Os Hamlets portugueses e a saída do Euro
por João Carlos Graça
[*]
As
observações de Eugénio Rosa
relativas à
possível saída de Portugal da UEM são relevantes: quer
pelo seu conteúdo e pelas circunstâncias em que são
proferidas, quer pela pessoa que as enuncia. Não vou alongar-me aqui
demasiado a esclarecer o quanto Eugénio Rosa me é merecedor de
respeito: política, académica, pessoalmente. Todavia, a nota
suscita-me sobretudo a seguinte réplica: é normal ter-se os
"pés frios" antes duma intervenção
cirúrgica? Sim, claro que é normal. Todas as
intervenções cirúrgicas comportam por
definição alguma margem de risco e, pior ainda, de verdadeira
"incerteza", isto é, de imprevisto e intrinsecamente
imprevisível: um número interminável de pequenas coisas
que realmente podem correr mal.
Ainda assim, saber-se que se tem um cancro e continuar a recusar a cirurgia
é que me parece completamente impensável. O artigo de
Eugénio Rosa pode, portanto, ser bom e aproveitável sobretudo
como contributo para se pensar bem nas medidas prudenciais necessárias,
que se terá de tomar em caso de saída do Euro. E elas são
várias, admito-o desde já e de forma inequívoca.
Incluem, na minha opinião, obrigatoriamente o
default
relativamente à dívida externa (com o reescalonamento compulsivo
dos pagamentos e o pagamento só mesmo daquilo que se puder pagar e nas
modalidades em que se puder pagar), o controlo dos movimentos de capitais e a
nacionalização da banca. Provavelmente, toda a banca; quase de
certeza, a maior parte dela.
Quanto aos efeitos benéficos da saída, são todavia
também vários. Incluem evidentemente a muito falada (e realmente
muito importante) desvalorização cambial, com o subsequente
relançamento das exportações e do turismo. Estes aspetos
NÃO são laterais, ao contrário do que tantas vezes
é sugerido pelos defensores da manutenção no Euro a todo o
custo. A taxa de câmbio é um dispositivo económico
fundamental. Desprezá-lo equivale, entre outras coisas, a desprezar
simplesmente o papel da existência da moeda, e em particular da moeda
fiduciária isto é, do papel-moeda emitido por bancos
emissores apoiados nos poderes soberanos, tal como existe na maior parte dos
países desde pelo menos finais do século XIX.
Ou seja, quem assume a desvalorização cambial e a alternativa
"desvalorização interna" como sendo, no fundamental, a
mesma coisa incorre na verdade numa dupla falácia: a) a correspondente
à clássica falácia do "véu
monetário", isto é, supor-se que uma economia
monetária é fundamentalmente o mesmo que uma simples
"economia real", uma economia de funcionasse sem moeda, ou baseada na
troca direta; e b) a correspondente ao não reconhecimento de que a
moeda, nas sociedades contemporâneas, corresponde basicamente a uma
extensão direta do exercício da soberania, da qual todavia
vários grupos privados encontraram uma forma para recolherem os
benefícios, deixando entretanto do lado do público os
prejuízos, em caso de estes ocorrerem (vide o caso paradigmático
do BPN, mas vide também vários outros, versões mitigadas
do mesmo princípio). A verdade é que, nas nossas sociedades, TODA
a "banca privada" constitui de facto uma "parceria
público-privada": com lucros e prejuízos, cada um deles, do
lado do costume, tal como acontece por princípio nas
"PPP"
Mas é melhor deixar aqui de lado aspetos mais gerais ou meramente
"teóricos" da discussão: a alternativa portuguesa a uma
desvalorização cambial, e dado o nosso sistemático
défice da balança de pagamentos (que é a origem principal
dos males atuais) corresponde a uma "desvalorização
interna" que, para além de necessariamente mais do que proporcional
(porque só atinge salários e pensões, não
rendimentos do capital e da propriedade), também é socialmente
muitíssimo iníqua (idem aspas), e para além de tudo o mais
indutora de recessão, dado que os efeitos benéficos em
matéria de promoção de exportações e de
inibição das importações demoram neste outro caso
muito mais a sentir-se, e entretanto a economia no seu conjunto vai ao tapete,
como resultado de efeitos recessivos em "bola de neve" no plano
interno. Tal como estamos a ver: ao vivo e a cores, todos os dias desde
há pelo menos dois anos (na verdade mais, mas deixemos isso
também agora de lado).
É bom que se compreenda bem isto, e que se vá pensando que, em
vez de meramente recusar o argumento neoliberal tradicional do "
there-is-no-alternative
", o que deve de facto fazer-se é virar-se esse argumento ao
contrário, fazendo valer a ideia de que todas espadas têm dois
gumes. É necessário que se compreenda isto, para não se
cair na esparrela em que me parece cair a generalidade das iniciativas de
protesto hoje em dia. Mesmo quando isso vem embrulhado em muita retórica
"social", e às vezes até mesmo
"revolucionária", a verdade é que, face ao muro
representado pela opinião
mainstream,
o protesto social tende hoje em dia a "encolher-se", refugiando-se
em ideias vagas de que "a Europa" devia isto, ou que "a
Europa" bem podia aquilo, de que Merkel é realmente muito
antipática, mas o Hollande talvez seja um bocadito mais suave, etc.
"A Europa", compreendamo-lo com clareza, não irá NUNCA
fazer o correspondente às propostas destas pretensas
"alternativas". As quais, por isso, não o são de facto.
É tão simples quanto isso.
Se queremos REALMENTE um outro rumo geral para os acontecimentos, e que o
protesto seja algo mais do que simples balbucio e "voto de protesto"
inconsequente, se queremos, todos nós, ser mais do que "homens
vazios, homens de palha, uns nos outros apoiados", etc., temos bom
remédio: antes de mais, recuperar a soberania monetária. Isso,
só por si, já nos dá muito mais armas negociais,
subtraindo-nos à posição de "
sitting ducks
" em que os arranjos institucionais do Euro nos deixaram.
Depois, compreensão da inevitabilidade, da necessidade imperiosa e
incontornável da desvalorização cambial, se se pretende de
facto uma alternativa à catástrofe diária e crescente,
à calamidade coletiva, ao verdadeiro suicídio nacional ao ralenti
que é a "desvalorização interna" em curso, seja
ela mais à bruta ou mais "vaselinizada", comandada pelo PSD,
pelo PP, pelo PS, por todos eles
ou no limite caso fosse mesmo comandada
pelo BE ou
mutatis mutandis
pelo SYRIZA, caso estes por hipótese pudessem formar governos,
insistindo todavia em continuar no Euro, como é hoje em dia a
posição oficial destes partidos. Aos que argumentam que a
desvalorização cambial traria inflação, anulando-se
por isso os seus efeitos benéficos, recomendo como antídoto a
leitura da obra-prima de ironia concentrada que é este post do Nuno
Teles, aqui:
ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2012/07/o-valor-da-moeda-nao-interessa.html
(É mesmo só comparar 0,9 por cento de crescimento das
exportações, sem o fator da desvalorização cambial,
com 31,4 por cento de crescimento havendo desvalorização cambial,
e de apenas 13,5 por cento, e só face ao dólar
)
É razoável admitir que euro e dólar norte-americano
rivalizam como moeda de reserva mundial. Também é claro que a
economia alemã aguenta essa guerra na perfeição, visto que
se mantém excedentária relativamente ao exterior. Ou talvez se
possa conjeturar que os alemães, ao insistirem na cartada da
valorização, ou da "moeda forte", estão de facto
a fazer um frete aos norte-americanos, de resto tal como estes estão
sempre a reclamar também, por exemplo, dos chineses. Mas isto tudo
já são já conjeturas. O que é ainda muito mais
claro é que Portugal NÃO aguenta esta cartada da "moeda
forte", e que essa não é NEM TEM DE SER a nossa guerra. Por
isso, pensar numa desvalorização de 30 por cento (que no fundo
reponha a taxa de câmbio com o dólar de que o euro partiu, valendo
então o dólar 1,1, contra os atuais 0,8) não parece de
todo uma má ideia. É o correspondente ao que defende o
Octávio Teixeira, aqui:
http://resistir.info/portugal/o_teixeira_08nov12.html
, e já agora também eu, aqui:
http://resistir.info/portugal/denuncia_do_memorando.html
). Repito, porém, que o montante exato da desvalorização
é coisa a deixar ao próprio processo e ao que durante este se
revelar necessário fazer.
Entretanto, uma vez de fora da Eurolândia, será imperioso por
definição renegociar vários tratados. Pelo que, e desde
logo, a questão (meramente) económica da dívida externa
deverá desaguar na questão (necessária e eminentemente)
política da dívida externa. Todo o assunto, em resumo, de
oficialmente apenas "técnico-económico",
transformar-se-á de imediato num assunto plenamente político,
onde portanto Portugal deverá fazer prevalecer o princípio da
"suprema lei da salvação pública". Só sob
a ameaça desta "bomba atómica" que é a
reassunção da política em sentido pleno, da Soberania e do
Estado com "S" e com "E" maiúsculos, é que
poderá pôr-se travão à voragem parasitária do
"capitalismo financeiro", ou "neofeudalismo da
dívida", como lhe chama o Michael Hudson (aqui:
http://resistir.info/crise/hudson_04jan13_parte_4.html
e aqui:
www.counterpunch.org/...
), ou o que se preferir chamar-lhe em vez disso.
Com as mãos libertadas por esse outro 25 de Abril, com o horizonte de
"3 Ds" democratizar, desenvolver, (auto-)descolonizar
de novo aberto à nossa frente, fica também ao nosso alcance, de
imediato, tudo aquilo que se pode ganhar, ou recuperar, renacionalizando
empresas escandalosamente "rentistas" do tipo EDP, GALP e afins, tudo
o que se pode potenciar em matéria de desenvolvimento com
políticas económicas próprias e voltando a nacionalizar e
unificar empresas como a CP/REFER, os CTT e tantas outras. Mas não
é necessário entrar aqui em detalhes. Em traços largos,
porém, convirá reter que, sim, no fundamental, e para além
de outro 25 de Abril, Portugal precisa também de outro 11 de
Março. E urgentemente!
Ah mas, replicarão vários, não esqueçamos que a
crise económica é "global", que a economia está
a "arrefecer" em todo o mundo, que há até quem fale em
"decrescimento" e pretenda apresentar-se como "de
esquerda", e não sei que mais. Quanto a isso, deve desde já
ficar registado que a tese do carácter "global" da crise
é apenas parcialmente verdadeira: os EUA estão em declínio
e a Europa ainda mais, isso sim. A OCDE está em declínio. Mas a
OCDE não é o Globo!
Independentemente de minudências, porém, o que é imperativo
destacar é que esse argumentário não pode ser usado
como geralmente é usado precisamente pelos defensores do
"na-prática-não-fazer-nada", do continuar na UEM,
sentadinhos, quietinhos, como a ameixa da história, etc. Isso constitui
uma completa impostura! Mesmo um país pequeno, como a Islândia,
é um adversário muito respeitável se se souber impor
assumindo-se como país, como estado-nação verdadeiramente
soberano. Muito mais seríamos nós, se não
estivéssemos tão auto-colonizados pela "ideologia
europeia". A "crise global", quer no que tem de ideia falsa,
quer mesmo no que constitui uma verdade parcial, NÃO PODE servir de
desculpa. Há por aí muito conformado e desalentado, ou talvez
pior, que disfarça o conformismo e o desalento travestindo-os de
apocalipse "global", de conversas (por vezes mesmo formalmente
híper-radicais e ultra-bombásticas) sobre a "crise global do
capitalismo", etc. Quanto não, pior ainda, de conversas do tipo
Serge Latouche, a defender já abertamente teses da pretensa necessidade
do "decrescimento"...
São excelentes pretextos para não fazer nada, como se entende; ou
pelo menos nada de decisivo. E isso é que dá um jeito enorme
à direita, digo eu agora. Sobretudo com o FMI a bater-nos à
porta, a reclamar ainda mais "sacrifícios". Até quando
durará esta outra tragédia já não grega,
desta vez, mas portuguesa e portuguesíssima, e a reclamar não
palavreado oco sobre "solidariedade, irmão", à maneira
de
A Vida de Brian
(
http://www.youtube.com/watch?v=ZPRhV9hAv9U
) mas decisões e ações isso é questão
que permanece em aberto, e só mesmo nós, portugueses, poderemos
resolver.
[*]
Economista e sociólogo,
jogra1958@netcabo.pt
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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