O declínio do capitalismo
Fim do crescimento global, ilusões imperiais e periféricas,
alternativas
A "recuperação" foi apenas, um alívio passageiro
obtida por uma sobredose de "estímulos" que preparou o caminho
para uma recaída que se anuncia terrível.
As fanfarronices dos longínquos anos 1990 sobre o milénio
capitalista neoliberal passaram a ser curiosidades históricas; talvez
suas últimas manifestações (e já defensivas) foram
as campanhas mediáticas, que nos assinalavam o rápido fim das
"turbulência financeiras e o imediato retorno da marcha
triunfante da globalização.
Agora, ao iniciar o último trimestre de 2010, as expectativas optimistas
do alto comando do planeta (chefes de estado, presidentes de bancos centrais,
gurus da moda e outras estrelas dos media) estão dando lugar
a um pessimismo avassalador. Falam da trajectórias das economias
centrais em forma de W, como se após o esvaziamento iniciado em
2007-2008 tivesse ocorrido uma recuperação real, hoje seguido por
uma segunda queda, e em cujo término chegaríamos a uma
expansão duradoura do sistema, algo como uma segunda penitência
que permitiria às elites purgar seus pecados (financeiros) e retomar o
caminho ascendente.
A "recuperação" foi apenas um alívio passageiro
obtido por uma sobredose de "estímulos" que preparou o caminho
para uma recaída que se anuncia terrível. Como o paciente
não tem cura, a sua doença não é o resultado de um
acidente, de uma mau comportamento ou de um ataque de um vírus (que a
super ciência da civilização mais sofisticada da
história, mais cedo ou mais tarde, possa controlar), mas sim o passar
inexorável do tempo, o envelhecimento irreversível que chegou
à etapa senil.
A modernidade capitalista já quase não tem horizontes de
referência, o seu futuro visível se retrai a uma velocidade
inesperada, a sua possível sobrevivência parece apenas ser
possível em forma de um cenários monstruosos, marcados por
genocídios, militarizações e destruições
ambientais, cuja magnitude não tem precedentes na história humana.
O capitalismo tornou-se finalmente mundial, no sentido mais estrito do termo,
logrando chegar até os recantos mais escondidos. Nesse sentido, pode
dizer-se que a civilização burguesa de raiz ocidental é
agora a única civilização no planeta (incluindo
adaptações culturais muito diversas). Mas a vitória da
globalização chega ao mesmo tempo em que começa o seu
declínio; em outras palavras, se olharmos para este novo século a
partir da perspectiva do domínio global de longo prazo do capitalismo,
aparece-nos como a primeira etapa de seu declínio e, em
consequência, a condição necessária, mas não
suficiente, está instalada para a emergência do post capitalismo.
Estamos entrando numa nova era caracterizada pela esfriamento do capitalismo
global e pelos fracassos das tentativas para relançar as economias
imperialistas, o que coincide com o atolamento na guerra colonial da
Eurásia. Nesta área, os Estados Unidos e seus aliados
estão a sofrer um desastre geopolítico o qual apresenta, numa
primeira aproximação, a imagem de um império cercado. Mas
por trás dessa imagem se desenvolve um processo surdo de
relançamento imperialista, de nova ofensiva apoiada por seu aparato
militar e uma ampla gama de dispositivos de comunicação e
ideológicos que a acompanham. Os Estados Unidos vão configurando
na sua marcha uma renovada estratégia global e uma política de
estado cujos primeiros passos foram dados já no fim da presidência
de George W. Bush e que tomou forma com a chegada de Obama à Casa
Branca. O império decadente, como outros impérios decadentes do
passado, tenta superar o seu declínio económico utilizando ao
máximo aquilo que considera a sua vantagem comparativa: o aparato
militar. Sua agressividade aumenta o ritmo do seu declínio industrial,
comercial e financeiro, suas ilusões militaristas são a
compensação psicológica para suas dificuldades
diplomáticas e económicas e incentiva o desenvolvimento de
aventuras perigosas, de massacres nas áreas periféricas e de
atitudes neofascistas.
A nova estratégia inclui o lançamento de uma
combinação de acções militares, comunicacionais e
diplomáticas, destinadas a fustigar os inimigos e concorrentes, provocar
disputas e desestabilizações, criando conflitos e
situações mais ou menos caóticas capazes de debilitar as
potências medias e grandes e a partir daí restaurar
posições de força actualmente em declínio. Como
exemplo, podemos citar a extensão da agressão contra o
Afeganistão-Paquistão, as ameaças (e preparativos) de
guerra contra o Irão e contra a Coreia do Norte, a
provocação de contradições entre o Japão e a
China, etc..
Além disso, desde o fim da era Bush, se desenvolvem grandes ofensivas
sobre a África e especialmente sobre a América Latina, o
tradicional quintal do fundo, hoje atravessado por governos esquerdizantes,
mais ou menos progressistas que acabaram por configurar um espaço
relativamente independente do amo colonial. Aí, a ofensiva dos EUA,
aparece como um conjunto de acções concertadas com uma forte dose
de pragmatismo, destinadas a recontrolar a região. Sua essência
fica revelada quando se detecta o seu objectivo; não se trata agora
principalmente de ocupar mercados, de dominar indústrias, de extrair
benefícios financeiros, pois já não estamos no
século XX. A mirada imperial aponta em direcção a recursos
naturais estratégicos (petróleo, grandes territórios
agrícolas produtores de biocombustíveis, água,
lítio, etc). Em muitos casos as populações locais com suas
instituições, sindicatos e o conjunto das suas redes sociais
constituem obstáculos a seus projectos, barreiras a eliminar ou a
reduzir ao estado vegetativo (nesse sentido, o que ocorreu no Iraque pode ser
considerado um caso exemplar).
É necessário tomar consciência de que o poder imperial
colocou em marcha uma estratégia de conquista de longo prazo no estilo
daquela que implementou na Eurásia; trata-se de uma tentativa
depredadora-genocida cujo único precedente na região foi o que
ocorreu há quinhentos anos com a conquista colonial.
O fenómeno é tão profundo e imenso que se torna quase
invisível aos olhares progressistas, maravilhados com os êxitos
fáceis obtidos durante a década passada. Os
progressistas buscam vias de negociação,
equilíbrios civilizados, oscilando de fracasso em fracasso
porque o interlocutor racional para suas propostas só existe na sua
imaginação. Hoje, o sistema de poder do império se apoia
numa razão de estado baseada no desespero, produzida por um
cérebro senil, em última instância, uma razão
delirante que vê os acordos, as negociações
diplomáticas ou as manobras políticas de seus próprios
aliados-lacaios como portas abertas para os seus planos agressivos. A
única coisa que realmente lhe interessa é recuperar os
territórios perdidos, desestabilizar os espaços não
controlados, golpear e golpear para voltar a golpear. A sua lógica se
constrói sobre uma sonhada vaga de reconquista cuja magnitude por vezes
ultrapassa os próprios estrategas imperiais (e obviamente, a um amplo
leque de dirigentes políticos norteamericanos).
Mas o império está doente, é gigantesco mas está
cheio de pontos fracos, o tempo corre contra ele, traz novos males
económicos, novas degradações sociais e amplifica as
áreas de autonomia e rebelião.
O esgotamento dos estímulos
No final de 2010 assistiu-se ao esgotamento dos incentivos financeiros
injectados nas potências centrais, processo iniciado a partir do
aprofundamento da crise global em 2007-2008.
O caso norte-americano foi descrito de maneira contundente por Bud Comrad,
economista chefe da Casey Research: "Em 2009, o governo federal teve um
défice fiscal de cerca de 1,5 milhões de milhões de
dólares; por seu turno, a Reserva Federal gastou cerca de 1,5
milhões de milhões de dólares para comprar dívidas
de hipotecas e, assim, evitar o colapso deste mercado. Isso significa que o
governo gastou US$ 3 milhões de milhões para uma pequena
recuperação avaliada em 3% do PIB, cerca de 400 mil
milhões de dólares em crescimento económico. Pois bem,
gastar 3 milhões de milhões de dólares para obter 400 mil
milhões é um péssimo negócio
"
[1]
.
Com as políticas de "estímulo" (uma espécie de
neokeynesianismo-neoliberal) não chegou a recuperação
durável das grandes potências; o que realmente chegou foi uma
avalanche de dívidas públicas: entre 2007 (último ano
antes da crise) e 2010, a relação entre a dívida
pública e o produto interno bruto passará de 64% a 84% na
Alemanha, de 64% a 94% na França, de 63% a 100% nos Estados Unidos e de
44% a 90% na Inglaterra
[2]
.
Logo a seguir aconteceu o que inevitavelmente teria que acontecer: iniciou-se a
segunda etapa da crise a partir da explosão da dívida
pública grega que antecipava outras na União Europeia, afectando
não só os países devedores mais vulneráveis mas
também aos seus principais credores, diante dos quais se levantava a
ameaça de uma sobreacumulação de activos de
crédito-lixo: em fins de 2009, as dívidas dos chamados
PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha,
ou seja, os países europeus expostos pelo sistema mediático como
os mais vulneráveis) em relação a França,
Inglaterra e Alemanha somavam uns 2 milhões de milhões de
dólares, soma equivalente ao 70% do Produto Interno Bruto da
França ou a 75% do da Inglaterra.
Se a primeira fase da crise foi marcada por incentivos do governo para o sector
privado e a expansão da dívida pública, a segunda fase
começa com o início do fim da generosidade do Estado (além
de algumas possíveis futuras tentativas de reactivação): a
chegada dos cortes de gastos, reduções salariais, aumentos nas
taxas de juros, em síntese, a porta de entrada para uma época de
contracção ou estagnação económica que se
irá mantendo no tempo e se estendendo no espaço.
Estamos nos movendo para o arrefecimento do motor da economia global; os
países do G7 sentem-se esmagados pela dívida na sequência
de uma reactivação débil e efémera graças
às políticas de subsídios. Suas dívidas
públicas e privadas vieram crescendo até aproximarem-se agora do
seu ponto de saturação; em 1990 as dívidas totais do G7
(públicas + privadas) representavam cerca de 160% da soma dos seus
Produtos Internos Brutos; no ano 2000 tinham subido a 180% e em 2010 superavam
380% (110% para as dívidas pública e 270% para as dívidas
privadas)
[3]
.
A escolha a enfrentar agora é simples: tentar acumular mais
dívidas, o que lhes permitiria adiar a recessão por um tempo
curto (com alta probabilidade de descontrole e elevada turbulência no
sistema global), ou entrar em breve num período de recessão (com
esperança de controle) que se anuncia muito prolongada; na realidade
não se trata de duas alternativas antagónicas, mas sim de um
único horizonte negro ao qual se pode chegar por distintos caminhos e a
várias velocidades.
Hipertrofia financeira
A chuva de estímulos, transferências massivas de renda para as
elites dominantes (com rendimentos aceleradamente decrescentes) aparece como o
capítulo mais recente de um amplo ciclo de hipertrofia financeira
originada nos anos 1970 (e talvez um pouco antes) quando o mundo capitalista,
imerso em uma gigantesca crise de sobreprodução, teve que
utilizar, a partir do seu centro imperial, os Estados Unidos, as suas duas
muletas históricas: o militarismo e o capital financeiro. Por
trás de ambos fenómenos se encontrava um velho conhecido: o
Estado, aumentando os seus gastos bélicos, flexibilizando os seus
controlos sobre os negócios financeiros, introduzindo reformas no
mercado laboral que abaixavam os salários em relação aos
aumentos da produtividade.
O processo foi encabeçado pela superpotência hegemónica mas
integrando os dois espaços sub-imperialistas associados (Europa
Ocidental e Japão). É necessário esclarecer que a
unipolaridade no mundo capitalista, com as suas consequências
económicas, políticas, culturais e militares, se iniciou em 1945
e não em 1991, embora a partir desta última data (com o derrube
da URSS) se tenha tornado planetária.
Tratou-se de uma mudança de época, de uma
transformação que permitiu controlar a crise embora degradando o
sistema de forma irreversível. As grandes burguesias centrais se
deslocaram na sua maior parte para as cúpulas dos negócios
especulativos, fundindo interesses financeiros e produtivos, convertendo a
produção e o comércio em complexas redes de
operações governadas cada vez mais por comportamentos de curto
prazo. A hegemonia parasitária, rasgo distintivo da era senil do
capitalismo tomou conta dos grandes negócios globais e engendrou uma
subcultura, na realidade uma degeneração cultural desintegradora,
baseada no individualismo consumista que foi desestruturando os fundamentos
ideológicos e institucionais da ordem burguesa. Daí derivaram os
fenómenos de crise de legitimidade dos sistemas políticos e dos
aparelhos institucionais em geral servindo de caldo de cultura para as
deformações mafiosas das burguesias centrais e periféricas
(complexo leque de lumpem-burguesias globais).
Tecto energético e destruição criadora
Do ponto de vista das relações entre o sistema económico e
a sua base material, a depredação (como comportamento central do
sistema) começou a tomar o lugar da reprodução. Na
realidade, o núcleo cultural depredador existiu desde o grande
avanço histórico do capitalismo industrial (em fins do
século XVIII, principalmente na Inglaterra) e ainda antes durante o
longo período pré-capitalista ocidental. Marcou para sempre os
sistemas tecnológicos e o desenvolvimento científico,
começando pelo seu pilar energético (carvão mineral e
depois o petróleo) e seguindo por uma ampla variedade de
explorações mineiras de recursos naturais não
renováveis (essa exacerbação depredadora é um dos
rasgos distintivos da civilização burguesa comparada com as
civilizações anteriores); no entanto, durante as etapas de
juventude e maturidade do sistema a depredação estava subordinada
à reprodução ampliada do sistema.
A mutação parasitária dos anos 1970-1980-1990 não
permitiu superar a crise de sobreprodução mas sim torná-la
crónica, embora controlada, amortecida, exacerbando a pilhagem dos
recursos naturais não renováveis e introduzindo grandes escalas
técnicas que possibilitaram a sobre-exploração de recursos
renováveis, violentando, destruindo os seus ciclos de
reprodução (é o caso da agricultura baseada em
transgénicos e herbicidas de alto poder destrutivo, como o glifosato).
Isso ocorria quando vários desses recursos (por exemplo,
hidrocarbonetos), se aproximavam do seu nível máximo de
extração.
A avalanche do curto-prazismo (da financeirização
cultural do capitalismo) liquidou toda possibilidade de
planificação a longo prazo de uma possível
reconversão energética, o que coloca o tema da viabilidade
histórico-civilizacional das vias de reconversão (economia de
energia, recursos energéticos renováveis, etc). Viabilidade no
contexto das relações de poder existentes, das suas estruturas
industriais e agrícolas, em síntese, do capitalismo concreto,
inseparável da obtenção de lucros-aqui-e
agora. Não nos referimos já à probabilidade da
sobrevivência das gerações futuras.
O sistema tecnológico do capitalismo não estava preparado para
uma reconversão energética, a questão não era uma
preocupação prioritária para as elites dominantes (o que
não lhes impedia de preocupar-se com o problema). Não
é a primeira vez na história do declínio das
civilizações que os interesses imediatos das classes superiores
entram em antagonismo com a sobrevivência a longo prazo.
O tecto energético que encontrou a reprodução do
capitalismo converge com outros tectos de recursos não renováveis
que afectarão rapidamente um amplo espectro de actividades mineiras. A
isto se soma a exploração selvagem dos recursos naturais
renováveis. Apresenta-se assim um cenário de esgotamento geral de
recursos naturais a partir do sistema tecnológico disponível,
mais concretamente, do sistema social e seus paradigmas, quer dizer, do
capitalismo como estilo de vida (consumista, individualista,
autoritário-centralizador-depredador).
Da crise crônica de sobreprodução para a crise geral de
subprodução. O longo ciclo do capitalismo industrial.
Por outro lado, a crise de recursos naturais, indissociável do desastre
ambiental, converge com a crise da hegemonia parasitária. Nas primeiras
décadas da crise crónica, o processo de
financeirização impulsionou a expansão consumista
(sobretudo nos países ricos), a concretização de
importantes projectos industriais e de subsídios públicos para a
procura interna, de grandes aventuras militares imperialistas; mas ao fim do
caminho as euforias se dissiparam para deixar a descoberto imensas montanhas de
dívidas públicas e privadas. A festa financeira (que teve durante
o seu trajecto numerosos acidentes) se converte em tecto financeiro que
bloqueia o crescimento.
As turbulências de 2007-2008 podem ser consideradas como o ponto de
partida para o crepúsculo do sistema; a multiplicidade de crises que
explodiram nesse período (financeira, produtiva, alimentaria,
energética) convergiram com outras como a ambiental ou a do Complexo
Industrial Militar do Império, atolado nas suas guerras
asiáticas. Esse somatório de crises não resolvidas travam,
impedem, a reprodução ampliada do sistema.
Vista a partir do longo prazo, a sucessão de crises de
sobreprodução no capitalismo ocidental durante o século
XIX não marcou um simples encadeamento de quedas e
recuperações a níveis cada vez mais altos de
desenvolvimento das forças produtivas; o que acontecia é que a
cada depressão o sistema se recompunha mas acumulando no seu trajecto
massas crescentes de parasitismo.
O cancro financeiro irrompeu de forma triunfal, dominante entre fins do
século XIX e começos do século XX, obtendo o controlo
absoluto do sistema sete ou oito décadas depois; mas o seu
desenvolvimento havia começado muito tempo antes, financiando estruturas
industriais e comerciais cada vez mais concentradas e os estados imperialistas
de onde se expandiam as burocracias civis e militares. A hegemonia da ideologia
do progresso e do discurso produtivista serviu para ocultar o fenómeno,
instalou a ideia de que o capitalismo, ao invés das
civilizações anteriores, não acumulava parasitismo mas
somente forças produtivas que, ao expandir-se, criavam problemas de
inadaptação, superáveis no interior do sistema mundial,
resolvidos através de processos de destruição
criadora. O parasitismo capitalista em grande escala, quando se tornava
evidente, era considerado como uma forma de atraso ou uma
degeneração passageira na marcha ascendente da
modernidade.
Essa maré ideológica influenciou também boa parte do
pensamento anticapitalista (em última instância
progressista) dos séculos XIX e XX, convencido de que a
corrente imparável do desenvolvimento das forças produtivas
terminaria por afrontar as relações capitalistas de
produção, saltando por cima delas, esmagando-as com uma avalanche
revolucionária de operários industriais dos países mais
avançados aos quais se seguiriam os dos chamados
países atrasados. A ilusão do progresso indefinido
ocultou a perspectiva da decadência e dessa maneira deixou a meio caminho
o pensamento crítico, lhe retirou radicalidade, com consequências
culturais negativas para os movimentos de emancipação dos
oprimidos do centro e da periferia.
Por seu lado, o militarismo moderno tem as suas raízes mais recentes no
século XIX, desde as guerras napoleónicas, chegando à
guerra franco-prussiana, até irromper, na primeira guerra mundial, como
Complexo Militar Industrial (embora seja possível encontrar
antecedentes importantes no Ocidente nas primeiras indústrias de
armamento de tipo moderno, aproximadamente a partir do século XVI). No
seu começo, ele foi apercebido como um instrumento privilegiado das
estratégias imperialistas e como reactivador económico do
capitalismo, mas este é apenas um aspecto do fenómeno que
ocultava ou subestimava a sua profunda natureza parasitária, o facto de
que por trás do monstro militar ao serviço da
reprodução do sistema se ocultava um monstro muito mais poderoso
a longo prazo: o do consumo improdutivo, causador de défices
públicos que, no fim do seu percurso, não incentivam mais a
expansão mas sim a estagnação ou a
contracção da economia.
Actualmente, o Complexo Militar Industrial norte-americano (em torno do qual se
reproduzem os seus sócios da NATO) gasta em termos reais mais de um
bilião (um milhão de milhões) de dólares, contribui
de maneira crescente para o défice fiscal e, por conseguinte, para o
endividamento do Império (e a prosperidade dos negócios
financeiros beneficiários do dito défice). A sua eficácia
militar é declinante mas a sua burocracia é cada vez maior, a
corrupção penetrou em todas as suas actividades e já
não é o grande gerador de empregos, como em outras épocas,
pois o desenvolvimento da tecnologia industrial-militar reduziu
significativamente esta função (a época do keynesianismo
militar como eficaz estratégia anti-crise pertence ao passado). Ao mesmo
tempo, é possível constatar que nos Estados Unidos se produziu
uma integração de negócios entre a esfera
industrial-militar, as redes financeiras, as grande empresas
energéticas, os grupos mafiosos, as empresas de
segurança e outras actividades muito dinâmicas, conformando assim
o espaço dominante do sistema de poder imperial.
Nem a crise energética em torno da chegada do Peak Oil (a
faixa de máxima produção petrolífera mundial, a
partir da qual se desenvolve o seu declínio) deveria ser restringida
à história das últimas décadas; é
necessário entendê-la como a fase declinante do amplo ciclo da
exploração moderna dos recursos naturais não
renováveis, desde o começo do capitalismo industrial que
pôde realizar o seu arranque e posterior expansão graças a
esses combustíveis energéticos abundantes, baratos e facilmente
transportáveis, desenvolvendo em primeiro lugar o ciclo do
carvão, sob hegemonia inglesa no século XIX, e logo o ciclo do
petróleo, sob hegemonia norte-americana no século XX. Este ciclo
energético condicionou todo o desenvolvimento tecnológico do
sistema e foi a vanguarda da dinâmica depredadora do capitalismo
estendida ao conjunto dos recursos naturais e do ecossistema em geral.
Em síntese, o desenvolvimento da civilização burguesa
durante os dois últimos séculos (com raízes num passado
ocidental muito mais antigo) terminou por engendrar um processo
irreversível de decadência; a depredação ambiental e
a expansão parasitária, estreitamente interrelacionadas,
estão na base do fenómeno. A dinâmica do desenvolvimento
económico do capitalismo, marcada por uma sucessão de crises de
sobreprodução, constitui o motor do processo
depredador-parasitário que conduz inevitavelmente a uma crise prolongada
de subprodução (o capitalismo obrigado a crescer e a depredar
indefinidamente para não perecer, termina por destruir a sua base
material). Existe uma interrelação dialéctica perversa
entre a expansão da massa global de lucros, sua velocidade crescente, a
multiplicação das estruturas burocráticas civis e
militares de controlo social, a concentração mundial de
rendimentos, a subida da maré parasitária e a
depredação do ecossistema.
Isso significa que a superação necessária do capitalismo
não aparece como o passo indispensável para prosseguir a
marcha do progresso, mas, em primeiro lugar, como tentativa de
sobrevivência humana e do seu contexto ambiental.
A decadência é a última etapa de um amplo super ciclo
histórico, sua fase declinante, seu envelhecimento irreversível
(sua senilidade). Extremando os reducionismos, tão praticados pelas
ciências sociais, poderíamos falar de
ciclos de distinta duração: energético,
alimentar, militar, financeiro, produtivo, estatal, etc., e assim descrever em
cada caso percursos que se iniciam no Ocidente, entre fins do século
XVIII e começos do século XIX, com raízes anteriores e
envolvendo espaços geográficos crescentes até assumir
finalmente uma dimensão planetária, para, em seguida, cada um
deles entrar em declínio. A coincidência histórica de todos
esses declínios e a fácil detecção de densas
interrelações entre todos esses ciclos nos sugerem a
existência de um único super ciclo que os inclui a todos. Trata-se
do ciclo da civilização burguesa que se expressa através
de uma multiplicidade de aspectos (produtivo, moral,
político, militar, ambiental, etc.).
Declínio do Império, relançamento militarista,
ilusões periféricas e insurreição global
Toda a história do capitalismo gira, desde fins do século XVIII,
em torno do domínio, primeiro inglês e em seguida estadunidense.
Capitalismo mundial, imperialismo e predomínio anglo-norteamericano
constituem um só fenómeno (agora decadente).
A articulação sistémica do capitalismo aparece
historicamente indissociável do articulador imperial, mas num futuro
previsível não aparece nenhum novo imperialismo global
ascendente; em consequência, o planeta burguês vai perdendo uma
peça decisiva do seu processo de reprodução. A
União Europeia e o Japão são tão decadentes como os
Estados Unidos. A China baseou a sua espectacular expansão numa grande
ofensiva exportadora para os mercados, agora em declínio, dessas
três potências centrais.
O capitalismo vai ficando à deriva a menos que prognostiquemos o
surgimento próximo de um tipo de mão invisível universal
(e burguesa) capaz de impor a ordem (monetária, comercial,
político-militar,etc.). Neste caso estaríamos extrapolando ao
nível da humanidade futura a referência à mão
invisível (realmente inexistente) do mercado capitalista afirmada pela
teoria económica liberal.
O declínio da maior civilização jamais conhecida na
história humana apresenta vários cenários para o futuro:
alternativas de auto-destruição e de regeneração,
de genocídio e de solidariedade, de desastre ecológico e de
reconciliação do homem com seu meio ambiente. Estamos retomando
um velho debate sobre alternativas interrompido pela euforia neoliberal; a
crise rompe o bloqueio e nos permite pensar o futuro.
Voltemos à reflexão inicial deste texto: o início do
século XXI assinala um paradoxo crucial: o capitalismo assumiu
claramente uma dimensão global, mas iniciou igualmente o seu
declínio.
Por outro lado, cem anos de revoluções e contra
revoluções periféricas produziram grandes mudanças
culturais: agora na periferia (completamente modernizada, isto é,
completamente subdesenvolvida) existe um enorme potencial de autonomia nas
classes baixas. Ali se apresenta o que de maneira talvez demasiado simplista
poderíamos definir como património histórico
democrático forjado ao longo do século XX. Os povos
periféricos submergidos construíram sindicatos,
organizações camponesas, participaram em votações
de todo o tipo, fizeram revoluções (muitas delas com bandeiras
socialistas), reformas democratizantes; na maior parte das vezes fracassaram.
Tudo isto forma parte da sua memória, não desapareceu; pelo
contrário, é experiência acumulada, processada em geral de
maneira subterrânea, invisível para os observadores superficiais.
Isto foi reforçado pela própria modernização que,
por exemplo, lhes fornece instrumentos comunicacionais que lhes permite
interactuar, intercambiar informações, socializar
reflexões. Finalmente, a decadência geral do sistema, o
possível começo do fim da sua hegemonia cultural, abre um
gigantesco espaço para a criatividade dos oprimidos.
A guerra euro-asiática engendrou um imenso pântano
geopolítico do qual os ocidentais não sabem como sair, consolidou
e estendeu espaços de rebelião e autonomia cuja
contenção é cada dia mais difícil,
situação perante a qual o Império redobra as suas
ameaças e agressões. A Coreia do Norte não pôde ser
dobrada, nem tão pouco o Irão, a resistência palestina
segue de pé e Israel, pela primeira vez na sua história, sofreu
uma derrota militar no sul do Líbano; a guerra do Iraque não
pôde ser ganha pelos Estados Unidos o que os coloca ali numa
situação na qual todos os caminhos conduzem à perda do
poder nesse país.
No outro extremo da periferia, América Latina, o despertar popular
transcende os governos progressistas e deteriora estrategicamente as poucas
oligarquias direitistas que ainda controlam o poder político. O projecto
estadunidense de restauração de governos amigos
tropeça num escolho fundamental: a profunda degradação das
elites aliadas, sua incapacidade para governar em vários dos
países candidatos à viragem para a direita, sendo que o
Império não pode (não está em
condições) de deter ou desacelerar a sua ofensiva, à
espera de melhores contextos políticos. O ritmo da sua crise
sobredetermina a sua estratégia regional; em última
instância, isto não é completamente diferente da
situação na Ásia onde a dinâmica imperial combina a
sofisticação e a variedade de técnicas e estruturas
operativas disponíveis com um comportamento absolutamente rude.
Se observarmos o conjunto da periferia actual a partir do longo prazo
histórico, vemos um poder imperial desorientado enfrentando uma onda
gigantesca e plural de povos submergidos desde o Afeganistão até
a Bolívia, desde a Colômbia até as Filipinas,
expressão da crise da modernidade subdesenvolvida. É o
começo de um despertar popular muito superior ao do século XX.
Em meio a estas tensões aparece um leque colorido de ilusões
periféricas fundadas na possibilidade de gerar uma desconexão
encabeçada pelas nações chamadas emergentes; o que
é no fundo uma fantasia que não toma em
consideração o facto decisivo de que todas as
emergências (as da Rússia, China, Brasil,
Índia, etc) se apoiam na sua inserção nos mercados dos
países ricos. Se esses estados que vêm praticando
neokeynesianismos mais ou menos audazes, compensando o esfriamento global,
quisessem aprofundar esses impulsos de mercado interno e/ou
interperiféricos, se encontariam, cedo ou tarde, com as barreiras
sociais dos seus próprios sistemas económicos, ou, para
descrevê-lo de outra maneira, com os seus próprios capitalismos
realmente existentes, em especial, os interesses das suas burguesias
financeirizadas e transnacionalizadas.
À medida que a crise se aprofunde, que as debilidades do capitalismo
periférico se tornem mais visíveis, que as bases sociais internas
das burguesias imperialistas se deteriorem e que o desespero imperial se
agudize, a vaga popular global já em marcha não terá outro
caminho senão o da sua radicalização, sua
transformação em insurreição revolucionária.
Complexa, possuindo distintas velocidades e com construções
(contra)culturais diversas, avançando a partir de distintas identidades,
até à superação do inferno. É somente a
partir dessa perspectiva que é possível pensar o postcapitalismo,
o renascimento (a reconfiguração) da utopia comunista, já
não como resultado da ciência social elitista, a
partir da superação pelo interior da civilização
burguesa através de um tipo de abolição suave
mas sim da sua negação integral em tanto que expansão
ilimitada da pluralidade, recuperando as velhas culturas igualitárias,
solidárias, elevando-as até um colectivismo renovado.
Os movimentos insurgentes da periferia actual costumam ser apresentados pelos
meios globais de comunicação como causa perdidas, como
resistências primitivas à modernização ou como o
resultado da actividade de misteriosos grupos de terroristas. A
resistência no Afeganistão e na Palestina ou a
insurreição colombiana aparecem nessa propaganda protagonizando
guerras que nunca poderiam ganhar frente a aparelhos super poderosos;
não faltam os pacificadores profissionais que aconselham os combatentes
a pôr de lado a sua intransigência e negociar alguma forma de
rendição vantajosa antes que seja tarde demais. O
século XX deveria ser uma boa escola para aqueles que se impressionam
com o gigantismo e a eficácia dos aparelhos militares (e dos aparelhos
burocráticos em geral) porque este século viu o nascimento
vitorioso dos grandes aparelhos modernos, como é hoje o Complexo Militar
Industrial dos Estados Unidos, e também foi testemunha da sua
ruína, da sua derrota diante de povos em armas, diante da criatividade e
da insubmissão dos de baixo.
Nos anos 1990, os neoliberais nos explicavam que a globalização
constituía um fenómeno irreversível, que o capitalismo
havia adquirido uma dimensão planetária que arrasava com todos os
obstáculos nacionais ou locais. Não se davam conta de que essa
irreversibilidade, transformada pouco depois em decadência global do
sistema, abria as portas a um sujeito inesperado: a insurreição
global do século XXI; o tempo (a marcha da crise) joga a seu favor. O
império e seus aliados directos e indirectos quiseram fazê-la
abortar, começando por tentar apagar a sua dimensão universal,
tratando mediaticamente de transformá-la (fragmentá-la) em uma
modesta colecção de resíduos locais sem futuro, mas essas
supostas resistências residuais possuem uma vitalidade surpreendente, se
reproduzem, sobrevivem a todas as tentativas de extermínio e quando
visionamos o percurso futuro do declínio civilizacional em curso, a
profunda degradação do mundo burguês, o seu caminhar para a
barbárie antecipando crimes ainda maiores, então a
globalização da insurreição popular aparece como o
caminho mais seguro para a emancipação das maiorias submergidas,
o que é também a sua única possibilidade de
sobrevivência digna.
NOTAS:
(1) Bud Comrad, 'Beyond the Point of No Return', GooldSeek, 12 de Maio de 2010.
(2) 'La explosion de la deuda pública. Previsiones de la OCDE para
2010', AFP,25-11-2009.
(3) Fonte: FMI, OCDE, McKinsey Global Institute.
Textos do autor em resistir.info:
No princípio de uma longa viagem
, 28/Dez/09
A crise na era senil do capitalismo
, 16/Mar/09
Rumo à desintegração do sistema global
, 04/Mar/09
A junção depressiva global (radicalização da crise)
, 18/Fev/09
Rostos da crise: Reflexões sobre o colapso da civilização burguesa
, 12/Nov/08
Inflação, agronegócios e crise de governabilidade
, 21/Jul/08
O naufrágio do centro do mundo: Os EUA entre a recessão e o colapso
, 08/Mai/08
No princípio da segunda etapa da crise global
, 13/Fev/08
Estados Unidos: a irresistível chegada da recessão
, 06/Jun/07
O declínio do dólar… e dos Estados Unidos
, 18/Jan/07
A solidão de Bush, o fracasso dos falcões e o desinchar das bolhas
, 27/Ago/07
A irresistível ascensão do ouro
, 03/Jul/06
O reinado do poder confuso
, 12/Abr/06
Os primeiros passos da megacrise
, 24/Jan/06
As más notícias da petroguerra
, 20/Jul/05
Pensar a decadência: O conceito de crise em princípios do século XXI
, 11/Abr/05
Os Estados Unidos no centro da crise mundial
, 01/Nov/04
A segunda etapa do governo Kirchner
, 07/Out/04
A vida depois da morte: A viabilidade do pós-capitalismo
, 07/Set/04
[*]
Doutorado em economia e professor catedrático das universidades de
Buenos Aires e Córdoba, na Argentina, e de Havana, em Cuba. É
autor de 'Capitalismo senil: a grande crise da economia global', publicado no
Brasil pela editora Record (2001). Dirige o Instituto de Pesquisa
Científica da Universidade da Bacia do Prata e publica regularmente em
Le Monde Diplomatique
(em castelhano). Este texto é uma comunicação ao Primeiro
Encontro Internacional sobre "O direito dos povos à revolta",
Caracas 7-8-9 Outubro de 2010, o dia do guerrilheiro heróico.
A tradução em português foi publicada originalmente em
http://www.ocomuneiro.com/nr12_2_jorgebeinstein.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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