Os perigos da distribuição regressiva do rendimento
A argumentação dos reaccionários indianos quanto ao
orçamento não difere da dos lusitanos...
A época do orçamento está prestes a iniciar e dentro em
breve haverá sabichões a aparecerem na televisão para
dizer ao governo o que ele deveria fazer. E o conselho típico
será: restringir ou abandonar os esquemas "populistas" da
UPA
; utilizar os fundos gerados por tais restrições para dar
"incentivos" aos capitalistas para estimular o crescimento, de modo a
que a economia indiana a qual tem estado lamentavelmente estagnada nos
últimos tempos experimente uma reanimação. A moral
da estória deles, em suma, seria: uma redistribuição de
rendimento dos pobres para os ricos é boa para o crescimento.
Será de facto assim?
ARGUMENTO ERRADO
O argumento para esta posição é como se segue. Se o
governo tira uma rupia do pobre, então o seu consumo cai em uma rupia;
se esta rupia for dada aos capitalistas (ou geralmente aos ricos,
através dos quais ele indirectamente chegará às
mãos dos capitalistas), então eles gastam-na em
"investimento", isto é, aumentando o stock de capital que
já têm e portanto o stock de capital do país. Portanto uma
rupia transferida do pobre para o rico leva a uma mudança do consumo
para o investimento (um facto que não é alterado mesmo que o rico
também consuma uma parte da rupia e contribua para o investimento
só com a parte restante). Uma vez que o crescimento de uma economia
depende do investimento, uma tal comutação do consumo para
investimento aumentaria o crescimento da economia, de modo que no longo prazo
mesmo os pobres estariam em melhor situação com essa
redistribuição regressiva do rendimento do que na sua
ausência.
Contudo, este argumento está completamente errado. Ele presume que tudo
o que não é consumido é automaticamente investido. Os
economistas utilizam o termo "poupanças" para indicar a
diferença entre rendimento e consumo (o termo, a propósito,
significa só isto e nada mais). O argumento acima, dito de modo
diferente, baseia-se portanto na suposição de que todas as
"poupanças" são automaticamente investidas, o que
é uma proposição absurda, por vezes mencionada como
"Lei de Say" pois foi o economista francês Jean Baptiste Say
(ridicularizado por Marx como o "trivial" Monsieur Say) que a
propôs originalmente. Seu absurdo é evidente como se verifica pelo
facto de que se a Lei de Say fosse válida então nunca poderia
haver quaisquer crises de "super-produção" sob o
capitalismo.
Vejamos porque. Se um valor de Rs100 de bens e serviços forem produzidos
numa economia, então um valor de Rs100 de rendimento é gerado de
tal produção; estes rendimentos são parcialmente
consumidos e se a parte não consumida (ou "poupada" segundo a
linguagem dos economistas) for automaticamente investida, então tudo do
rendimento total, isto é, a parte consumida e a investida tomadas em
conjunto, gera procura por bens e serviços a qual deve chegar a Rs100 no
agregado. A procura agregada deve portanto ser sempre igual ao produto
agregado, descartando-se qualquer possibilidade de
"super-produção".
Nesta óptica, o único problema que se pode levantar numa economia
é que a composição da procura possa não
corresponder à composição do produto, isto é, que
possa haver demasiadas camisas produzidas em relação à
procura de camisas e muito poucos pentes (digamos) em relação
à procura de pentes. Mas tais discrepâncias acabam ordenadas ao
longo do tempo através do movimento do capital e do trabalho de uma
esfera para a outra. Neste exemplo da produção de camisas e de
pentes, eles não provocam depressões
(slumps)
para a economia como um todo, as quais são crises da
super-produção agregada quando mais [quantidade] de todos os bens
é produzida em relação à procura.
Tais crises de super-produção que caracterizam o capitalismo
verificam-se porque nem todas as "poupanças" são
automaticamente investidas. Pelo contrário, a decisão de quanto
investir é tomada examinando o futuro: que fluxos de retorno uma
fábrica vai proporcionar ao longo do seu tempo de vida, se este fluxo de
retornos, quando comparado com o custo de instalação da
fábrica, proporciona uma taxa de retorno que é alta bastante em
relação à taxa de juro de empréstimos e assim por
diante. Se o futuro parece negro para os capitalistas, então eles
investem menos, ao passo que se o futuro parecer brilhante então
investem mais.
No exemplo acima, se, quando um valor de Rs100 de mercadorias é
produzido e portanto é gerado um valor de Rs100 de rendimento, apenas
Rs65 forem gastas no consumo e, devido a expectativas de um futuro negro,
apenas Rs15 de valor de investimento for efectuado, então a procura
agregada total (consumo mais investimento) é de apenas Rs80. Nesse caso
o valor de Rs100 de bens não pode ser produzido; se por acaso o forem,
então stocks não vendidos acumular-se-ão, razão
pela qual os produtores capitalistas reduzirão a produção
e o desemprego subirá. Estaríamos em meio a uma crise de
super-produção.
Há dois novos pontos a serem observados aqui. Primeiro, se bem que as
expectativas dos capitalistas acerca do futuro (das quais depende o
investimento) sejam moldadas por muitos factores, um importante dentre eles
é a experiência corrente. Se a fábrica existente não
for suficientemente utilizada devido à falta de encomendas, então
os capitalistas naturalmente não se sentirão inclinados a
aumentar a sua capacidade; eles portanto restringem o investimento. Acontece o
oposto quando a capacidade existente é quase plenamente utilizada.
Assim, a experiência corrente quanto à procura, em
relação à capacidade produtiva das fábricas e
equipamentos, é um importante factor subjacente a decisões de
investimento.
Em segundo lugar, as decisões de investimento levam tempo para
frutificar. Assim, o que é realmente gasto hoje em projectos de
investimento, digamos no
metro de Kochi
, já foi decidido anteriormente. A experiência presente em
relação à capacidade de utilização afecta
portanto não tanto os gastos presentes em investimento mas sim as
decisões actuais respeitantes a futuros gastos de investimento.
Agora, mantendo em mente todos estes factores, vamos ver o que acontece quando
há uma redistribuição de rendimento dos pobres para os
ricos. Se uma rupia é transferida do pobre para o rico, a despesa em
consumo do pobre cai quase uma rupia; mas a do rico não ascende na mesma
medida, uma vez que o rácio consumo-rendimento do rico é sempre
mais baixo do que o do pobre. Assim, toda redistribuição
regressiva do rendimento reduz o consumo agregado. Por outro lado, a despesa de
investimento em qualquer período é em grande medida determinada
por decisões passadas e não muda muito no imediato. Portanto, uma
vez que a despesa em consumo cai e a despesa em investimento não muda
grande coisa, a procura agregada (a qual é a soma dos dois) cai; a
produção é reduzida e o desemprego aumenta. Desencadeia-se
uma crise de super-produção.
Mas quando isto acontece, a capacidade ociosa aumenta, de modo que
decisões quanto a investimentos no futuro são reduzidas ao
invés de serem aumentadas, como era a suposta intenção
original por trás da redistribuição regressiva de
rendimento. Em suma, uma redistribuição regressiva de rendimento,
efectuada ostensivamente para aumentar o investimento a expensas do consumo,
acaba por reduzir ambos e assim provocar uma crise de
super-produção.
Isto é uma proposição tão simples e óbvia
que nenhuma quantidade de sofismas ou prestidigitação
matemática pode "refutá-la". Mas então
levanta-se a questão: pode uma mudança na
distribuição do rendimento em favor dos ricos alguma vez ter uma
influência positiva sobre decisões de investimento? Pode, mas
só sob as seguintes circunstâncias:
Enquanto a mudança regressiva na distribuição rendimento
provocará necessariamente uma contracção da procura
agregada, pelas razões já discutidas, no período em causa
ela pode entusiasmar especuladores a terem expectativas eufóricas acerca
do futuro, as quais podem dar início a uma nova "bolha" nos
preços dos activos. Quando há uma tal "bolha" nos
preços dos activos, aqueles que os possuem tornam-se mais ricos naquele
momento. Isto pode levá-los a aumentar gastos no consumo, como fazer
férias mais caras, comprar iates, etc, e portanto tem algum efeito
positivo sobre o investimento. E se o activo for reprodutível, como uma
casa, então uma "bolha" no preço dos activos a
qual eleva seus preços muito além do seu custo de
produção (ou mais precisamente do custo de
construção) levará a maior construção
de casas, isto é, a mais investimento. Da mesma forma, uma
"bolha" nos preços de activos financeiros tornaria mais barato
obter financiamento e portanto pode estimular maior despesa de investimento no
futuro. Em suma, de uma redistribuição regressiva do rendimento
pode decorrer um efeito positivo sobre o investimento através da
criação de "bolhas". (Uma "bolha"
também terá um efeito positivo sobre o consumo como vimos, mas no
todo é provável que o consumo contraia devido à tal
redistribuição regressiva do rendimento).
Mas este facto só por si não é suficiente para assegurar
que o fluxo de investimento nos períodos seguintes realmente aumente. O
efeito "bolha" positivo, que estimula o investimento, deve ser maior
do que o efeito "capacidade de utilização" negativo, na
redução do investimento, se o fluxo do mesmo nos períodos
seguintes for maior do que teria sido na ausência da
redistribuição regressiva do rendimento. Mas se não for, e
se o efeito negativo predominar, então também ganhará
ímpeto, de modo que o seu predomínio se tornará cada vez
maior ao longo do tempo.
O POBRE A SOFRER O MÁXIMO
Com isto, vamos agora voltar-nos para o exemplo indiano. Na Índia
já há um boom no mercado de acções que tem estado
em curso desde há algum tempo. A estagnação da economia,
especialmente no sector manufactureiro, verificou-se mesmo em meio ao boom do
mercado de acções. Mais ainda: o declínio na
produção do sector de bens de capital em 2013-14 em
comparação com o ano anterior sugere que o investimento,
especialmente o investimento corporativo (precisamente o elemento que deveria
ter obtido um impulso com o boom do mercado de acções), tem sido
reduzido apesar deste boom. Portanto o efeito "bolha", que
supostamente actua numa direcção positiva no fluxo futuro de
despesas de investimento, não parece estar a ter grande impacto.
Nesta situação, se houver uma redistribuição
regressiva do rendimento afastando-o dos pobres, então o "efeito
capacidade de utilização" negativo é quase certo vir
a dominar, provocando um rebaixamento não só do consumo actual e
do perfil do consumo futuro como também do perfil de investimento
futuro. Portanto, tomando a economia como um todo, a tal
redistribuição regressiva do rendimento não levará
à ultrapassagem da estagnação que estamos a experimentar.
Temos que admitir que os poucos magnatas corporativos para os quais se
verificaria esta redistribuição regressiva do rendimento dela se
beneficiariam, mas a economia como um todo não. Ao contrário, a
estagnação da economia, cuja superação fora
mencionada como a razão para redistribuição, seria
agravada.
Qualquer redistribuição regressiva do rendimento é
repugnante devido à extorsão que impõe ao pobre. Mas mesmo
o argumento utilizado para justificá-la, nomeadamente de que superaria a
estagnação, carece de validade na verdade aconteceria o
oposto. Longe de serem beneficiários de tal redistribuição
no longo prazo, os pobres, que seriam suas vítimas imediatas, sofreriam
tanto agora como também, ainda numa maior medida, no futuro.
Do mesmo autor em resistir.info:
Sobre a crise económica global
Smith, Marx e alienação
A tributação da riqueza
Neoliberalismo e democracia
O valor do dinheiro
A natureza da actual crise capitalista
O espectro da austeridade
[*]
Economista, indiano, ver
Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2014/0629_pd/dangers-regressive-income-redistribution
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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