de na era da globalização, uma vez que os salários
reais por toda a parte são influenciados pelas grandes reservas de
trabalho sulistas, o vector dos salários mundiais tornam-se
rígidos no sentido do aumento mesmo quando a produtividade do trabalho
ascende, levando a um aumento na fatia do excedente mundial. Esta
tendência é mais uma vez reforçada pelo enfraquecimento dos
sindicatos (pelas mesmas razões). Uma vez que o rácio fora do
excedente é mais baixo do que aquele fora dos salários, esta
redistribuição de salários para lucros (e outros
rendimentos do excedente), cria uma tendência rumo à
super-produção na economia mundial.
Não se pode recorrer à intervenção do Estado para
contrariar esta tendência porque o capital financeiro, como já foi
mencionado, prefere "finanças saudáveis" e sob a
globalização prevalecem os caprichos do capital financeiro: sendo
o capital financeiro internacional e os Estados sendo
Estados-nação, qualquer violação dos seus desejos
corre o risco de provocar uma fuga de capitais das suas costas. A única
possível reacção à tendência em
direcção à super-produção na economia
mundial sob estas circunstâncias é dada pela
formação de "bolhas". Mas estas não podem ser
feitas sob medida e, assim como a sua formação pode estimular o
nível da actividade económica mundial, o seu colapso seu o efeito
oposto de mergulhar a economia mundial numa crise aguda, como temos estado a
ver.
Portanto, a economia mundial no período que vem aí é
provável que testemunhe um estado de quase estagnação, com
breves recuperações ocasionais seguidas por colapsos. As
economias sulistas, ligadas sob o regime de globalização à
economia mundial, não estão em vias de conseguir algo muito
melhor. Um aspecto notável do sue alto crescimento passado é que
mesmo naquele período houve pouco impacto deste crescimento sobre o seu
estado de desemprego e sub-emprego e portanto sobre o estado de pobreza aguda
do seu povo. Na verdade, em muitos países o despojamento de camponeses e
de pequenos produtores tradicionais que ocorreu piorou ainda mais a pobreza. Na
estagnação que os ameaça nos próximos anos, uma vez
que este despojamento não cessará (mas pode mesmo ser agravado),
a condição do povo piorará ainda mais.
A revolta popular contra um regime que produz tais resultados pode ser
protelada por algum tempo pelo recurso a várias formas de fascismo, mas
logo ficará claro que a promessa da globalização para o
sul foi uma quimera, que não há alternativa a uma
ampliação do mercado interno como meio de expandir a economia e
que as mudanças estruturais exigidas para isto tais como a
redistribuição igualitária de activos, que a esquerda
sempre enfatizou são indispensáveis para o progresso.
Do mesmo autor em resistir.info:
Os perigos da distribuição regressiva do rendimento
Sobre a crise económica global
Smith, Marx e alienação
A tributação da riqueza
Neoliberalismo e democracia
O valor do dinheiro
A natureza da actual crise capitalista
O espectro da austeridade
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
http://peoplesdemocracy.in/2014/0720_pd/rise-and-fall-global-south
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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