A junção depressiva global (radicalização da crise)
Em princípios de 2007 Alan Greenspan (que então já havia
abandonado a presidência da Reserva Federal) deu o alerta acerca da
chegada próxima da
recessão
nos Estados Unidos. A profecia cumpriu-se no fim desse ano. Agora foi Gordon
Brown, primeiro-ministro da Inglaterra, em Fevereiro de 2009, que em plena
recessão, anunciou perante a Câmara dos Comuns a chegada da
depressão
global. Como era de esperar, a palavra maldita foi rapidamente desmentida a
nível oficial e foi atribuída a uma "
gaffe
"
[1]
, uma expressão involuntária de Brown, mas o assunto ficou
instalado, precedido por um certo número de comentários e artigos
de especialistas que coincidiam com essa afirmação. Quase ao
mesmo tempo o presidente da França, Nicolás Sarkozi, qualificou a
crise como "a pior desde há um século" e na sua
conferência de imprensa de 9 de Fevereiro Barak Obama concordou com essas
visões "catastrofistas" (realistas).
Este 2009 aparece como
o ano de todos os perigos.
É muito difícil prognosticar o ritmo da crise em curso,
sobretudo porque não tem precedentes na história do capitalismo.
Seu carácter sistémico, sua pluralidade (económica,
energética, militar, institucional, tecnológica, ambiental,
ideológica) e as inter-relações entre as suas diversas
componentes conferem-lhe um comportamento errático, quase (mas
não totalmente) imprevisível.
De qualquer forma, um conjunto de indicadores está assinalar-nos que a
junção recessiva
global que se foi desenvolvendo ao longo de 2008 está agora a ingressar
numa nova etapa caracterizada por grandes quedas produtivas e aumentos do
desemprego nos países centrais e na maior parte da periferia. Trata-se
da instalação de uma
junção depressiva global
a avançar perante a impotência dos governos dos países
ricos que constatam como as chuvas de milhões de milhões de
dólares, euros, etc, lançadas sobre os seus mercados, não
conseguem travar a avalanche.
Tal como no princípio da etapa anterior, o motor da crise encontra-se
nos Estados Unidos. Ali, durante o último trimestre de 2008 e no
princípio de 2009, surgiram dados alarmantes anunciando a chegada
iminente da depressão.
No quarto trimestre de 2009 o Produto Interno Bruto médio caiu a uma
taxa anual de 3,8% (se descontarmos a acumulação de stocks, a
queda ultrapassa os 5%), a produção industrial baixou 11%, o
consumo de bens duráveis 22%, o de bens não duráveis 7% e
as exportações 22%. As informações
disponíveis do primeiro mês de 2009 (consumo, desemprego,
cotações bursáteis, alguns sectores industriais decisivos
como o do automóvel, etc) indicam que a tendência recessiva
aprofunda-se. Às quedas na produção e no consumo
acrescenta-se o rápido aumento da poupança pessoal, impulsionada
pelo medo do desemprego e à perda de rendimentos, que reduzirá
ainda mais o consumo o que por sua vez empurrará para baixo a
produção industrial. Ao longo de 2008 pôs-se em marcha o
clássico círculo vicioso recessivo onde o consumo, a
produção e o investimento inter-actuam negativamente: a
recessão provoca mais e mais recessão. Produziu-se um
empobrecimento
rápido do grosso da população. Em alguns casos, trata-se
de perdas de riquezas ilusórias como foi o aumento borbulhante de
acções e valores imobiliários que impulsionavam o consumo
dos seus beneficiários e noutros de perdas reais de empregos,
salários e habitações.
Duas informações podem ser úteis para avaliar a magnitude
do desastre. A primeira refere-se à contracção da riqueza
provocada pelo colapso financeiro. A chamada
riqueza líquida
da população norte-americana (valor das propriedades,
acções, etc, menos dívidas) havia descido no
princípio de 2009 uns 14 milhões de milhões de
dólares corrente em relação ao valor médio de 2007,
número equivalente ao Produto Interno Bruto dos Estados Unidos
[2]
.
A segunda informação ilustra-nos acerca do impacto social da
crise. O
desemprego "oficial",
ou seja, o registado desse modo pelo governo, cresceu gradualmente ao longo de
2007 e acelerou-se desde meados de 2008. Em Outubro incluía mais de 10
milhões de pessoas, em Dezembro superava os 11 milhões (7,2% da
população economicamente activa). Entretanto, esse número
subestima o problema porque aos 11 milhões de desempregados oficiais de
Dezembro de 2008 (3,6 milhões mais que em Dezembro de 2007) é
necessário acrescentar 2,6 milhões de desempregados de
"longa duração"
(com 27 semanas ou mais sem emprego), sector que aumentou 1,3 milhão de
pessoas durante o ano de 2008. Por outro lado, os trabalhadores
precários chegavam a uns 8 milhões (eram 4,6 milhões um
ano antes). Somando desempregados oficiais, crónicos e trabalhadores
precários chega-se em Dezembro a quase 22 milhões de pessoas
era 13,5 milhões um ano antes
[3]
. Trata-se do salto para o vazio de mais de 8 milhões de pessoas.
Insolvência e aceleração da crise
Os principais indicadores económicos e sociais assinalam que a crise se
acelera e que o aumento do ritmo aponta para um grande salto qualitativo, um
afundamento catastrófico da economia norte-americana que seguramente
arrastará o conjunto do sistema global.
O Produto Interno Bruto real cresceu a uma taxa anual de 3,3% no segundo
trimestre de 2008, teve uma leve cifra negativa no terceiro (-0,5%) e caiu com
força no quarto (-3,8%).
A produção industrial acelerou a sua descida ao longo do ano
passado. O índice médio do segundo trimestre caiu 0,9% em
relação ao primeiro, o do terceiro baixou 2,3% em
relação ao segundo e o do quarto trimestre desceu 3%
[4]
.
O consumo pessoal que se havia mantido estancado em termos reais durante os
primeiros meses de 2008 iniciou uma descida persistente no segundo semestre,
que tende a acentuar-se em princípios de 2009
[5]
.
Ao longo de 2007 e até Abril de 2008 a massa de desempregados oficiais
apresentava uma curva ascendente, mas em Maio sofreu um salto da ordem dos 11%,
a partir daí o crescimento do desemprego acelerou-se. Nos cinco
trimestres que vão de Janeiro de 2007 a Março de 2008 a taxa
trimestral média de incremento do volume de desempregados nunca superou
os 1,5%, mas no terceiro trimestre de 2008 subiu a 3,5% e no quarto a 5%. Em
Dezembro de 2008 produziram-se 630 mil novos desempregados líquidos, em
Janeiro de 2008 repetiu-se praticamente o mesmo número
[6]
.
O índice de preços das habitações desce a
velocidade crescente desde meados de 2008, 10% de queda ao longo de todo 2008
[7]
.
Nos 12 meses que vão de Outubro de 2007 a meados de Setembro de 2008 a
capitalização bursátil norte-americana desceu uns quatro
milhões de milhões de dólares, mas só nos quatro
meses seguintes desceu um número semelhante. A baixa mensal média
passou então de 333 mil milhões de dólares para o primeiro
período a um milhão de milhões para o segundo (quase 7% do
PIB por mês)
[8]
. Enfim, a taxa de poupança em relação ao rendimento
pessoa disponível que se havia mantido próxima de zero nos
últimos anos passou dos 1,2% no terceiro trimestre de 2008 para 2,9% no
quarto trimestre e existe consenso entre os prognósticos conhecidos a
situá-la em torno dos 5% antes do fim do ano, acentuando assim a
retracção do consumo
[9]
.
Se a tendência à aceleração da queda
económica não pode ser travada, tudo parece indicar que em 2009
verificar-se-á a
Grande Depressão,
muito maior que a dos anos 1930.
Desde que se verificou o colapso financeiro de meados de Setembro do ano
passado o governo (Bush e a seguir Obama) tentou suavizar a queda
através de subsídios milionários, primeiro aos bancos e
depois a indústrias chave como a automotriz e finalmente aos
consumidores. Contudo, estas injecções de fundos que aumentam
perigosamente a dívida e o défice público não
alcançaram o objectivo procurado. Foi assim porque por trás da
crise de liquidez, da falta de crédito, encontra-se o fenómeno do
sobre endividamento público e sobretudo privado que colocou numerosas
empresas e uma enorme massa de consumidores na insolvência ou à
beira da mesma. Isso não se conserta injectando dinheiro no mercado. Com
essas intervenções produzem-se alguns alívios passageiros
que evitam uma ou outra derrocada, adiam um pouco a depressão sem poder
impedir a sua chegada. Por sua vez, a insolvência e sobre endividamento
são o resultado de uma prolongada decadência produtiva associada
à ascensão do parasitismo financeiro de aproximadamente quatro
décadas de duração. Foi o conjunto do sistema que entrou
em crise.
Armadilha global
Tal como no período recessivo (2008), não existe qualquer
possibilidade de des-junção. A articulação
comercial, produtiva e financeira da economia mundial opera como uma gigantesca
armadilha da qual ninguém pode escapar. Haverá que esperar que o
tempo (o prolongamento da crise) gere factores de desarticulação,
de fractura capazes de quebrar a unidade do sistema. Para que isso
aconteça deveria verificar-se uma quebra duradoura do comércio e
da trama monetária internacional (fica aberta a reflexão acerca
das possibilidades de sobrevivência do capitalismo como cultura universal
se isso chegasse a ocorrer).
Por agora, o afundamento é geral. A maior parte dos países
europeus está a passar da recessão para a depressão. O
Japão segue o mesmo caminho. A China transita para uma forte baixa na
sua taxa de crescimento do PIB, alguns prognósticos situam-na em torno
dos 6% em 2009 com consequências económicas e sociais equivalente
a uma recessão. O Brasil e a Rússia já se juntaram ao
desinchar global. A Organização Internacional do Trabalho acaba
de apresentar um cenário para 2009 que inclui 50 milhões de
desempregados adicionais
[10]
.
Depressão psicológica
A depressão económica foi precedida por uma onda de
depressão psicológica que, após alguns primeiros passos
tímidos em meio à recessão de 2008, expande-se actualmente
a toda velocidade entre as elites dominantes do mundo. O pessimismo está
a apoderar-se do universo cultural do capitalismo, suas ilusões de
dominação do mundo vão-se dissolvendo no oceano da crise.
Esse clima foi bem expresso no seu momento inicial por Richard Haass,
presidente do Conselho de Relações Internacionais dos Estados
Unidos, quando num artigo publicado em Maio de 2008 assinalava o fim da
hegemonia global norte-americana e o nascimento de um mundo cada vez mais
despolarizado
[11]
, isto é, o princípio do fim da pluri-secular e complexa
construção colonial do Ocidente. Em meados de Dezembro James
Rickards, figura chave do aparelho de inteligência norte-americano,
apresentou um relatório patrocinado pela U.S. Navy infestado de
prognósticos sinistros: desde a derrubada do dólar e dos
títulos públicos norte-americanos até
reduções do PIB da ordem dos 30% nos próximos cinco anos e
taxas de desemprego semelhantes às dos anos 1930
[12]
. Finalmente, no último encontro de Davos, em outros tempos
reunião estelar da cúpula da globalização
neoliberal, foi dominado pelas constatações de impotência
perante uma crise avassaladora. Empresários transnacionais e dirigentes
das grandes potências choraram sobre os restos de um mundo que chegaram a
crer eterno.
Esta junção mundial do pessimismo ideológico e da
depressão económica poderia ser encarado, numa primeira
aproximação ao tema, como o princípio do fim da
pós guerra fria,
período de duas décadas de duração marcado pela
dominação global dos Estados Unidos, um auge sem precedentes da
especulação financeira e uma integração
transnacional muito avançada dos sistemas produtivos. Também
poderia ser descrito como a era neoliberal que enterrou o keynesianismo, o
estatismo burguês desenvolvimentista. Contudo, essas seriam
interpretações muito limitadas, carentes de uma visão
histórica mais ampla uma vez que o chamado neoliberalismo foi apenas o
discurso triunfalista da degeneração financeira,
parasitária do capitalismo keynesiano. Nos Estados Unidos, o Estado
militarista e interventor nunca se retirou da cena e nas outras grandes
potência a intervenção voluntarista do Estado sempre esteve
presente ainda que ao serviço de um capitalismo globalizado e
financiarizado cuja dinâmica acabou por desengonçar, corromper
profundamente os sistemas institucionais nos quais se apoiava. É toda a
história do capitalismo (seus grandes paradigmas científicos e
tecnológicos, seu estilo de consumo, seus sistemas produtivos, sua
cultura imperial) que agora começar a navegar à deriva.
14/Fevereiro/2009
Notas
(1), Philip Webster, "Comment: Brown on depression - a gaffe and that's
official", Times Online, February 4, 2009.
(2), Federal Reserve Statistical Release, Flow of Funds Account in United
States y estimaciones propias..
(3), U.S. Bureau of Labor Statistics, "The employment situation: December
2008".
(4), Federal Reserva Statistical Release, Industrial Production and Capacity
Utilization.
(5), Bureau of Economic Analysis, National Economic Accounts, Real Personal
Consumption Expenditures.
(6), U.S. Bureau of Labor Statistics-
(7), House Price Index, OFHEO, U.S. Office of Federal Housing Entreprise
Oversight.
(8), World Federation of Exchanges.
(9), Personal Saving Rate, U.S. Bureau of Economic Analysis, National Economic
Accounts.
(10), "Global jobs losses could hit 51 m", BBC News, 2009-01-28.
(11), Richard Haass, "The Age of Nonpolarity. What Will Follow U.S.
Dominance",
Foreign Affairs,
May/June 2008.
(12), Eamon Javers, "Four really, really bad scenarios",
Politico.com, 17 de diciembre de 2008.
http://www.foreignaffairs.org/2008/3.html
[*]
Economista, argentino,
jorgebeinstein@yahoo.com
O original encontra-se em
http://www.lahaine.org/index.php?p=36062
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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