Para além da recessão
|
"A peste já está aqui,
que fazer quando chega a peste?" Homero |
A recessão instalou-se no centro do império. O debate agora gira
em torno da sua profundidade, duração e alcance mundial. A corte
de admiradores direitistas ou progressistas do capitalismo global, que nos
sufocou nos últimos anos com as suas reiterações acerca da
solidez do sistema, está agora em pleno recuo táctico. Seus
integrantes já não negam a crise mas tentam retirar-lhe
dramatismo, reduzir suas raízes e amplitude. Alguns ensaiam
explicações anedóticas, outros classificam-na como
"crise cíclica",
ou seja, passageira. A maior parte refugia-se na explicação
simplista que reduz o fenómeno a uma grande perturbação
financeira combinada com um surto pessimista dos consumidores norte-americanos
provocado pelos devedores morosos dos Estados Unidos (que não pagam os
seus créditos imobiliários)... e por aqueles que lhes concederam
empréstimos de modo demasiado generoso. Segundo esta gente, os
problemas serão prontamente superados graças às
intervenções da Reserva Federal, da Casa Branca e da autoridades
políticas e monetárias das outras grandes potências. O
mítico estandarte do poder invencível dos donos do sistema ainda
drapeja nas alturas, ainda que se vá desgastando rapidamente ao ritmo
dos trovões globais.
Crédito, consumo e dívidas
Se se circunscrever a crise ao desinchar da bolha imobiliária
norte-americana e seus impactos colaterais nos Estados Unidos e no resto do
mundo, a
"solução"
parece clara: estimular os consumidores e investidores, subir a
despesa
pública e injectar liquidez no mercado. É o que estão a
fazer agora o governo de Bush e a Reserva Federal. O primeiro acaba de
promover uma baixa de impostos e uma despesa estatal récorde para 2009
de mais de US$3 milhões de milhões e, em consequência, um
défice fiscal gigantesco pelo que a dívida em breve
ultrapassará os US$10 milhões de milhões. Naturalmente
Bush fá-lo com posições de direita: as
reduções fiscais beneficiarão basicamente os ricos e a
classe média alta. A maior despesa pública privilegiará
as forças armadas que disporão do mais alto volume de fundos de
toda a história norte-americana: a
despesa militar total
dos Estados Unidos em 2008 chegou a cerca de US$1,2 milhões de
milhões (se somarmos às verbas do Departamento da Defesa as dos
demais sectores do Estado), segundo o projecto de orçamento enviado por
Bush ao Parlamento. Em 2009 o referido número será muito mais
alto. Por sua vez, a Reserva Federal baixa cada vez mais as taxas de juros.
O que eles estão a fazer agora é uma espécie de
repetição, em condições infinitamente mais graves,
daquilo que já fizeram em 2001 não têm outro
libreto. Mas naquele momento a dívida pública norte-americana
atingia os US$5,7 milhões de milhões e agora ronda os US$9,2
milhões de milhões. E se somarmos à mesma as do resto dos
sectores público privado chega-se aos US$50 milhões de
milhões (o equivalente ao Produto Bruto Mundial). A isto é
necessário acrescentar a acumulação de défice
fiscais e comerciais, e um volume de
gastos militares totais
que em 2009 poderia chegar a representar 10% do PIB norte-americano.
Em 2001 a situação era difícil mas existiam margens
económicas e políticas que permitiram ao poder (mediante o
auto-atentado terrorista) sair da recessão acelerando as
tendências dominantes do sistema: hipertrofia especulativa,
concentração de rendimentos, consumismo (com forte queda da
poupança pessoal), crescimento das dívidas publicas e privadas e
keynesianismo militar. Todos estes aspectos exacerbaram-se ao extremo nos
últimos sete anos. As aventuras coloniais na Eurásia terminaram
no pântano (o aparelho militar surge agora como uma maquinaria pesada
tão refinada e cara quanto incompetente) enquanto o Estado e a
população estão esmagados pelas dívidas.
A recessão estado-unidense é mais uma
crise de dívida
do que uma depressão provocada pelo arrefecimento do consumo, a
primeira é o fundamento da segunda. A super dívida estatal
chegou a um ponto tal que a sua expansão entrou num círculo
vicioso que liga de maneira perversa emissões de títulos
públicos e de dólares cada vez mais depreciados. Caso
contrário, o Estado deveria travar seus gastos e/ou incrementar a
arrecadação fiscal, o que afundaria a economia numa
recessão ainda mais profunda.
A população com rendimentos médios e baixos, por sua vez,
sofreu as consequências do estancamento dos seus salários reais (e
da descida num importante sector). O rendimento familiar médio
actualmente é inferior ao do ano 2000. Quando foi lançada a
bolha imobiliária com uma avalanche de créditos baratos estava-se
em simultâneo a restringir a solvência a médio prazo de uma
grande massa de devedores. A serpente neoliberal acabou por morder a sua
própria cauda: em meados de 2006 o mercado
imobiliário estava
saturado, os preços das habitações começaram a
descer em 2007 explodiram os incumprimentos. O que se seguiu é bem
conhecido.
Nos anos do auge o tema do iminente esgotamento do crescimento da economia
norte-americana sobrecarregada de dívidas havia sido abertamente
ignorado ou negado por jornalistas, peritos, grandes empresários e
dirigentes políticos da super-potência. Os negócios
prosperavam. Quem se teria atrevido nesse período a dizer que os
grandes lucros dessa época eram a base de um desastre próximo?
Os poucos que se atreveram foram marginalizados ou ridicularizados, assinalados
como
catastrofistas,
pessoas amargas ou amantes dos terramotos.
Mas se a direita pretende fazer mais do mesmo, o progressismo imperial
não vai muito mais longe. Joseph Stiglitz, expressão desse
sector, acaba de propor uma variante
"popular"
do remédio. A variante orienta-se também para a
reabilitação do consumo incrementando a despesa pública e
consequentemente o défice fiscal e a dívida. Segundo esta
proposta não seriam beneficiados e os ricos e sim os desempregados, os
programas de desenvolvimento da infraestrutura, do sector educativo, da
saúde, da poupança de energia e de redução da
contaminação ambiental
[1]
. A aspirina progressista (incompatível com o actual sistema de poder
estado-unidense) e a repetição conservadora não
senão pequenos paliativos impotentes perante uma realidade que os
ultrapassa.
Recessão e inflação
Agora que a recessão chegou ao centro da economia mundial, suas
autoridades entram em pânico. Percebem que as suas acções
são ineficazes ou inclusive contra-producentes. As medidas
anti-recessivas como os cortes fiscais em curso, as drásticas baixas na
taxa de juro ou o incremento da despesa pública trarão mais
défices e dívidas. E se chegarem a ter algum êxito, ainda
que seja medíocre, alentarão a inflação. Em ambos
os caos impulsionarão a depreciação internacional do
dólar. A recessão e a inflação chegam juntas
porque a crise financeira converge com a crise energética que faz subir
o preço do petróleo, arrastando para cima um amplo leque de
matérias-primas. Os custos de produção aumentam
não só quando cresce a economia mundial e em consequência a
procura desses produtos como também quando a mesma se estanca e
inclusive quando cai. Isto é assim porque a extracção
petrolífera mundial está a chegar ao seu máximo
nível e atrás dela as de outros recursos energéticos
não renováveis como o carvão e o urânio que
se encaminham para a mesma situação a mais longo prazo, mas bem
antes de meados do século XXI
[2]
. E, como sabemos, a substituição do petróleo pelos
biocombustíveis leva ao rápido encarecimento generalizado dos
preços da produção agrícola, em especial a dos
alimentos.
Em síntese, as autoridades norte-americanas sabem que se tentarem
reverter a recessão reanimando o mercado alentarão a
inflação e a queda do dólar, o que terminará por
trazer mais recessão. Mas sabem também que procurarem travar a
inflação arrefecendo a economia aprofundariam a
recessão:
um beco sem saída.
Alguns peritos, por enquanto discretos, começam a iludir-se com a
possibilidade de um estancamento prolongado mas ordenado, sem explosões
sociais nem crises institucionais graves o modelo seria o Japão
da década de 1990. Entretanto, esquecem que se tratava de uma
potência de segunda ordem que dispunha naquele momento de duas
tábuas de salvação extremas que suavizaram a sua
aterragem. Em primeiro lugar, as bolhas de prosperidade da Ásia do
Leste que lhe deram oxigénio até a crise de 1997, e sobretudo os
Estados Unidos, seu principal cliente, cujo mercado absorveu
exportações e investimentos japoneses. Mas os Estados Unidos
são demasiado grandes, não existe uma tábua de
salvação externa à sua media, o resto do mundo já
vinha amenizando seus desajustes fiscais e comerciais acumulando montanhas de
papeis dolarizados que cada diz valem menos. Mas essa capacidade está
quase esgotada.
A ilusão do desligamento
Na última reunião de Davos discutiu-se muito acerca do
possível "desligamento" entre os Estados Unidos e as outras
potências industriais que desse modo tomariam distância do
naufrágio do seu irmão maior.
Até hoje a globalização era apresentada pela propaganda
neoliberal como uma teia da qual ninguém podia escapar. Agora, sem
maiores explicações, afirma-se o contrário. A rede
global, ao que parece, permitiria a uma ampla variedade de países que
saíssem do desastre. Dirigentes e comunicadores de algumas economia
desenvolvidas incluem-nos na lista de sobreviventes. Até mesmo em
numerosos países periféricos os meios de
comunicação locais tentam tranquilizar as suas
populações explicando-lhes que graças ao nível das
suas reservas (dolarizadas), da natureza das suas exportações, da
sua localização geográfica ou outra
bênção do destino, esse país não será
afectado pela recessão estado-unidense (ou se-lo-á muito pouco).
Mas acontece que para desgraças dos neoliberais os
neoliberais tinham razão: as interdependências
económicas
mundiais são tão densas que, como estamos a comprovar
diariamente, não há maneira de desconectar os solavancos
estado-unidenses (bancários, bursáteis, etc) do funcionamento
financeiro internacional. A bolha imobiliária norte-americana foi a
vanguarda de uma variada série de bolhas semelhantes em diferentes
lugares do planeta. Países como a Espanha, Inglaterra, Holanda,
Austrália, Irlanda, Nova Zelância foram parte activa da festa. Na
Espanha já começou o desinchamento. Recentemente Carlos March,
dirigente de um dos grupos financeiros decisivos desse país, declarou
que
"a crise imobiliária (espanhola) vai durar muito tempo, pelo menos
três anos"
[3]
. Além disso, numerosos bancos europeus e asiáticos são
golpeados pela desvalorização dos títulos norte-americanos
apoiados em dívidas hipotecárias de alto risco que compraram a
mãos cheias em pleno auge especulativo. A recessão
estado-unidense já afecta o Japão, estreitamente associado
à super-potência aos níveis comercial, financeiro,
político-militar, etc. O Japão e os Estados Unidos compram o
grosso das exportações industriais da China, coluna vertebral da
sua prosperidade económica que por sua vez acumula nas suas reservas
mais de US$1,4 milhões de milhões de dólares e
papéis dolarizados e é atravessada por várias bolhas
(bursátil, imobiliária, etc)
[4]
.
Muito mais fortes ainda são as inteconexões entre a União
Europeia e os Estados Unidos... o que não impediu o presidente do
Eurogrupo, Jean-Claude Juncker, de declarar (em princípios de Fevereiro
de 2008 e sem que se movesse um só músculo da sua cara) que
"na Europa não há risco de recessão, ao
contrário dos Estados Unidos"
[5]
.
Estas inter-relações planetárias do capitalismo por vezes
foram explicada em termos de "roubo" da super-potência ao resto
do mundo, o qual durante um longo período forneceu-lhe bens e capitais
em troca da papéis de valor decrescente. Isto permitiu ao
Império consumir e fazer guerras muito acima das suas possibilidades
produtivas. É o que acaba de afirmar George Soros
[6]
. Aquilo que durante muitos anos era apresentado como um argumento
"anti-imperialista", "a partir da esquerda", foi agora
assumido pelo personagem-paradigma da especulação financeira
mundial. Segundo ele, a actual crise,
"a mais grave desde o fim da Segunda Guerra Mundial",
marcaria o fim do reinado do dólar, a recessão no mundo
desenvolvido e a ascensão de países como a China, a Índia
e alguns países exportadores de petróleo. Em síntese, os
Estados Unidos e possivelmente uma parte da Europa teriam chegado ao seu ocaso
mas o capitalismo global ficaria a salvo graças à
injecção de sangue jovem proveniente da periferia... o que
permitiria a Soros e seus colegas continuarem de modo renovada os seus
engenhosos negócios...
Mas a realidade é menos simples. O mercado norte-americano foi o
espaço decisivo para a colocação de mercadorias e
excedentes de capitais do resto do mundo. Graças à sua
capacidade de absorção (reforçada pelo conjunto do
capitalismo mundial), as burguesia da Europa, Ásia e outros continentes
puderam realizar operações especulativas, investimentos
produtivos e exportações sem os quais suas prosperidades teriam
sido impossíveis. A partir da crise crónica de
super-produção mundial (com centro nos países
desenvolvidos) iniciada em fins dos anos 1960, a economia estado-unidense, cada
vez mais parasitária, foi o principal sustentáculo da procura
global. As classes dirigentes da China, Índia, Japão ou Europa
não foram roubadas nem coagidas a cederem bens e capitais à
super-potência... só estavam a sustentar o seu principal cliente
com créditos e preços acessíveis.
Trata-se de uma tecido internacional muito complexo em cuja cúspide
encontram-se as elites dirigentes dos Estados Unidos e numerosos países
ricos e pobres, ao passo que na base apinham-se os excluídos e
trabalhadores super-explorados da periferia e uma massa crescente de
empobrecidos dos países industrializados. A fractura desse pilar
central faz agora cambalear o sistema mundial.
O discurso acerca da ascensão do capitalismo periférico enquanto
futuro líder do mundo surge como a componente tragicómica da
ilusão do desligamento. Os dirigentes chineses, por exemplo,
prosseguiriam seu enriquecimento vertiginoso (talvez um pouco mais suave) ainda
que não se saiba muito bem como o fariam se se afundarem os mercados
norte-americao e japonês.
A Índia e o Brasil marchariam por um caminho semelhante com as suas
burguesias transnacionalizadas talvez a fazer negócios Sul-Sul e
atrás deles um variada série de países subdesenvolvidos.
A sombra da recessão cobriria as chamadas
economias desenvolvidas
(em geral enquadradas na OCDE), que em 2007 representaram quase 70% das
importações mundiais, enquanto numerosos países do resto
do mundo, vá-se lá saber graças a que milagre,
salvar-se-iam do desastre. Não esqueçamos que os maiores e mais
dinâmicos deles baseiam o seu crescimento na expansão das suas
exportações... de preferência destinadas aos países
ricos.
A fábula é inconsistente não só do ponto de vista
do comércio internacional como também (e muito mais) quando
enfocamos a composição e o comportamento destas burguesias
periféricas, transnacionalizadas, submergidas até o
pescoço nas bolhas financeiras globais, boa parte dela presas à
cultura do curto prazo (o estilo de vida dos especuladores), educadas na rapina
e na super-exploração dos seus próprios países.
Mundializam os seus excedentes financeiros diante da
"estreiteza relativa"
dos seus mercados locais e inclusive regionais (do ponto de vista das suas
expectativas de altos lucros) ou então puxados pela
"necessidade"
de estenderem os seus interesses ao interior das teias empresariais globais
das quais fazem parte, ou por vezes inclusive perante a possibilidade de
abastecer as classes privilegiadas dos seus próprios países a
partir de firmas ou marcas estrangeiras "de prestígio".
Três exemplos recentes chegados da China ilustram bem esta
realidade: o
primeiro deles refere-se à suspensão na terça-feira 22 de
Janeiro de 2008 da cotação das acções do Bank of
China (o segundo banco da China) na Bolsa de Shanghai quando este informou
haver perdido uns US$8 mil milhões nos seus títulos ligados a
empréstimos hipotecários norte-americanos de risco (subprimes).
O segundo é a compra realizada por
Aluminium Corp. of China
(Chinalco) de uma participação na empresa de
mineração anglo-australiana
Rio Tinto
por uma quantia próxima aos US$14 mil milhões
[7]
. O terceiro exemplo é a recente "aquisição de
luxo" por parte do grupo Longhai, da cidade de Quingado, na China, do
vinhedo francês do Chateau Latour-Laguens. A empresa chinesa aproveitou
a marca francesa para rebatizar "Latour-Laguens International Wine
Co" o seu ramo importador de bebidas que vende aos novos ricos do seu
mercado interno vinhos australianos, italianos e sul-africanos
[8]
.
Estas burguesias são a antítese viva do que os optimistas do
desligamento
e da recomposição periférica do capitalismo possam
imaginar como classes dirigentes medianamente estáveis e portadoras de
projectos produtivos e comerciais autónomos ("nacionais") de
longo prazo.
Hipertrofia financeira global e desaceleração produtiva
Para entender o que está ocorrendo é necessário reflectir
acerca do período de "mais de 60 anos de
duração" que nos propõe George Soros, ainda que
não devesse ser visto como um único ciclo ascendente do
crédito e sim, antes, como a sucessão de dois períodos, um
ascendente entre o fim da Segunda Guerra Mundial (aproximadamente) e o final
dos anos 1960 ou o princípio dos anos 1970 e outro descendente, desde
esse ponto de inflexão até à actualidade.
A era dourada do mundo capitalista reconstituído com centro no
império norte-americano e no dólar como moeda universal, baseada
na intervenção económica do Estado, combinando conforme os
casos keynesianismo civil e militar, talvez tenha dado os seus primeiros passos
por volta de 1939 nos Estados Unidos. Nesse momento o keynesianismo militar
conseguiu ali a decolagem que se transformou numa prolongada prosperidade que
está a acabar agora. O início também pode ser localizado
em finais dos anos 1940 quando os capitalismos recompostos da Europa Ocidental
e do Japão incorporaram-se à onda norte-americana.
O dinamismo produtivo do sistema começou a decair globalmente no fim dos
anos 1960, exprimindo-se a seguir como uma crise de
super-produção crónica que se prolonga até hoje
[9]
. Uma das manifestações mais evidentes foi o declínio no
longo prazo da taxa de crescimento da economia mundial onde o papel negativo
principal foi protagonizado pelos países de alto desenvolvimento. A
economia global cresceu a uma taxa anual média de 4,9% entre 1950 e
1973, 3,4% entre 1974 e 1979, 3,3% na década de 1980 e 2,3% na de 1990.
A década actual, que começou com um pequeno arrefecimento,
continuou com a expansão-bolha da era Bush para concluir com uma
recessão (ou estancamento) que anuncia ser prolongada. A
desaceleração económica internacional engendrou uma via de
escape às rentabilidades produtivas em baixa: a
expansão
financeira. Um bom exemplo disso é a contraposição entre
a redução da taxa de crescimento da economia mundial e o
crescimento veloz dos negócios com
produtos financeiros derivados
que entraram no período de especulação desenfreada nos
princípios da década actual. Segundo o Banco da Basiléia,
em meados do ano 2000 os
derivados
representavam aproximadamente o dobro do Produto Bruto Mundial, em meados de
2006 eram oito vezes superiores, e dez vezes um ano depois: somavam
um US$510
milhões de milhões. Se a este número acrescentarmos o
resto do empapelamento (acções, dívidas públicas,
etc) estaríamos a aproximar-nos dos US$1000 milhões de
milhões (20 vezes o Produto Mundial Bruto)...
Encontramo-nos agora no espaço de saturação da hipertrofia
especulativa que talvez possa prolongar-se um pouco mais mas que, de maneira
irresistível, vai entrando numa zona de múltiplas
turbulências onde algumas bolhas desincham outras expandem-se rapidamente
em meio a uma desordem financeira generalizada. Devemos ter presente que o que
está a cambalear é o maior balão financeiro da
história do capitalismo.
O segundo acto
A primeira etapa da longa crise-decadência global iniciada há
quase 40 anos concluiu-se quanto a expansão financeira esgotou o seu
papel
amortecedor
para converter-se no seu contrário. Se antes era o pilar do consumismo
e da sobrevivência concentradora das grandes empresas, agora constitui o
centro da recessão.
O ponto de início do novo período costuma ser situado em 2007
quando explodiu a bolha imobiliária norte-americana, ainda que com uma
visão mais ampla devêssemos localizá-lo em 2001 o
momento em que a ameaça de recessão foi
"iludida"
graças à louca fuga para a frente das piores tendências do
sistema: militarismo, especulação,
concentração de
rendimentos, corrupção institucional. Esse facto
sobre-determinou a marcha do mundo, não na direcção que
pretendiam os
falcões
da Casa Branca (instalação do domínio imperial por muitas
décadas) e sim em sentido oposto: acelerou-se a
decadência. A
princípio predominou uma aparência enganosa de prosperidade
imposta pela maquinaria mediática ocidental, as economias desenvolvidas
tinham altas taxas de crescimento, a China, a Índia e outros
"países emergentes" expandiam como nunca suas estruturas
capitalistas... mas a base do boom era uma especulação
financeira sem peias e com uma esperança de vida muito limitada.
Para entender melhor o que agora se passa deve ser ampliado o espaço da
crise financeira para dar lugar a
"outras crises"
que com ela convergem. Em primeiro lugar a crise energética que
está a manifestar o fim da era do petróleo barato (o
princípio do estancamento da extracção seguido a mais
longo prazo do seu declínio) introduzindo um sólido bloqueio
inflacionário às políticas anti-recessivas.
A referida crise deve ser incluída na bicentenária
história do capitalismo industrial (baseado nos recursos
energéticos não renováveis) cujo funcionamento expansivo
teria sido impossível se não se tornasse independente dos limites
e ritmos da reprodução dos recursos energéticos
renováveis, embaratecendo e submetendo a sua dinâmica às
novas fontes de energia que surgiam como reservas infinitamente grandes, sempre
disponíveis. Isso foi possível graças a uma série
de proezas tecnológicas, trágicas a longo prazo, que conformaram
um mecanismo de depredação que não se podia prolongar
indefinidamente.
A explosão da crise energética coloca agora o capitalismo diante
de um beco sem saída, pelo menos a médio prazo, tempo mais que
suficiente para que a desordem depressiva do sistema termine por produzir danos
irreversíveis que impeçam sua recomposição sob
condições civilizadas. Isto significa que a futura
sobrevivência da civilização burguesa deve ser associada
à ascensão de formas de barbárie jamais vistas antes. O
paliativo dos biocombustíveis como substitutivo à escala
planetária esclarece bem esta afirmação, com as suas
sequelas de destruição do recurso agrícola básico
a terra cultivável e o encarecimento dos alimentos com os
quais compete na ocupação desse recurso.
Outra crise decisiva é a do centro do mundo: os Estados
Unidos. O declínio do Império é não só
económico ou institucional como também militar. Seu complexo
industrial-militar, na cúspide do seu arranque económico e
tecnológico, demonstra sua incompetência no terreno concreto da
guerra, de maneira directa no Iraque e no Afeganistão e indirecta na
recente invasão israelense do Líbano. Esta crise da tecnologia e
do desperdício militar modernos pode ser focada como o mais recente
degrau de uma sequência iniciada em fins do século XIX de
militarização da ciência e da tecnologia, da
concentração industrial no objectivo bélico, atravessando
duas guerra mundiais quentes e uma fria até chegar à
degradação actual.
O facto surpreendente é a convergência histórica de todas
as crises assinaladas que surge como o encontro de vários ciclos de
diferentes durações se pensarmos num ciclo dos recursos
energéticos não renováveis (desde o carvão
até o petróleo partindo do século XVIII) cujo ponto de
inflexão para baixo coincide com pontos semelhantes nos outros ciclos, o
financeiro e o militar-industrial, nascidos em fins do século XIX. Mas
a reflexão simplifica-se quando visualizamos três ciclos paralelos
partindo aproximadamente no mesmo momento se, no caso da energia, nos
limitarmos ao do petróleo. Neste último caso podemos referir-nos
a componentes de um só ciclo de algo mais de um século de
antiguidade marcado pelo desenvolvimento cada vez mais rápido e intenso
do parasitismo (principalmente financeiro e militar) e da
degradação do eco-sistema.