O império barranco abaixo
As más notícias da petroguerra
O atentado de Londres pode ser visto como o culminar de uma série de
"más notícias" para o império. Elas chegaram
durante as últimas semanas e constituem claros sinais da
deterioração da "petroguerra". A
confrontação iniciou-se há pouco mais de três anos a
partir do ataque contra a Torres Gémeas, ainda que seja possível
constatar que o aumento vertiginoso dos gastos militares dos Estados Unidos
não começou a 11 de Setembro de 2001 e sim muito antes (ver
gráfico).
Isto avaliza
as hipóteses acerca da cumplicidade activa ou passiva das autoridades
estadunidenses com esse factos procurando assim aproveitá-los
politicamente. Dito de outra maneira, existe uma
dinâmica militarista
lançada no fim da presidência de Clinton (guerra do Kosovo)
coincidente com o auge da borbulha consumista-bursátil e com sintomas
notórios de degradação institucional. Esse primeiro
empurrão contribuiu para preparar as condições destinadas
à chegada dos neoconservadores ao governo, os quais desencadearam uma
segunda borbulha financeira e aceleraram a corrida bélica. Se
aprofundássemos a análise deveríamos remontar aos
princípios dos anos 1980 quando a presidência de Reagan deu o
impulso decisivo ao processo de deterioração da cultura produtiva
norte-americana combinado com enormes gastos militares e a emergência de
redes de negócios especulativos: o câncer parasitário
terminou por fazer a sua grande metástase duas décadas depois.
Podemos destacar três "más notícias" anteriores
aos factos de Londres: o avanço esmagador da resistência
iraquiana, a vitória eleitoral no Irão da linha dura
anti-norteamericana e a expansão da guerrilha afegã. Os
referidos acontecimentos marcam uma viragem decisiva no panorama internacional
Iraque
As declarações triunfalistas em Maio último do
vice-presidente Dick Cheney
("a insurgência iraquiana está a dar os seus últimos
suspiros")
surgem agora como que provenientes de uma passado distante, apenas um
mês depois o chefe do Pentágono Donald Rumsfeld assinalava que
"a insurgência poderia continuar durante certo número de
anos... cinco, seis, sete, oito, 10, 12 anos"
para acrescentar linhas a seguir que as autoridades norte-americanas haviam
realizado contactos com ela. Ao mesmo tempo circulavam documentos e
declarações originadas na CIA ou no alto comando militar (com
diversos graus de apoio formal) augurando geralmente um porvir negro para a
aventura afegã-iraquiana, desde o general John Abizaid, o chefe militar
máximo dos EUA para a Ásia Central e o Médio Oriente,
admitindo um incremento decisivo nas operações da guerrilha
iraquiana durante o último semestre, até o relatório
"secreto"
da CIA (mas divulgado pelo New York Times) assinalando o surgimento de uma
nova geração de combatentes islâmicos ao longo de todo o
mundo muçulmano comparável pela sua magnitude com aquela que
nasceu a partir da guerra do Afeganistão nos anos 1980. Daquela vez a
guerra santa era dirigida contra os soviéticos mas agora (sobretudo a
partir da invasão do Iraque) assume um claro perfil anti-norteamericano.
[1]
Na realidade, as declarações de Cheney foram os
últimos suspiros
de uma campanha mediática tão avassaladora quanto mentirosa.
Desde os primeiros meses da ocupação norte-americana era evidente
que a resistência se estendia de maneira irresistível e que os
ocupantes ao invés de ampliar a sua base social reduziam-na cada vez
mais. Este processo deu um verdadeiro salto qualitativo no último
trimestre: por um lado tornou-se patente o fracasso na
construção de uma polícia militar títere no Iraque,
seus recrutas são alvo de ataques devastadores e quando entram em
operações costumam evitar o combate ou desertar. Em segundo
lugar, e isto é o mais grave, a resistência passou dos pequenos
ataques iniciais de duração muito reduzida para grandes
operações, prolongadas no tempo, muito bem coordenadas e
eficazes: a guerrilha dispersa do ano 2003 é agora uma
articulação de exércitos populares solidamente enraizados
na população. Um exemplo recente disso foi o ataque
maciço em meados de Junho ao quartel policial de
Baya'a,
o mais importante de Bagdad. Durou cerca de duas horas, em ondas sucessivas e
mostrando uma férrea disciplina várias centenas de combatentes
(talvez um milhar) mantiveram em xeque as forças estadunidenses e os
seus subordinados iraquianos. É o passo inevitável, bem
conhecido na história da guerra de guerrilhas, das pequenas unidades de
combate que fustigam o inimigo para grandes estruturas que travam verdadeiras
batalhas.
[2]
No plano iraquiano as forças ocupantes parecem isoladas da
população numa atitude estratégica defensiva e sem poder
consolidar um subsistema de poder local minimamente estável. Frente a
elas, a guerrilha torna-se exército, poder. Coincidindo com isto, no
território norte-americano os inquéritos de opinião
começam a mostrar que o grosso dos seus habitantes oscila entre o
pessimismo em relação ao futuro da guerra até à
exigência da retirada das tropas.
Irão
A segunda má notícia também chegou do Médio
Oriente. Uma peça decisiva da estratégia de
ocupação do Iraque foi a manipulação de rivalidades
étnicas (seguindo o modelo iuguslavo), sendo um dos objectivo centrais
obter a cumplicidade de uma porção importante do xiitas pondo-os
em choque com os sunitas, considerados a base principal da resistência.
Mas os xiitas iraquianos têm a sua retaguarda cultural no Irão
onde o xiismo protagoniza um processo revolucionário há um quarto
de século. Além disso, em 2003 os falcões de Washington
aspiravam replicar no Irão a sua vitória militar no Iraque, mas
com o correr do tempo essas ilusões foram-se esfriando à medida
que se afundavam no pântano iraquiano. Entretanto continuaram a
hostilizar o Irão acreditando que assim acabariam por dobrar o governo
moderado
do presidente Khatami, representante da alta burguesia local, especialmente na
sua política energética, mas obrigando-o também a
pressionar os xiitas iraquianos a que se submetessem à estratégia
do ocupante. Mas o prolongamento do massacre colonial no Iraque somado
às fanfarronadas imperiais contra o Irão contribuíram de
maneira decisiva não para amedrontar os iranianos, como supunham certos
estrategas da Casa Branca, e sim para enfurecê-los contra o
Império. A vitória eleitoral do futuro presidente Mahmud
Ahmadineiad, expressão da radicalização dos sectores mais
pobres, do país profundo, arvorando as bandeiras originais da
revolução islâmica, de Khomeini, claramente
anti-norteamericanas, significa um duro revés para os Estados Unidos,
não só na sua política para o Golfo Pérsico como
também na sua estratégia petrolífera global. Não
é casual que uma das primeiras felicitações recebidas por
Ahmadinejad tenha sido a enviada por Hugo Chavez.
[3]
Afganistão
A terceira má notícia chegou do longinquo Afeganistão,
quase
"esquecido"
pelos meios internacionais de comunicação. Ali, segundo nos
explicavam certos avaliadores ocidentais, a colonização tendia a
estabilizar-se, a resistência (em especial aquela conduzida pelos
talibans) estava a caminho da extinção. Mas essas
análises eram falsas. Ao longo do segundo trimestre deste ano o
Afeganistão reapareceu nas grandes publicações e
écrans de televisão do Ocidente com frequência cada vez
maior. À multiplicação das operações da
resistência, crescentemente mortíferas, as forças de
ocupação tentam, sem grande êxito, contrapor-se com
abundância de massacres de população civil (os famosos
"danos colaterais"
). Alguns peritos no tema não têm dúvida em falar da
"iraquização"
da guerra afegã
[4]
, ou seja: a emergência de uma guerrilha tecnicamente eficaz e
descentralizada, contando com apoio activo da população e o
desconcerto dos invasores e do seu governo títere local.
Com a chegada de Bush à Casa Branca foi elaborada a teoria de que a
superpoderosa potência militar norte-americana era capaz de ganhar duas
guerras importantes ao mesmo tempo. A experiência iraquiana demonstra
que o império não pode enfrentar nem uma só guerra
prolongada na periferia. Se a esse fracasso somar-se uma segunda frente de
grande envergadura (e as notícias provenientes do Afeganistão
assinalam que isso poderia vir a suceder) é muito provável que
num futuro não muito distante vejamos os falcões em sérios
apuros.
O fim da impunidade colonial
As três más notícias foram mais que completadas por uma
quarta: o 7 de Julho de 2005. O atentado de Londres, pouco mais de um ano
depois do acontecido em Madrid, está a marcar um facto novo: o fim da
impunidade colonial. Nas guerra coloniais do passado (desde a conquista da
América até a guerra do Vietnam) as metrópoles podiam
continuar com sua vida
pacífica
normal enquanto as suas tropas massacravam os povos periféricos. Mas o
século XX não transcorreu em vão: os processos de
independência e recuperação ou recriação de
identidades culturais na periferia, a interpenetração global
(comunicacional, industrial, financeira, comercial, migratória, etc) e
logo a marginalização e o esmagamento dos povos pobres do planeta
(ainda que submetidos a uma modernização intensa) foram criando
uma realidade diferente onde os mais oprimidos ao mesmo tempo que vêm
agravada a sua situação percebem que podem rebelar-se e estender
sua mão até o centro imperial do mundo. Através de redes
humanas complexas os
"danos colaterais"
e outras humilhações coloniais ocorridas num rincão
remoto do Iraque, do Afeganistão ou da Palestina podem agora ser
respondidos no coração do território imperial,
desapareceram as inibições culturais e os bloqueios
técnicos que o impediam no passado. Ao ocorrer isto as
populações dos países ricos descobrem que a guerra
colonial produze uma espécie de
"efeito boomerang"
que leva a violência até a sua própria casa, por outras
palavras, a guerra colonial vai deixando de ser o que era, uma guerra no
"outro mundo",
subdesenvolvido, ou seja, uma
subguerra
assimétrica, para converter-se em guerra integral onde ambos os
espaços, o imperial e o colonizado, constituem teatros de
operações militares.
Os espanhóis tiraram as suas conclusões acerca disto de modo
imediato quando, logo após os atentados de Madrid, acabaram com o
governo de Aznar e impuseram a retirada das suas tropas do Iraque. A paz foi a
sua resposta.
Repercussões económicas
A evolução da
"petroguerra"
começa a causar impacto na economias dos países centrais e, a
partir dali, no resto do mundo. A conexão entre as
"más notícias"
enumeradas e o aumento do preço do petróleo é evidente.
Trata-se de factores da conjuntura que agravam, convergem, com uma
tendência pesada do sistema global em direcção ao tecto
máximo de produção de petróleo que estamos a ponto
de alcançar e a partir do qual a economia mundial enfrentará a
seguinte opção: continuar a crescer para espatifar-se com o
colapso energético ou retardar o referido colapso com taxas de
crescimento económico próximas do zero ou negativas. Mas para
que esta última alternativa seja socialmente viável e não
derive numa explosão de caos e desemprego seria necessário
introduzir mudanças revolucionárias na economia e na cultura que
excederiam em muito as possibilidades do capitalismo, da sua lógica de
rentabilidade a qualquer custo. O bloqueio energético global era
tecnicamente previsível desde há mais de três
décadas quando a hipótese de King Hubbert restrita à
exploração petroleira nos Estados Unidos começou a ser
cuprida (a superpotência iniciou o seu declínio como produtor de
petróleo) e a sua extrapolação à
produção mundial assinalava que o
máximo
seria alcançado entre a primeira e a segunda década do
século XXI a partir do qual se instalaria a penúria
energética. Mas as vias alternativas de poupança
energética e a introdução de novas fontes de energia
(solar, eólica, biotecnologia, etc) puderam desenvolver-se de maneira
muito limitada, não só devido a dificuldades tecnológicas
(superáveis a longo prazo) como basicamente à sua não
adaptabilidade à dinâmica de acumulação do capital,
suas taxas de lucro, seu ritmo crescente de inovação e incremento
da produtividade, sua cultura de consumo, etc.
O actual afundamento militar do Império traz ou trará
também a curto prazo outras consequências negativas para o
sistema, dentre elas a baixa persistente do dólar, resultado dos
desajustes fiscais e comerciais dos Estados Unidos, e a
desaceleração da euforia consumista no referido país,
único mega motor da procura global. Desse modo a solução
neoconservadora (militarista) à decadência do Império
torna-se um catalisador da mesma. A crise segue seu curso.
___________
(1) Pepe Escobar,
Asia Times;
"Iraq, the new Afghanistan" (Jun 24, 2005) e "The first, not
the last throes" (Jun 25, 2005).
(2) ibid.
(3) M.K. Bhadrakumar, "Left, Right: Iran and Venezuela in lockstep",
Asia Times, Jul. 8 2005.
(4) Goinaz Esfandiari, "Afghanistan, Iraq-style", Asia Times, Jul. 13
2005.
[*]
Economista, argentino,
jorgebeinstein@yahoo.com
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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