Rostos da crise:
Reflexões sobre o colapso da civilização burguesa
A segunda desconexão
Crise financeira
As crises energética e alimentar
A crise dos Estados Unidos
Crise militar
Crise do Estado
Crise tecnológica
Colapsos ambiental e urbano
Ciclos longos e integração das crises
Periodização
Notas
A crise mundial apareceu primeiro sob a forma de uma turbulência
financeira originada pelo rebentar da bolha imobiliária norte-americana.
Inclusivamente, no início não faltaram opiniões de
"peritos" (muito difundidas pelos meios de
comunicação), assegurando que a tormenta duraria pouco devido
à força geral dos Estados Unidos. Quando os problemas aumentaram,
sem modo à vista de os superar, uma nova onda de prognósticos
tranquilizadores informava-nos que as dificuldades do império não
teriam razão para propagar-se à escala global (talvez apenas a um
nível muito pequeno
). Começou assim a efémera vida
da "
Teoria do desligamento
" (geográfica), segundo a qual alguns espaços centrais ou
periféricos emergentes estariam suficientemente resguardados da tormenta
para preservar as suas economias e inclusivamente prosseguir a expansão
sem problemas de maior. Uns apostavam na suposta solidez europeia, outros no
arranque para o desenvolvimento da China, Índia e Brasil e, porque
não, na renascente potência energético-militar russa. Esses
mesmos meios de comunicação haviam saturado o planeta durante
muitos anos com a ideia de que nenhuma nação, grande ou pequena,
podia escapar à globalização capitalista e que se um
país ou grupo de países não insignificantes se
constipassem o contágio seguramente se propagaria à escala
planetária. Agora parecia que quando os Estados Unidos, o centro do
mundo, sofriam de uma doença grave os outros espaços decisivos da
economia global já não seriam prejudicados ou sê-lo-iam a
um nível mínimo. Que em 2007 a superpotência representasse
cerca de 25% do Produto Bruto Mundial e uma dívida total
pública e privada próxima do PBM (e uma dívida
externa total equivalente a 22% do PBM) não parecia afectar o
prognóstico. Como é lógico os efeitos da
intoxicação mediática duraram muito pouco; a Europa entrou
em recessão empurrada pelos Estados Unidos mas também carregando
as suas próprias taras parasitárias, a onda negra chegou
também ao Japão e inundou as chamadas potências emergentes
da região como a Índia, a Coreia do Sul ou a China e outras zonas
de periferia como o Brasil.
A crise é mundial e será longa, a acumulação de
desajustes e a sua magnitude não sugerem uma recuperação
rápida dos sistemas, mas o contrário, ainda que restrinjamos a
análise aos seus aspectos económicos (no início de Outubro
de 2008 a crise financeira converteu-se num colapso que deitou abaixo o sinal
de interrogação a todos os cenários de sobrevivência
do capitalismo).
A segunda desconexão
Mas mantém-se em pé outra
desconexão
não menos ilusória: a
sectorial.
Existe uma deformação cultural na nossa
civilização que empurra para a fragmentação do
conhecimento, até à negação do mundo como
totalidade, como sistema complexo em movimento. Lucien Goldman opunha
frequentemente de maneira taxativa "ideologia" (reducionista,
dissociativa) e "visão do mundo", encontrando aí uma
das chaves da reprodução da opressão burguesa e, em
consequência, do caminho para emanciparmo-nos dela, marcado pela
recuperação da percepção da realidade como um
conjunto amplo, plural, coerente, contraditório, dinâmico.
A crise actual levou ao extremo as tendências psicológicas
dissociadoras, em boa medida alimentadas pelos meios de
comunicação. As turbulências financeiras,
energéticas e alimentares aparecem saturadas de
explicações superficiais acerca de "erros" de
gestão ou de políticas públicas. Por vezes estabelecem-se
vínculos entre elas, por exemplo a especulação financeira
como causa da instabilidade dos preços do petróleo ou de certos
produtos agrícolas, bem como entre os custos energéticos e os
preços dos alimentos, mas essas interacções reduzem-se a
jogos de curto prazo ou a certas tendências perversas de médio
prazo. A incerteza é coberta por explicações
anedóticas quase sempre relacionadas com as mudanças de humor dos
chamados "investidores"; as autoridades económicas dos
países centrais ou dos organismos internacionais que os representam
(OCDE, FMI, Banco Mundial, etc) não param de fazer
declarações contraditórias, um dia anunciando os perigos
da recessão inflacionária, outro alertando para as ameaças
da recessão deflacionária, de manhã assegurando que a
crise está prestes a ser superada para pela tarde declararem que a
desaceleração económica pode ser de longa
duração. Tudo isto ao ritmo dos movimentos erráticos das
bolsas e preços e das corridas imprevisíveis dos especuladores,
manipulando massas de fundos de um volume que as torna ingovernáveis.
Nem os especuladores nem as autoridades entendem realmente o que se está
a passar, caiu-lhes em cima uma avalanche de desastres e cada um trata de
sobreviver com os instrumentos que tem disponíveis.
Junto a essas crises apresenta-se a dos Estados Unidos (no centro, pilar
decisivo do sistema global) mostrada simplesmente pela sua especificidade
"nacional", por exemplo como resultado de políticas
irracionais (na generalidade reversíveis) impostas por certos grupos de
poder, a sua subordinação estratégica à
dinâmica mais ampla do sistema global é frequentemente ignorada ou
subestimada.
Um dos seus componentes principais é a crise do Complexo Industrial
Militar frequentemente atribuída aos seus "erros" no Iraque e
no Afeganistão, endossados por sua vez ao aventureirismo de George W.
Bush e seus falcões. A hipótese que a mesma pudesse estar
expressa na
crise do militarismo burguês (fenómeno engendrado pela
evolução do capitalismo mundial) e a sua provável entrada
em fase terminal, de decadência, não é tema de debate.
Igual sorte tem a crise do Estado imperial, presa na sua especificidade,
subestimada, desligada dos fenómenos paralelos num amplo leque de
países centrais e periféricos e da história universal do
capitalismo, em especial o ciclo estático iniciado em finais do
século XIX.
Por outro lado a reflexão acerca da
crise da tecnologia,
ou seja, da cultura técnica moderna (incluindo a perspectiva do seu
esgotamento histórico), está na generalidade ausente. O
"optimismo tecnológico" contém um aflição
esmagadora pois o nosso sistema tecnológico é visualizado como
uma complexa confusão de instrumentos, de conhecimentos muito
flexíveis, cuja dinâmica, ainda que influenciada pelo poder
político, económico ou da cidadania vigente (e consequentemente
relativamente manipulável) responderia em última instância
ao movimento mais geral, sobre determinante, do chamado
progresso humano,
desde a idade da pedra até ao século XXI.
Por fim, a crise ambiental é com frequência atribuída a
comportamentos irracionais, modificáveis a partir da
intervenção dos cidadãos. Fica assim imposto um
"debate único" em torno das
alternativas
apresentadas como possíveis, positivas, construtivas, realistas, etc.,
afastadas do catastrofismo, do pessimismo e outras perversões praticadas
pelos profetas do fim do mundo. Desse modo inicia-se uma
mega-operação de censura ideológica, de bloqueio da
razão, de esforço para relacionar a catástrofe ambiental
com a lógica de uma civilização (burguesa), que a
determina.
Trazer à luz e integrar estas e outras "crises" numa
visão geral constitui uma tarefa extremamente difícil, mas
dramaticamente necessária, urgente. A aceleração e
expansão da desordem global impõe-nos a necessidade de ver
além da superfície e dos aspectos parciais, única maneira
de compreender o mundo em que vivemos.
Crise financeira
A crise financeira tem de ser entendida como expressão da hipertrofia
das actividades especulativas, sendo necessário ir além da
sucessão de bolhas que se desenvolveram desde meados dos anos 1990
até à actualidade (bolhas da bolsa, imobiliárias) e
abarcar as quatro últimas décadas durante as quais uma
crise crónica de sobre produção de carácter global
(cujo início pode ser estabelecido em 1968-1973) foi alimentando o
globo especulativo que por sua vez reforçou a doença do sistema
económico. A crise dos países centrais pôde ser atenuada,
adiada, graças ao complexo mecanismo de desenvolvimento mundial de
negócios financeiros, mas o dito adiamento prolongado acabou por
engendrar um dos factores decisivos da crise total do sistema (em que agora
começamos a entrar).
A prosperidade do pós-guerra terminou em 1973-1974 com o choque
petrolífero que encontrou uma economia mundial muito frágil
devido à soma de acontecimentos negativos que o precederam, como as
desordens monetárias, a queda da rentabilidade empresária, a
desaceleração do circuito de endividamento e do consumo privado,
além o incremento da capacidade produtiva ociosa.
Com a imagem de fundo de uma crise de sobre-produção as economias
industrializadas entraram na chamada "
estagflação",
os preços subiam ao mesmo tempo que a desocupação e os
aparelhos produtivos estancavam. A partir daí a taxa de crescimento
económico mundial foi caindo tendencialmente, fenómeno que
persistiu até à actualidade (ver gráfico 1)
Isto traduziu-se em altos níveis de desemprego e
precarização laboral, agravados pela guerra tecnológica
entre as empresas que procuravam preservar ou conquistar mercados cada vez mais
difíceis. Como consequência foi-se impondo uma tendência
pesada, de grande duração, de desaceleração da
procura nas nações ricas. Nos países da OCDE a taxa de
crescimento real médio do consumo privado tinha chegado a 5,1% no
período 1961-73 mas desceu para 3,1% em 1974-1979, 2,7% em 1980-89 e
2,3% em 1990-1991
[1]
. Tal movimento travou a expansão produtiva, convertendo a
superprodução real ou potencial desordenada iniciada em
1970 num fenómeno que persistiu a longo prazo.
A desaceleração económica provocou défices fiscais.
Uma redução dos gastos públicos ou uma maior
pressão tributária teriam tido efeitos recessivos, mas por outro
lado existiam excedentes financeiros de empresas e bancos (petrodólares,
etc.) com sérias dificuldades de conversão em inversões
produtivas devido à situação de
desaceleração.
A solução do problema foi encontrada por meio do crescimento da
dívida pública, de modo que o endividamento dos países
ricos a partir dos anos 80 sucedeu ao endividamento dos países pobres na
segunda metade dos anos 70.
Este foi facilitado pela liberalização financeira e
cambial que nessa época empurrou para cima as taxas reais de
juros e eternizou a instabilidade das paridades entre as moedas forte. Os
estados necessitavam fundos (para sustentar as exigências internas
através de pagamentos de pensões, subsídios a
desempregados, gastos militares, etc) que ultrapassavam as disponibilidades
monetárias locais, tendo então recorrido aos investidores
internacionais, o que os obrigou a eliminar os travões à livre
circulação de moedas, à compra-venda de títulos
públicos e privados e ao desenvolvimento de negócios financeiros.
A financeirização empresarial completou o círculo: as
empresas colocavam fundos em títulos públicos e também
privados que trocavam entre si ou com que inundavam o mercado bolsista, com as
suas acções.
A interacção perversa de três fenómenos:
desaceleração do crescimento económico, crescimento do
endividamento público e financeirização empresarial,
gerou um monstro que cresceu incessantemente até converter-se em
hipertrofia financeira global,
alimentada por taxas de juro relativamente altas que desaceleravam a
inversão e a procura.
No início dos anos 90 os endividamentos estatais começaram a ser
avaliados negativamente pelos governos centrais e os grandes grupos
económicos (o salva-vidas liberal tornava-se cada vez mais pesado
ameaçando destruir as economias desenvolvidas). Por outro lado os
excedentes acumulados pelo sistema financeiro mundial requeriam novas
áreas de expansão que lhes permitissem preservar os seus
níveis de rentabilidade e diversos mecanismos adicionais possibilitaram
a manutenção da sua reprodução ampliada.
A engenharia financeira acelerou esse desenvolvimento, fundos de pensão
e de inversão, bancos e empresas encontraram na revolução
informática o atalho tecnológico que lhes permitiu criar
"produtos financeiros derivados"
de alta complexidade
(ver o gráfico 1), articular uma rede bolsista e de câmbio
internacional muito dinâmica e outras inovações que os
meios de comunicação pintavam como cabeças de ponte do novo
capitalismo planetário triunfante. Esses negócios apanharam
também famílias e pequenos aforradores que se incorporavam de
maneira directa ou indirecta, principalmente nos Estados Unidos, à
euforia das elites. Inflaram-se os valores das acções e outros
activos especulativos, aumentando a massa financeira global.
Por outro lado acentuou-se e generalizou-se o chamado fenómeno das
"economias emergentes":
os fluxos monetários foram até elas, adquiriram e instalaram
empresas, compraram títulos públicos e privados, tudo isto numa
lógica de benefícios elevados e rápidos que expandiram
ainda mais a maré financeira. O desmantelamento da URSS e outros
países do leste europeu gerou nos anos 90 uma grande evasão de
capitais para as economias centrais, reforçando o dito processo.
O que foi apresentado como a incorporação de países
subdesenvolvidos e ex-socialistas no sistema global de mercado, às
custas do Primeiro Mundo, não foi senão a
implantação de sistemas de depredação que
desarticularam ainda mais essas economias. Em certos casos apresentados como
"de sucesso"
(como o Brasil, Índia, China e outros países da Ásia)
foram instalados ou reforçados mecanismos de
sobre-exploração dos trabalhadores e/ou recursos naturais ao
serviço do consumo e produção dos países centrais
(via matérias-primas ou produtos industriais baratos).
Finalmente desenvolveu-se um fenómeno inicialmente marginal, mas que
logo se foi instalando no cerne da economia internacional: o
espaço dos
negócios ilegais,
visíveis, às claras na periferias, discretos no centro (onde
residem as suas chefias estratégicas). Estes negócios de
altíssima rentabilidade expandiram-se como uma mancha de óleo,
cobrindo de áreas mafiosas o sistema global. Tráfico de drogas e
armas, prostituição, golpes sobre patrimónios
públicos periféricos, etc, forjaram uma massa de negócios
que, pelo seu volume e dinamismo, passou a constituir um factor decisivo da
reprodução da economia mundial.
A crise asiática de 1997 apareceu na altura como uma catástrofe
financeira da periferia emergente, mas no entanto deveria ter sido vista como
uma crise global cujo coração se encontrava nos países
centrais envoltos pela desaceleração produtiva e pelo parasitismo
(a bolha especulativa asiática daqueles anos não foi mais que um
epifenómeno do cancro financeiro central). Mas ao iniciar-se a actual
década o visível motor da desordem apresenta-se claramente no
centro do mundo: os Estados Unidos e as outras grandes potências.
O agravar da crise permite-nos ver além dos jogos conceptuais que
fabricavam universos económicos "monetários e
"virtuais" desconectados da chamada "economia real". As
inter-relações concretas entre os fenómenos descritos
demonstram o carácter ilusório das fronteiras entre essas
supostas esferas diferenciadas, que se tratam na verdade de uma só
realidade, estrutural, material, social, onde a produção de bens,
o seu intercâmbio, os meios monetários, o emprego, mas
também a política, o Estado, a tecnologia, etc, formam um
só sistema à deriva.
Ao começar o
século XXI a erupção financeira provoca turbulências
de gravidade crescente nos países centrais, com os seus mecanismos de
exportação da crise (para a periferia) e de controlo interno da
maré especulativa mostrando-se insuficientes perante o volume
alcançado por esses negócios. Os produtos financeiros derivados
registados pelo Banco de Basileia no ano 2000 equivaliam a cerca de duas vezes
o Produto Bruto Mundial da altura, a meio de 2008 os derivados registados (mais
de 600 milhões de milhões de dólares) equivalem a pouco
mais de dez vezes o actual PBM. Se a esse volume somarmos os outros
negócios especulativos em acção chegaríamos a mil
milhões de milhões de dólares, aproximadamente umas 18
vezes o PBM, que alguns autores qualificam como o
"mega buraco negro financeiro da economia mundial".
Mas a maré parasitária não podia expandir-se
indefinidamente, mais cedo ou mais tarde teria que entrar em colapso e como
é lógico o pontapé inicial foi dado no centro do centro do
mundo os Estados Unidos.
Duas observações de carácter geral são
necessárias.
Em primeiro lugar constatamos que a sobrevalorização de activos
financeiros não foi senão um mecanismo de
concentração mundial de rendimentos e de saqueio económico
(desarticulador), que ampliava cada vez mais a brecha entre os aparelhos
produtivos (globalizados) dominados pela lógica do parasitismo
especulativo e massas crescentes de pobres e excluídos (principalmente,
mas não somente, na periferia). A sobre produção
crónica auto-alimentava-se com o seu próprio veneno
marginalizador-concentrador-financeiro.
Em segundo lugar temos que ver o movimento de financeirização das
últimas quatro décadas como etapa superior, final, do processo de
expansão financeira do capitalismo, iniciado no fim do século
XIX, avaliado pelos célebres textos de Lenine, Hilferding, Bukarin e
outros autores. Sobretudo é necessário ter em
consideração as referências de Lenine acerca do
carácter
decadente
do fenómeno
[2]
e de Bukarin em relação à formação de uma
classe capitalista parasitária, cada vez mais afastada da cultura
produtiva
[3]
.
Poderíamos diferenciar (utilizando a conceptualização
gramsciana) uma primeira etapa (desde finais do século XIX até
finais dos anos 60) de
"dominação"
financeira, onde esses negócios controlavam crescentemente o
coração do sistema mas faziam-no sob o disfarce cultural do
produtivismo industrial. Ter-se-á seguido uma segunda etapa (iniciada
nos 70) de
"hegemonia"
financeira onde o cancro parasitário controla integralmente o sistema,
deita fora os discursos produtivistas que ainda sobreviviam e converte o seu
estilo de vida no centro da cultura universal.
Talvez devamos estabelecer uma terceira etapa, marcada por uma espécie
de parasitismo decadente, irrompendo na primeira década do século
XXI, caracterizada pela saturação financeira da economia mundial,
empurrando para o colapso o sistema, donde emergem dinâmicas de
autodestruição do capitalismo mas também de
recomposição selvagem, de barbárie, reedição
actualizada e em escala ampliada da tentativa hitleriana (se adoptarmos esta
hipótese Bush e os seus falcões seriam os pioneiros da nova era).
As crises energética e alimentar
Tendo-se cumprido o prognóstico de King Hubbert de 1956 acerca do
momento do nível máximo de produção
petrolífera norte-americana, que, como previu, começou a decair
nos anos 70, parecem agora cumprir-se (utilizando a mesma metodologia) os
prognósticos mais pessimistas referidos para o nível
máximo de produção petrolífera mundial, que fixavam
a chegada ao tecto produtivo antes do fim da actual década. Há
pouco mais de dois anos e meio que a curva de extracção tende a
manter-se dentro de uma barreira entre os 84 milhões e os 88
milhões de barris diários. Talvez seja capaz de romper-se esse
tecto, mas muito provavelmente apenas forçando a capacidade produtiva
racional em áreas chave do sistema internacional de
exploração do recurso e sem conseguir modificar a tendência
em direcção ao estancamento. Em que momento a actual
direcção levemente ascendente converter-se-á em
declínio? Tudo parece indicar que a duração do
período estacionário é directamente proporcional à
futura taxa anual de declínio. Se a pressão dos grandes
consumidores globais conseguir submeter os principais produtores (Médio
Oriente, bacia do Mar Cáspio, Rússia, etc), obrigando-os a
sobre-explorar as suas fontes, mais cedo ou mais tarde poderão
produzir-se
importantes colapsos produtivos em alguns deles.
A recessão internacional em que estamos a entrar anuncia a
desaceleração do consumo petrolífero, até
inclusivamente a sua descida, debilitando a subida do preço e fazendo-o
mesmo baixar, tendência reforçada pela retirada dos fundos
especulativos que apostavam na subida da sua cotação. No entanto,
o facto de estarmos no pico de extracção global (o "Pico
Petrolífero"), ou muito próximo dele indica-nos a
existência de gatilhos inflacionários (dinâmicas
ascensionais no preço do petróleo) que quando a
extracção começar a descer irão aparecendo em
níveis cada vez mais baixos do Produto Mundial Bruto. Em síntese,
a tendência de longo prazo é de subida dos preços,
previsivelmente não ordenada, podendo facilmente até deslocar-se
mesmo no sentido contrário. Sucessivas entradas e retiradas de fundos
especulativos nos mercados, atraídos ou repelidos por feitos reais ou
imaginários de cada conjuntura prolongarão para o futuro a
trajectória zig-zagueante-ascendente que se tem desenvolvido no
últimos anos, provocando inflação e bloqueando os
instrumentos anti-recessivos dos países capitalistas centrais.
Uma nova era de crescimento económico prolongado necessitaria de uma
sincronização sistemática de poupanças de energia e
substituições de recursos energéticos e minerais em geral
não-renováveis ou por recursos não-renováveis
(quais?) submetidos a novas técnicas de exploração cujas
"
imensas
" reservas (relativas) afastariam para um futuro muito longínquo o
tema do seu esgotamento (foi o que ocorreu a partir de finais dos século
XVIII com a exploração do carvão mineral primeiro e do
petróleo muito tempo depois).
Tal requereria um salto inovativo, uma ruptura capaz de superar quase dois
séculos e meio de uma cultura tecnológica muito densa e baseada
na exploração intensiva de recursos não-renováveis.
Não dispomos nem do menor indício sério de que essa onda
inovadora esteja a aparecer nem que possa aparecer durante a próxima
década.
A irrupção dos biocombustíveis demonstra que efectivamente
essa onda não existe. A sua expansão, inclusivamente a mais
ousada, não consegue superar a penúria energética e a
sobre-exploração de terras férteis e produtos
agrícolas com fins energéticos reduz a oferta alimentar, traz
fome e inflação.
A utilização de energia nuclear em grande escala, além dos
graves problemas de segurança, provocaria um rápido esgotamento
das reservas de urânio, além da expansão do emprego de
carbono que enfrentaria problemas nos custos de reconversão, de
difíceis adaptações tecnológicas, de
poluição e finalmente de esgotamento do recurso. Segundo recentes
avaliações, as explorações intensivas das reservas
de urânio e carbono (no nível necessário para suavizar a
crise energética) levariam ao declínio da sua
extracção a partir do ano de 2030, possivelmente antes
[4]
.
As forças produtivas mundiais, tais como agora as conhecemos,
encontram-se bloqueadas por um tecto energético produto do seu
próprio desenvolvimento,
da sua interacção com a
"natureza",
apreendida na lógica da modernidade como objecto de
depredação (o notável
êxito
energético do capitalismo industrial foi na realidade a
antecâmara de um desastre universal). Por outro lado o bloqueio
energético ao crescimento económico baseia o tema crucial da
expansão incessante do produto global bruto, necessidade vital para o
capitalismo mas não para outras formas de organização
social onde o consumo e a posse de objectos materiais seriam subordinados
à convivência humana. Dito de outro modo, a humanidade poderia
reduzir substancialmente o seu gasto de energia, produzindo globalmente menos e
reorganizando o seu sistema produtivo em torno das necessidades básicas
da reprodução social, livres de ditaduras elitistas e
parasitárias, o que equivale a dizer a cultural ocidental-burguesa. O
que parece ainda uma proposta utópica, inalcançável,
será cada vez mais (à medida que avance a crise geral dos
sistemas) um programa urgente de sobrevivência
(re-humanização dos "sentido comum").
Mas hoje estamos mergulhados em plena crise capitalista onde a
penúria energética
constitui uma realidade iniludível, e consequentemente ocupa o centro
do campo de batalha pela apropriação dos ditos recursos entre as
potências dominantes (EUA, Japão, União Europeia) e os seus
associados emergentes periféricos (China, Índia). Aparece
então a guerra pelo controlo das jazidas e das vias de
distribuição (oleodutos e gasodutos) e o seu impacto, não
só sobre o mundo subdesenvolvido, mas também sobre a
evolução social dos países centrais (por exemplo a tese
sobre o "fascismo energético"). Essa guerra começou nos
anos 1990 quando o tema do esgotamento dos recursos energéticos tinha
ainda uma difusão marginal. A ofensiva norte-americana sobre a
Eurásia, em alguns casos solitária e em outros associada à
União Europeia, iniciou-se com a primeira Guerra do Golfo, seguida pelas
guerra da Jugoslávia (flanco esquerdo da zona euro-asiática) e
continuou com as invasões do Afeganistão e Iraque, as
ameaças ocidentais contra o Irão, até chegar às
recentes aberturas de novas frentes militares no Cáucaso (enfrentando a
Rússia) e no Paquistão. Trata-se de uma louca cavalgada para a
frente, acompanhada pela incessante expansão da NATO.
A crise económica em curso poderia em princípio travar o
ímpeto imperialista, ainda que não seja seguro que tal
aconteça, e também poderia impor-se a alternativa oposta: a
escalada militarista do Ocidente a experiência histórica
ocidental ensina-nos que a sua anterior mega-crise (aproximadamente 1914-1945)
gerou o fascismo e a guerra. A decomposição e
recomposição autoritária constituem tendências
visíveis que podem alternar-se e inclusivamente combinar-se tragicamente.
Por seu lado a crise alimentar está estreitamente associada ao tema
energético. As transformações neoliberais que liquidaram
as economias campesinas tradicionais contribuíram para o problema,
enquanto as novas pressões de procura de alimentos (por exemplo a China)
e a avalanches especulativas sobre esses produtos empurraram os preços
para cima. Mas foi principalmente a crise energética o que mais
impulsionou os custos agrícolas através dos maiores preços
dos hidrocarbonetos. As chamadas modernizações agrárias,
as "revoluções verdes" aplicando tecnologias
avançadas, mais "produtivas", geraram uma dependência
aguda em relação aos hidrocarbonetos nos principais sistemas
agrários do planeta. Quando chegou a crise da energia, o remédio
procurado através dos biocombustíveis encareceu terras e produtos
agrícolas.
Encontramo-nos agora perante a perspectiva de uma
subprodução relativa de alimentos à escala global
(paralela à subprodução energética)
causada pela dinâmica geral (o chamado
progresso
) do capitalismo, o seu desenvolvimento tecnológico.
A crise dos Estados Unidos
A economia norte-americana apresenta-se como o centro gerador das três
crises acima mencionadas: a sua voracidade energética opera como
principal catalisador das turbulências nos mercados petrolífero e
alimentar, a sua hipertrofia parasitária (especulativa, militar,
consumista) alimenta a desordem financeira mundial. Trata-se de um longo
processo de desenvolvimento de tendências internas-externas que se
fundiram na decadência da sociedade estado-unidense, que pelo seu enorme
peso relativo global condicionou a evolução do resto do mundo
[5]
.
No último quarto de século os Estados Unidos sofreram uma
profunda transformação de carácter elitista e
parasitário. A concentração de capital foi decisiva, a
população 1% mais rica concentrava no início dos anos 80
entre 7 e 8% do produto nacional bruto, hoje concentra cerca de 20% e os 10%
mais ricos passaram no mesmo período dos 33% aos 50% de todo o capital
nacional. Mas as classes altas não converteram os capitais em maior
poupança e inversão, mas sim na base da sua destravada caminhada
consumista. O aforro pessoal médio (originado em maior parte nas classes
média e alta) representava no início dos anos 90 entre 7 e 8% do
capital médio disponível, desde há pouco mais de 5 anos
está muito próximo do zero. No pólo oposto da sociedade os
salários dos mais pobres foram perdendo velocidade até
começarem a cair em valor real durante a actual década,
acompanhados por uma crescente precarização laboral. Como
resultado, o produto nacional bruto real médio dos norte-americanos
é hoje inferior ao do ano 2000.
O consumismo avançou paralelamente à
financeirização generalizada, em primeiro lugar das grande
empresas, que até meados dos anos 80 obtinham dos seus negócios
financeiros cerca de 16% de todos os seus benefícios obtidos em
território estado-unidense, para vinte anos depois elevar essa cifra aos
40%
[6]
.
O avanço parasitário impulsionou um processo de
degradação da integração social e dos cumprimentos
das normas de convivência, a transgressão e a criminalidade
penetraram nos mais diversos sectores da população, cuja
dinâmica elitista gerou a criminalização dos sectores
inferiores. Actualmente as prisões norte-americanas são as mais
populadas do planeta: em 1980 alojavam 500 mil presos, em 1990 cerca de
1.150.000, em 1997 1.700.000 aos que se adicionavam 3.900.000 sob
vigilância (em liberdade condicional, etc.), mas nos finais de 2006 os
presos somavam cerca de 2.260.000 e os cidadãos sob vigilância
perto de 5 milhões; no total mais de 7.200.000 norte-americanos
encontravam-se sob custódia judicial
[7]
. Em Abril de 2008 um artigo do
New York Times
assinalava que os Estados Unidos, com menos de 5% da população
mundial alojavam 25% de todos os prisioneiros do planeta, um em cada cem dos
seus habitantes adultos encontra-se encarcerado é a mais alta
percentagem a nível internacional
[8]
.
A precarização laboral das classes baixas somada ao clima
consumista-parasitário proveniente das classes altas degradou
severamente a cultura produtiva, o que fez com que o sistema industrial ficasse
cada vez menos competitivo. O resultado foi um défice comercial
crónico que chegou em 2007 aos 800 mil milhões de dólares,
um factor adicional (e decisivo) do problema é o défice
energético que se foi acentuando desde os inícios dos anos 70,
quando começou a declinar a produção petrolífera
dos Estados Unidos, que actualmente importam cerca de 65% do que consomem. Esta
deterioração foi acompanhada por um défice fiscal
permanente e crescente.
Como consequência o Estado, as empresas e as famílias foram
acumulando dívidas enquanto o dólar declinava, assim apodrecendo
o pilar central da posição financeira internacional dos Estados
Unidos.
A 4 de Outubro de 2008 a dívida do estado federal alcançava os
1,1 milhão de milhões de dólares (a um ritmo diário
de uns 3 mil milhões de dólares se tomarmos como referência
os últimos doze meses) enquanto que a dívida total
(pública mais privada) tinha chegado aos 53 milhões de
milhões de dólares em finais de 2007 (equivalente ao Produto
Mundial Bruto desse ano ou a 3,8 vezes o PIB dos Estados Unidos). Trata-se em
síntese de uma economia que funciona (cada vez pior) sobre a base do
endividamento acelerado.
A degradação económica e social é agravada pelo
fracasso da estratégia militar do Império, centrada na conquista
de uma extensa área territorial euro-asiática que vai dos
Balcãs até ao Paquistão, passando pela Turquia, Iraque,
Arábia Saudita, Irão, e países da Ásia Central
até chegar ao Afeganistão. No centro da dita área
encontram-se as zonas dos Golfo Pérsico e da Baía do Mar
Cáspio que albergam cerca de 70% das reservas globais de
petróleo. Os Estados Unidos, desde o fim da Guerra-fria, foram cobrindo
esse espaço com bases militares e ocuparam alguns dos países. A
sua vitória permitir-lhes-ia avançar sobre a Rússia,
seguramente realizando uma mega tarefa de desmembramento, réplica a
grande escala do que foi obtido na ex-Jugoslávia, para depois encurralar
e submeter a China. Não se tratavam apenas de objectivos
energéticos, mas sim através deles de reassegurar o
domínio sobre o sistema financeiro internacional.
Mais ainda, é necessário superar o reducionismo económico
e transmitir a base cultural colonialista do Ocidente assumida pela elite
dominante norte-americana. Seguindo a sua velha utopia geopolítica
anglo-saxónica descrita por MacKinder há mais de um
século, essa grande conquista teria permitido ao Império possuir
o controlo planetário
[9]
, tendo os ideólogos dos falcões levado ao extremo (grotesco) a
dita ilusão, herdeira ainda do "
milénio germânico
" anunciado por Hitler.
Mas a estratégica euro-asiática fracassou, a economia decadente
dos EUA não está em condições de assumir uma grande
guerra universal, a degradação da sua coesão social limita
as possibilidades de recrutamento de tropas, obrigando-os a incorporar
mercenários. Como com outros impérios em declínio do
passado, vêm-se em mãos com uma formidável "
sobre-extensão estratégica
" (Paul Kennedy), que aprofunda ainda mais a crise.
A decadência norte-americana arrasta o mundo capitalista pois os Estados
Unidos constituem o espaço essencial da interpenetração
produtiva, comercial e financeira à escala planetária, que se foi
acelerando nas três últimas décadas até formar uma
trama muito densa da qual nenhuma economia capitalista desenvolvida ou
subdesenvolvida pode escapar (sair dessa rede significa romper com a
lógica, com o funcionamento concreto do capitalismo integrado pelas
classes dominantes locais altamente transnacionalizadas).
Por outro lado a crise norte-americana não é o resultado
exclusivo de factores endógenos, do seu consumismo parasitário,
os seus défices e endividamentos foram funcionais para a crise
crónica de sobre produção de carácter global.
As grandes economias centrais e as novas economias crescentes (como a China ou
a Índia) puderam crescer graças à capacidade de
absorção de mercadorias e capitais por parte do mercado
norte-americano. Em alguns casos tratam-se de colocações directas
de excedentes, em outros de vendas e inversões em mercados cada vez mais
relacionados com os Estados Unidos, mas o Império aparece sempre como
motor em última instância do sistema universal.
Agora, quando os Estados Unidos entram em recessão, são seguidos
pelas outras potências.
Poderíamos estabelecer uma comparação histórica
entre os dois impérios atlânticos que dominaram todo o
desenvolvimento do capitalismo industrial desde a sua origem nos finais do
século XVIII até ao presente. Primeiro o Império
Inglês, desbaratando na sua etapa juvenil, no início do
século XIX, a tentativa de hegemonia francesa, mais à frente,
desde as últimas décadas desse século, acossado pelo
imperialismo alemão que finalmente derrota, subordinado pelas duas
guerras mundiais no século XX. Daí para a frente a
decadência da Inglaterra foi mais que compensada pela ascensão dos
EUA, seu filho cultural, por sua vez em declínio hoje (mas que, antes de
acelerar o seu declínio, derrotou o seu inimigo estratégico
global: a URSS). Além disso este ciclo imperial anglo-norte-americano
deve ser associado ao ciclo energético apoiado na
exploração intensiva de recursos naturais
não-renováveis, hoje também declinantes (carvão
hegemonia da Inglaterra no século XIX; petróleo
hegemonia dos Estados Unidos no século XX).
Crise militar
No centro do fracasso euro-asiático encontra-se o do
Complexo Militar Industrial
norte-americano. A sua crise adquire dimensão global não
só pela magnitude da sua estrutura como também porque a sua
decadência arrasta o conjunto da NATO, em especial as grandes
forças europeias como as da Inglaterra ou França.
O Iraque é o pântano dos estado-unidenses, mas o
Afeganistão (e cada vez mais o Afeganistão-Paquistão)
é o pântano comum de todas as forças ocidentais.
A despesa militar real nos Estados Unidos chegou a níveis nunca antes
alcançados. Se às verbas do Departamento da Defesa (uns 700 mil
milhões de dólares) somarmos as despesas militares das demais
áreas do Estado, chega-se para este ano a cerca de 1,1 milhão de
milhões de dólares
[10]
.
Restringindo-nos às despesas dos Departamentos ou Ministérios da
defesa dos países da NATO chegamos a 70% das despesas militares globais
calculadas desse modo. E contudo não podem ganhar a guerra do
Afeganistão depois de mais de seis anos de combates (as últimas
informações disponíveis assinalam que é antes a
resistência afegã que está a obter vitórias), diante
do que a NATO respondeu estendendo a guerra ao Paquistão.
Por outro lado, os Estados Unidos responderam recentemente ao seu atolamento no
Iraque desencadeando uma guerra no Cáucaso, empurrando ao combate a
minúscula Geórgia contra a Rússia, a segunda
potência militar do mundo.
Em ambos os casos, para os ocidentais o resultado é catastrófico.
Poderíamos somar um terceiro exemplo, o do fracasso da última
invasão israelense do Líbano utilizando forças militares
esmagadoramente superiores às da guerrilha Hesbollá e apoiada
pelas forças norte-americanas instaladas na região. Também
ali tratava-se de uma
"fuga para a frente"
que além disso apontava rumo ao Irão.
Duas observações parecem-me úteis.
Primeiro, encontramo-nos perante uma grave "crise de
percepção" dos comandos militares da NATO (principalmente
dos norte-americanos) extensível às elites dominantes desses
países. Não é uma crise passageira, exprime uma
degradação psicológica profunda, um autismo muito
desenvolvido, que pela sua permanência e avanço só pode ser
compreendido se o incluirmos dentro de um processo de degradação
mais amplo (cultural, económico, político, social).
Segundo, estas guerras coloniais fracassadas do século XXI mostram a
confrontação entre aparelhos militares imperialistas extremamente
custosos e refinados e resistências armadas populares que, apesar da
pobreza dos seus integrantes, dos seus escassos recursos, demonstram uma enorme
criatividade técnico-militar.
Ao contrário das guerras coloniais do passado onde a modernidade
ocidental enfrentava o
"atraso"
periférico submetendo-o brutalmente ao capitalismo ascendente, agora a
refinada maquinaria bélica imperial luta contra forças
suficientemente
"modernas"
e informadas para combater com alta probabilidade de êxito. A
vitória cultural planetária da modernidade ocidental terminou por
engendrar um inimigo formidável aos seus projectos de
dominação, a periferia aprofundou seu subdesenvolvimento,
integrou-se completamente na civilização burguesa e quando esta
entra em decadência os rebeldes periféricos dispõem
graças a ela da cultura técnica que lhes permite derrotar o seu
inimigo imperial.
Talvez estejamos a presenciar a última etapa da longa história do
capitalismo de estado blindado, do mega aparelhismo autoritário militar
fundado na convergência entre ciência, tecnologia, indústria
e administração pública, originada na Europa de fins do
século XIX mas com antecedentes no desenvolvimento militar dos seus
estados burgueses desde a Revolução Francesa, as guerra
napoleónicas e a Revolução Industrial inglesa. O Complexo
Militar Industrial norte-americano teria levado este desenvolvimento até
o seu limite superior, até o refinamento tecnológico mais
irracional, até um gigantismo operacional que o impede de perceber o
"pequeno mundo"
real que pretende dominar. Este provável colapso do militarismo
burguês coincide com a crise da financiarização do
capitalismo, etapa caracterizada pela virtualização
parasitária da economia, onde os grandes operadores financeiros
confundem a realidade com um jogo de vídeo. Entre a
virtualização financeira e a virtualização militar
existem numerosos laços culturais, mafiosos, políticos,
psicológicos.
Crise do Estado
Também a crise do Estado norte-americano irradia-se para o resto do
mundo e ao mesmo tempo exprime um fenómeno universal. Não se
trata só de associar Bush com Berlusconi e Sarkozy como amostra da
degradação política dos estados ocidentais. Devemos ir
mais além e focar a crise dos estados integradores keynesianos (centrais
e periféricos, imperialistas e nacional-desenvolvimentistas) a partir
dos anos 1970 e talvez antes e sua apropriação por
parte das elites neoliberais. A referida revolução
política foi correspondida pela financiarização acelerada
do capitalismo, coincidente por sua vez com o fracasso de quase todos os
socialismos do século XX: derrube da URSS e da sua esfera de
influência, via livre ao capitalismo na China.
O estado intervencionista foi o produto superador das crises capitalistas
verificadas desde princípios do século XX. Sua ascensão
esteve sempre associada ao militarismo, às vezes de maneira
visível e outras, a seguir à segunda guerra mundial, sob disfarce
democrático (se observarmos a evolução dos Estados Unidos
desde os anos 1930 comprovaremos que o "keynesianismo militar"
constituiu até hoje a espinha dorsal do seu sistema).
Em numerosos países subdesenvolvidos durante o século XX o Estado
("socialista", "nacionalista", "popular", etc)
foi o pilar fundamental de uma ampla variedade de projectos emancipadores. Na
origem mais remota de todas essas experiências encontraremos a
transformação cultural que permitiu a superação do
capitalismo liberal desde fins do século XIX reinstalando a
expansão do sistema. A ferramenta decisiva do referido processo foi o
Estado interventor,
adoptando para o seu funcionamento soluções extraídas da
actividade militar como a planificação centralizada, o
verticalismo, etc.
De maneira extremamente sintética é possível afirmar que o
desenvolvimento das forças produtivas universais, até chegar
à sua degeneração parasitária-financeira actual,
terminou por ultrapassar os seus reguladores estatais, submergindo-os na maior
das suas crises.
O neoliberalismo aparentou ser a expressão de uma
globalização superadora dos estreitos capitalismos nacionais. O
mercado era postulado como espaço superior de desenvolvimento e a sua
liberdade como a condição indispensável para o êxito
dessa nova transformação. Na realidade, tratava-se do vigoroso
monstro financeiro a devorar o seu pai estatal-produtivo-keynesiano.
A superação estatista do capitalismo liberal do século XIX
não só marcou culturalmente as sociedades centrais como
também a periferia, onde surgiu como o instrumento idóneo para o
desenvolvimento independente diante da debilidade ou ausência de
burguesias locais medianamente nacionalistas. Além disso, desde
princípios do século XX, foi a componente decisiva dos projectos
de superação do capitalismo. Nesses casos, tratava-se de romper
com o capitalismo adaptando, "proletarizando", vestindo de socialista
os métodos do então jovem e aparentemente muito eficaz estatismo
burguês.
Mas esse estatismo envelheceu e finalmente foi submetido ao poder financeiro
globalizado, não foi derrubado pelo movimento insurgente
anti-capitalista central e/ou periférico apresentado como seu filho
negador-superador, que rebelando-se a partir das suas entranhas, regenerava o
desenvolvimento das forças produtivas. Está a ser devorado por
outro filho seu, astuto e tonto em simultâneo, improdutivo, cujo
único projecto é a depredação (financeira,
ecológica, social).
Crise tecnológica
O sistema tecnológico enlaça num todo coerente técnicas,
equipamentos, produtos, estilos de consumo, matérias-primas, redes de
comunicação e transporte. Visto de um modo mais amplo o mesmo
corresponde à civilização burguesa, é o
núcleo central.
O arranque do capitalismo industrial foi possível em fins do
século XVIII graças a um conjunto de inovações que
imprimira velocidade ao processo de acumulação, estendendo-os de
maneira global. Paralela à expansão colonial as novas
técnicas permitiram à indústria tornar-se independente dos
ritmos de reprodução natural de matérias-primas,
principalmente energéticas. A exploração intensiva de
recursos energéticos naturais não renováveis proporcionou
uma primeira fonte de energia barata e abundante: como já assinalei, o
ciclo do carvão mineral correspondente ao do capitalismo inglês. A
chegada na Inglaterra ao topo da produção de carvão em
princípios do século XX marcou o início do declínio
do império, foi uma das suas causas. Mas antes que isto ocorresse
havia-se iniciado o ciclo ascendente do petróleo com centro nos Estados
Unidos, que chegou ao seu zénite por volta de 1970.
Este laço entre capitalismo industrial e exploração
intensiva de recursos naturais não renováveis foi decisivo na
primeira configuração e evolução posterior do
sistema tecnológico moderno, marcou os modelos de
produção, consumo, transporte e comunicações.
Definiu inclusive, finalmente, o sistema de exploração dos
recursos naturais renováveis, como a agricultura e a pesca, inserindo-os
num processo mais amplo de depredação acelerada que desencadeia
agora uma crise ambiental que se vai estendendo acompanhada pelo
poderíamos definir como o princípio da etapa do declínio
na exploração dos recurso não renováveis (Peak Oil,
por exemplo).
Convém agora introduzir o conceito de
"limite estrutural"
(por que não "cultural" ou "civilizacional"?) do
sistema tecnológico definido por Bertrand Gille como o ponto no qual o
referido sistema é incapaz de aumentar a produção em geral
ou diminuir seus custos ou pelo menos impedir que estes últimos
continuem a aumentar perante "necessidades humanas" crescentes
[11]
. Não se trata de necessidades humanas em geral, ahistóricas, e
sim de necessidades sociais historicamente determinadas (com suas classes
sociais (impérios, populações submetidas, luxos, etc).
Nesse sentido é possível instalar a hipótese de que o
sistema tecnológico do capitalismo estaria a chegar ao seu limite
superior par além do qual vai deixando de ser a coluna vertebral do
desenvolvimento das forças produtivas para converter-se na ponta de
lança da sua destruição.
Este limite tecnológico pode ser visto como parte do fenómeno do
esgotamento da civilização burguesa dominada pelo parasitismo
financeiro (que não teria podido atingir o seu nível actual sem o
apoio das tecnologias de ponta).
Colapsos ambiental e urbano
Os colapsos ambientais são tão velhos quanto as decadências
das civilizações. Ritchie Carlder começa a sua
história das técnicas com o seguinte relato:
"A magnificência da Babilónia de Nabucodonosor não
existe mais. Juntamente com a suas múltiplas guerras, a obra principal
de Nabucodonosor foi a extensão e o embelezamento da Babilónia,
reparou o grande tempo de Marduk e construiu o enorme palácio imperial
coberto com numerosos terraços e seus jardins suspensos que foram uma
das sete maravilhas do mundo. Reconstruiu a Torre de Babel, edifício
piramidal em cujo topo se erguia um vasto templo.
Mas a seguir a natureza acrescentou a isso uma nota irónica, apontando
para as ambições do homem e a exploração a que este
a submeteu. O rio Eufrates tantas vezes manipulado, desviado do seu leito
natural, acabou por se vingar. Um belo dia transformou os arredores da
Babilónia num pântano esponjoso onde proliferaram os mosquitos do
paludismo, expandindo a doença e a morte, enfraquecendo a
população até o ponto em que já não teve
mais condições de manter a rede de canais e cultivar os campos: a
decadência acelerou-se. É possível afirmar que foram os
mosquitos e não os mongóis que precipitaram a ruína da
Babilónia. Antes que as hordas asiáticas se convertessem na
avalanche pagã que destruiu a Babilónia, cumprindo a profecia de
Isaías, os mosquitos haviam desempenhado o papel de comandos do
Senhor dos exércitos.
Alexandre Magno conquistou a Babilónia, invadiu a Pérsia e a
Índia para converter-se em amo de civilizações mais
antigas que a sua. A seguir, à frente do seu exército regressou
às terras da Babilónia e quando a elas chegou caiu doente e
morreu.
"Aqui morreu Alexandre Magno"
dizia-me o técnico iraquiano enquanto atravessávamos o
pântano da Babilónia, "morreu de malária, o mosquito
era o verdadeiro rei da Babilónia, recorde que o mais poderoso dos deus
babilónicos, Nergal, era representado sob o aspecto de um
mosquisto"
[12]
.
Georg Simmel (avançando num caminho antes visitado por Marx) estabelecia
na sua obra póstuma a contraposição, o antagonismo entre a
dinâmica da vida criadora e os seus produtos
("fixos")
que se
"autonomizam"
do seu realizar bloqueando ou inclusive destruindo o seu desenvolvimento
[13]
. Poderíamos levar esse enfoque rumo a uma sequência bem
conhecida: o homem domina a natureza através de técnicas que por
sua vez o condicionam, assumindo uma certa
"autonomia"
em relação ao seu criador, desenvolvendo rigidezes que bloqueiam
o desenvolvimento das suas forças produtivas. Obviamente, a referida
"autonomia" não é realmente exterior, está
presente enquanto rigidez civilizacional dentro do seu próprio sistema
social e pode chegar até a impedi-lo de modificar (superar) uma
dinâmica técnica que o conduz à depredação do
seu meio ambiente, ou seja, rumo à destruição do seu
entorno vital. Quando isso acontece é porque a civilização
que engendrou esse sistema técnico chegou à sua etapa senil (a
destruição do meio ambiente é na realidade
auto-destruição do sistema social existente). A história
das civilizações repetiu essa sequência. Agora é
evidente que o capitalismo, que não era o fim da história (e sim
uma etapa sinistra da mesma), torna a repeti-la. Mas a diferença
essencial com os tempos pré-modernos é que hoje já
não nos encontramos frente a uma catástrofe ambiental limitada a
uma região do mundo e sim diante de um desastre de extensão
planetária e de intensidade nunca antes alcançada. A radicalidade
do fenómeno questiona a técnica (convertida em
"tecnologia") enquanto instrumento de luta do homem
contra
a natureza, concebida como espaço exterior (hostil) que é
necessário dominar, controlar integralmente, manipulando a gosto seus
ritmos de reprodução, gastando à vontade seus tesouros.
Além disso, a separação ideológica entre o homem e
a natureza considerada como objecto de exploração é
indissociável da divisão do trabalho entre os homens superiores,
opressores, e os inferiores oprimidos considerados também matéria
passiva de exploração.
O capitalismo não inventou esse estilo, mas levou-o até o extremo
limite, até um nível tal que a sobrevivência da
espécie humana dependerá cada vez mais da perspectiva de
superação dessa longa história de
dissociação ideológica cujos resultados práticos
colocam o perigo do colapso planetário. A radicalidade do
fenómeno exige então fechar um prolongado ciclo de
civilizações cuja última etapa é a do mundo
burguês.
Estreitamente vinculado à questão ambiental surge o tema da crise
urbana. Também neste caso é necessário remontarmos
até um passado muito longínquo, até às origens da
civilização. Marx foi peremptório a respeito:
"A mais importante divisão entre o trabalho intelectual e o
trabalho material foi a separação da cidade e do campo. A
oposição entre a cidade e o campo inicia a passagem da
barbárie à civilização, do regime de tribos ao
Estado, da localidade à nação, e prossegue através
de toda a história da civilização até os nossos
dias"
[14]
. A isto é necessário
acrescentar
que a expansão urbana desenvolveu-se através de uma
sucessão interminável (ascendente no muito longo prazo) de
êxitos e fracassos, de progressos e degradações, onde a
cidade, centro do poder, da organização social e da
criação técnica, emergia como motor decisivo do
desenvolvimento das forças produtivas mas também como geradora de
parasitismo cuja hipertrofia terminava sempre por empurrar cada
civilização à decadência. O processo foi descrito
muito antes da modernidade. No século XIV árabe, por exemplo, Ibn
Jaldún, estabelecia uma teoria de ciclos de civilização
que começava com a imposição da hegemonia urbana gerando
progresso geral, continuava com a ascensão do parasitismo na cidade
(onde residia o poder) e concluía com a decadência
parasitária e o colapso do sistema
[15]
.
Mas com a irrupção do capitalismo industrial o sistema urbana
expandiu-se sem travões, como nunca antes havia feito. A tendência
acelerou-se a partir de meados do século XX e mais ainda nas
últimas décadas até chegar ao estabelecimento da vida
urbana burguesa como padrão único da cultura universal (em 2008 a
população urbana global atingirá as 3.300 milhões
de pessoa)
[16]
.
Desde princípios dos anos 1980, quando a desocupação e o
emprego precário nos países centrais tornaram-se crónicos
e quando a exclusão e a pobreza urbanas expandiram-se velozmente na
periferia, o crescimento das grandes cidades foi cada vez mais o equivalente de
involução das condições de vida das maioria (mega
urbanização = subdesenvolvimento caótico). Em 1980 a
população urbana periférica era da ordem das 930
milhões de pessoas contra cerca de 770 milhões no centro
(relação 1,2 para 1). No ano 2000, a relação passou
a ser de 2 par 1, as cidades desenvolvidas cresceram moderadamente chegando a
960 milhões e as subdesenvolvidas chegaram aos 1960 milhões,
aproximadamente a metade destes últimos a viverem em subúrbios
miseráveis. A era neoliberal com a sua avalanche de
privatizações, cortes de despesas públicas sociais e de
infraestrutura (principalmente nos países pobres), exclusão
produtiva e desregulamentação operou como um catalisador da
entropia urbana.
A decomposição das cidades é claramente visível na
periferia mas não é sua exclusividade. Trata-se de um
fenómeno global ainda que seja no mundo subdesenvolvido que sucedam os
primeiros colapsos, expressões mais agudas de uma maré
multiforme, irresistível. Pierre Chaunu assinalava como um dos sintomas
decisivos da decadência
"a aparição de cidades cancerosas de crescimento
anárquico, destruidoras do meio ambiente"
fazendo o paralelo entre os processo de declínio civilizacional no
Mundo Antigo, com o Império Romano por exemplo, e a
situação actual
[17]
.
Ciclos longos e integração das crises
O panorama global assume o aspecto de uma convergência de numerosas
crises de diferentes ritmos e impactos no curto prazo. Esta simultaneidade
sugere a existência de uma fenómeno maior que as inclua todas, a
ideia de
crise-sistémica-geral
surge como resposta imediata. Entretanto, o conceito de sistema apresenta-se
carregado de ambiguidades. De que
"sistema"
estamos a falar? Dos sistemas financeiro, económico, de hegemonia
norte-americana mundial, de hegemonia ocidental ou do sistema capitalista como
um todo? Além disso: trata-se de crise ou de algo muito mais grave?
Encontramo-nos talvez perante o princípio de um mega colapso
potencialmente mortal para o "sistema"? Por outro lado, com o correr
do tempo são percebidas novas crises que se incorporam à lista.
Exemplo: às nove turbulências acima descritas poderíamos
acrescentar a dos símbolos legitimadores da modernidades, suas normas,
valores, visões do fundo, identidades e todas aquelas
representações que concedem sentido à existência
[18]
, mais que evidente nos países centrais e também nos
espaços (preferencialmente urbanos) das zonas mais modernas da periferia.
Principiando a lista da crise com o ocaso dos Estados Unidos, o mesmo surge
como a etapa terminal do ciclo da hegemonia anglo-norte-americana que abarca
toda a história do capitalismo industrial, desde as suas origens por
volta dos fins do século XVIII, a seguir derrotando com êxito seus
oponentes francês (guerra napoleónicas), alemão (as duas
guerras mundiais) e soviético (guerra fria). Uma avaliação
prospectiva rigorosa nos levaria à conclusão de que não
existem num horizonte temporal razoável sucessores imperiais dignos
desse nome. A crise actual, sobretudo as turbulências financeiras em
curso e suas sequelas comerciais e industriais, confirmam plenamente essa
afirmação: as outras grandes potências estão
completamente atadas ao destino dos Estados Unidos e vice-versa.
Esse ciclo bicentenário coincide (encontra-se estreitamente associado)
com o da exploração intensiva dos recursos energéticos
não renováveis (super ciclo carvão petróleo)
coração do desenvolvimento industrial capitalista que pôde
arrancar e expandir-se vertiginosamente porque submeteu seus ritmos às
fontes energéticas (objectivo tecnicamente impossível se se
tratasse de recursos energéticos renováveis).
Por volta dos anos 1970 começou a declinar a produção
petrolífera norte-americana e o crescimento económico global das
décadas posteriores, centrado nos países de alto desenvolvimento
(energeticamente deficitários) acelerou a depredação
planetária desses recursos até chegar ao esgotamento (no decorrer
da década actual) de aproximadamente a metade das reservas. É o
que se conhece como "peak oil" ("pico petrolífero"),
o máximo da extracção petrolífera global, antessala
do seu declínio que por sua vez (re)introduz depois de dois
séculos o tema da penúria alimentar.
Por sua vez a financiarização acelerada do capitalismo
desenvolveu-se a partir de fins dos anos 1960 até chegar a uma
hipertrofia impossível de controlar e que agora entra num período
de alta turbulência. A ascensão do capital financeiro como centro
dominante do sistema foi detectada há quase um século, mas
não deveríamos deter a história ali, é
necessário remontar às origens do capitalismo industrial e da sua
crise de sobre produção ao longo do século XIX. Depois de
cada uma dela e verificada a depuração correspondente, o sistema
não renascia como se nada houvesse ocorrido, não só
acumulava a inovações da etapa anterior, às quais
acrescentava outras, como herdava também algumas feridas, algumas taras,
alguns segmentos parasitários (financeiros, por exemplo) que passavam a
fazer parte da nova etapa. Assim podemos ver, seguindo Marx, como o
capitalismo vai transitando uma sucessão de crises superáveis que
apontam para uma crise de carácter geral. A mesma não se
verificou em fins do século XIX ou em princípios do século
XX porque o capitalismo não é só uma
"estrutura económica"
e sim algo mais amplo. Trata-se de um sistema social muito complexo capaz de
gerar correctivos, remendos ou inclusive grandes transformações
que lhe permitiram sobreviver e crescer. Não se trata da
imposição de soluções salvadoras a partir do
não económico (a partir da esfera política, por exemplo)
impostas à irracionalidade económica, e sim de uma
interacção plural no interior das classes dominantes que vai
desenhando a alternativa mais eficaz. O estatismo, o militarismo, a
expansão financeira conjugaram-se para salvar o sistema. Podemos
então traçar um só ciclo capitalista bicentenário,
primeiro sob hegemonia industrial e depois financeira.
O militarismo moderno tão-pouco foi uma inovação que
surgiu de improviso em fins do século XIX, seu primeiro desenvolvimento
foi paralelo à consolidação do estado burguês no
Ocidente e sua periferia colonial. A introdução da ciência
na esfera militar e a transformação desta última numa
estrutura de carácter industrial foi-se conformando gradualmente ao
longo desse século, no final do qual deu um salto qualitativo. Sua
hipertrofia aparelhista actual impulsiona e é impulsionada pela crise
geral, tem a ver com o horizonte de penúria energética (guerras
euro-asiáticas) e com sua expansão incessante sob
predomínio europeu durante todo o século XIX e princípios
do século XX quando arrancou o moderno Complexo Militar-Industrial e
mais adiante, desde a segunda guerra mundial, sob predomínio
norte-americano (marcado pelo
"keynesianismo militar"
). O que o converteu na era da financiarização acelerada (desde
meados dos anos 1970) num pilar decisivo dos negócios
industrial-financeiros mais concentrados cuja degradação
parasitária o sobre determina.
O mito do Estado ausente ou marginal durante a era do capitalismo liberal do
século XIX deve ser revisto. Foi a resultante de
vulgarizações fortemente impregnadas de ideologismo burguês
que retornaram com força na era neoliberal. O estado ainda fraco em
princípios do referido século foi crescendo e incrementando as
suas funções à medida que a expansão
económica o permitia e que as crises do sistema o exigiam, até se
converter no estado-interventor do século XX. A actual
degradação do Estado (financeira, cultural, técnica)
é o fim de um longo ciclo e está enlaçada com outras
crises já mencionadas. A hipertrofia burocrático-militar do
Império afecta-o de maneira directa, os altos círculos
financeiros controlam os estados das grandes potências convertendo-os em
marionetas dos especuladores.
Tanto a crise militar como a crise energética e alimentar, assim como em
última instância a crise da financiarização
originada nas crises de sobre produção crónica
estão a alertar-nos acerca da existência de uma profunda crise do
sistema tecnológico da modernidade, da civilização
burguesa, incapaz de superar seus bloqueios, de gerar uma onda global de
inovações que possibilite ampliar a longo prazo a expansão
do capitalismo introduzindo transformações decisivas (no perfil
de consumo energético, por exemplo). O mundo burguês ficou
prisioneiro da sua cultura produtiva, das suas proezas científicas e
tecnológicas, ou seja, de uma acumulação cultural
demasiado pesada para que seja removida (renovada) por uma
civilização velha.
A crise urbana deriva directamente do processo de financiarização
que desestruturou aparelhos produtivos periféricos, concentrou
rendimentos à escala mundial, elitizou os estados anulando o diminuindo
seu anterior papel integrador.
O fim da crise ambiental surge com laços directos com todas as crises
mencionadas e de maneira muito evidente com o esgotamento do sistema
tecnológico cuja rigidez o converte no motor da destruição
ecológica.
Esta multiplicação ao infinito de
"crises"
e a sua crescente virulência e interacção está a
assinalar-nos que nos encontramos frente à crise do sistema como
totalidade civilizacional. O mesmo vem experimentado nas últimas quatro
décadas diversas crises parciais, sobretudo financeiras, no âmbito
de uma longa decadência geral onde o parasitismo depredador foi
avançando de maneira irresistível em todas as esferas da vida
social. Desse modo, a longa crise do capitalismo convertida em decadência
derivou finalmente, agora no final da primeira década do século
XXI, num colapso financeiro que poderia chegar a combinar-se com outras
turbulências agudas e transformar-se em colapso geral da
civilização vigente. Colapso não equivale de modo imediato
a morte, mas se se estender e perdurar pode engendrar a
desintegração imparável do sistema (o paralelo com a
decadência do Império Romano é inevitável).
Estávamos acostumados a ver as crises do capitalismo como crises de
sobre produção. Desse modo aproximávamo-nos à
realidade mas não conseguíamos entendê-la bem. A crise
crónica, longa, de sobre produção não impediu o
crescimento económico, mas exacerbou as tendências
parasitárias, a cultura do curto prazo, a frivolidade como padrão
de comportamento, a depredação de forças produtivas e de
ecosistemas, e começa a derivar numa
crise de subprodução
(centrada por agora de maneira visível no teto energético) o que
nos permite estabelecer afinidades com decadências e colapsos de
civilizações anteriores ao capitalismo (que afinal de contas
não é tão original quanto havíamos acreditado).
Neste novo contexto abrem-se cenários futuros que giram em torno de
desenvolvimentos potenciais visíveis e invisíveis. A
instauração de um tecno-fascismo imperial conta aparentemente com
sérias bases de apoio evidenciadas ao longo da era Bush. Ainda que esse
poderio esteja demasiado enlaçado à crise em curso, até
que ponto a crise pode chegar a deteriorar seriamente a referida alternativa
até torná-la impraticável? Outra perspectiva
"visível"
é a de sobrevivência de capitalismo de baixa intensidade tanto no
actual centro como na periferia. Seriam a expressão de uma prolongada
decadência sem superações no caminho (uma espécie de
"mais do mesmo"
pobre e degradado).
A superação humanista, estendendo a liberdade e a solidariedade,
abolindo desigualdades, pareceria uma utopia enterrada no passado. Contudo, um
olhar histórico profundo nos permitiria descobrir um incrível
século XX (quase invisível) sepultado pelo virtualismo
neoliberal. Nesse século, e pela primeira vez na história das
civilizações, centenas de milhões de seres humanos
exerceram seus direitos democráticos ainda que em numerosos casos estes
fossem a seguir abastardados ou esmagados, entraram em sindicatos, elegeram
autoridades, fizeram revoluções populares e inclusive algumas
socialistas.
Mais ainda: sob a recente modernização financiarizada
(neoliberal) multiplicaram-se as redes de comunicação (internet)
tornando possíveis formas futuras de participação e de
exercício da democracia directa nunca antes imaginadas. Este enorme
potencial democrático começou a desenvolver algumas
expressões do que poderia chegar a constituir uma alternativa ou um
leque plural de alternativas de dimensão universal.
Periodização
Poderíamos periodizar todo o desenvolvimento do capitalismo industrial
utilizando uma curva em forma de sino que representaria a trajectória
temporal de um indicador do dinamismo do sistema, dividida em quatro
períodos.
Um primeiro período, o mais longo, poderia ser definido como de
"capitalismo jovem"
. Suas crises de superprodução foram em última
instância crises de crescimento, depois de cada grande turbulência
o sistema expandia-se, melhorava quantitativa e qualitativamente, o optimismo
histórico (progressismo derivado do iluminismo) dominava a cultura das
classes dominantes, seus saqueios coloniais eram visualizados como
historicamente positivos pelas sociedades centrais (e pela elites coloniais).
Também era vista de maneira positiva a super-exploração de
recursos naturais não renováveis apresentada como proeza
técnica e científica, o mito de uma revolução
tecnológica infinita instalou-se de maneira durável.
Mas no capitalismo jovem sucediam-se crises que, ainda que superadas, deixavam
sequelas negativas até engendrar finalmente um poder parasitário
financeiro que em princípios do século XX se tornou dominante.
Entramos então num segundo período de
"capitalismo maduro"
onde a intervenção estatal, junto aos parasitismos militar e
financeiro, conseguiram controlar as sucessivas crises de sobre
produção das quais emergiram alguns sintomas de decadência.
Esta confusão histórica entre componentes de decadência com
outros de eficácia e progresso colocou sucessivas bombas relógio
nos processos de ruptura periférica, com maior carga trágica
naqueles que anunciavam a superação do capitalismo. As primeiras
fissuras graves do mundo burguês brindaram espaços
favoráveis para as revoluções anti-imperialistas e
socialistas periféricas mas a hegemonia cultural do capitalismo
encadeou-as a muitos dos seus mitos consumistas, tecnológicos,
administrativos, etc. Vistas a partir da longa duração da
história poderíamos ver estas revoluções como
processos pioneiros, culturalmente débeis, perante os quais o mundo
burguês cedeu espaço (mediante empurrões) ainda que tenha
podido finalmente encurralá-los, vencê-los, integrá-los na
sua decadência.
A terceira etapa é a do
capitalismo senil
[19]
iniciado nos anos 1970 ao longo do qual se desenvolveu uma crise
crónica de sobre produção que acelerou a
financiarização do capitalismo até se tornar
hegemónica, impondo sua marca à cultura universal. Junto ao
cancro financeiro expandiram-se as mais variadas formas de parasitismo e de
saqueio de recursos naturais e estruturas produtivas periféricas. O
crescimento do Complexo Militar Industrial não se deteve com o fim da
Guerra-fria e chegou, sim, a níveis nunca antes alcançados.
Durante a maior parte da era do capitalismo senil as crises
catastróficas foram impedidas, reguladas graças ao instrumental
de intervenção herdado da era keynesiana. A grande crise foi
adiada mas não eliminada do horizonte. A crise crónica de sobre
produção associada à super-exploração dos
recursos naturais agora aponta claramente para uma
crise geral de subprodução
iniciada com as crises energética e alimentar.
Desse modo o sistema tecnológico do capitalismo que proclamava haver
terminado com as crises de subprodução das
civilizações anteriores, afectado apenas por crises de
sobre-produção até agora controladas, termina o final do
seu ciclo gerando uma crise de subprodução planetária, a
maior da história humana.
Finalmente explodem todas as
"crises"
de maneira conjunta e o sistema vai entrando numa zona de
colapso.
Notas
(1), OECD, "National Accounts-Main Aggregates, 1960-1996", OECD,
Paris, 1998; OECD "OECD Economic Outlook" (varios números).
(2), "O capitalismo que iniciou o seu desenvolvimento com o pequeno
capital usurário chega ao final deste desenvolvimento como um capital
usurário gigantesco... Todas as condições da vida
económica sofrem uma modificação profunda em
consequência desta degeneração do capitalismo"
(pág. 767) ... "Onde está a base deste fenómeno
histórico universal? Encontra-se no parasitismo e na
decomposição do capitalismo inerentes à sua fase
histórica superior..." (pág. 729). Lenin, "El
Imperialismo, fase superior del capitalismo", en V.I.Lenin, Obras
Escogidas, tomo I, Ediciones de Lenguas Extranjeras, Moscu, 1960.
(3), Nikolai Bukharin, "Theory of the Leisure Class", International
Publishers, 1927.
http://www.marxists.org/archive/bukharin/works/1927/leisure-economics/index.htm
(4), Energy Watch Group
(
http://www.energywatchgroup.org/Reports.24+M5d637b1e38d.0.html
); "Oil
Report", "Coal Report", "Uranium Report".
(5), Uma análise mais pormenorizada do tema pode ser encontrada em:
Jorge Beinstein. "El hundimiento del centro del mundo. Estados Unidos
entre la recesión y el colapso", Rebelión, 08-05-2008,
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=67099
e
O naufrágio do centro do mundo Os EUA entre a recessão e o colapso
(6), "Economic Report of the President", 2008.
(7), U.S. Department of Justice - Bureau of Justice Statistics.
(8), Adam Liptak, "American Exception. Inmate Count in U.S. Dwarfs Other
Nations", The New York Times, April 23, 2008
(9), MacKinder escreveu que
"quem domine o coraçã continental da Ásia
dominará a ilha mundial Eurásia e África, quem
domine a ilha mundial dominará o mundo ".
Halford John Mackinder, "
Britain and the British Seas",
su primera edición fue realizada por Heinemann, London, 1902.
(10), Chalmers Johnson, "Going bankrupt: The US's greatest threat",
Asia Times, 24 Jan 2008.
(11), "Histoire des techniques", sous la direction de Bartrand Gille,
La Pléiade, Paris, 1978.
(12), Ritchie Calder, "L'homme et ses techniques", Payot, Paris, 1963.
(13), Georg Simmel, "Intuicion de la vida", Caronte Filosofía,
La Plata, 2004.
(14), Karl Marx, Oeuvres Philosophiques, tome VI, Editions Costes, Paris, 1950.
(15), Ibn Jaldún, "Introducción a la historia universal
(Al-Muqaddinmah)", Fondo de Cultura Económica, México, D.F,
1977.
(16), United Nations Population Fund, Estado de la población
mundial-2007.
(17), Pierre Chaunu, "Histoire et décadence", Perrin, Paris,
1981.
(18), Alain Bihr, "Actualiser le communisme",
http://www.plusloin.org/textes/Commu.PDF
(19), O conceito de capitalismo senil foi elaborado nos anos 1970 por Roger
Dangeville (Roger Dangeville, "Marx-Engels. La crise", editions
10/18, Paris 1978) e retomado na década actual por varios autores
(Jorge Beinstein, "Capitalismo Senil", Ediciones Record, Rio de
Janeiro, 2001), Samir Amin , "Au delà du capitalisme senile",
Actuel Marx -PUF, Paris 2002).
Outros ensaios do autor:
Inflação, agronegócios e crise de governabilidade
, 21/Jul/08
O naufrágio do centro do mundo: Os EUA entre a recessão e o colapso
, 08/Mai/08
No princípio da segunda etapa da crise global
, 13/Fev/08
Estados Unidos: a irresistível chegada da recessão
, 06/Jun/07
O declínio do dólar… e dos Estados Unidos
, 18/Jan/07
A solidão de Bush, o fracasso dos falcões e o desinchar das bolhas
, 27/Ago/07
A irresistível ascensão do ouro
, 03/Jul/06
O reinado do poder confuso
, 12/Abr/06
Os primeiros passos da megacrise
, 24/Jan/06
As más notícias da petroguerra
, 20/Jul/05
Pensar a decadência: O conceito de crise em princípios do século XXI
, 11/Abr/05
Os Estados Unidos no centro da crise mundial
, 01/Nov/04
A segunda etapa do governo Kirchner
, 07/Out/04
A vida depois da morte: A viabilidade do pós-capitalismo
, 07/Set/04
[*]
jorgebeinstein@yahoo.com
Intervenção apresentada no seminário internacional
"Colapsos ecologico-sociais e económicos", na Universidade
Nacional Autónoma do México, 29 a 31 de 0utubro de 2008.
Tradução (parcial) de João Camargo.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
.
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