Os Hamlets portugueses e a saída do Euro

por João Carlos Graça [*]

Hamlet representado pelo actor Charles Albert Fechter, foto de 1872. As observações de Eugénio Rosa relativas à possível saída de Portugal da UEM são relevantes: quer pelo seu conteúdo e pelas circunstâncias em que são proferidas, quer pela pessoa que as enuncia. Não vou alongar-me aqui demasiado a esclarecer o quanto Eugénio Rosa me é merecedor de respeito: política, académica, pessoalmente. Todavia, a nota suscita-me sobretudo a seguinte réplica: é normal ter-se os "pés frios" antes duma intervenção cirúrgica? Sim, claro que é normal. Todas as intervenções cirúrgicas comportam por definição alguma margem de risco e, pior ainda, de verdadeira "incerteza", isto é, de imprevisto e intrinsecamente imprevisível: um número interminável de pequenas coisas que realmente podem correr mal.

Ainda assim, saber-se que se tem um cancro e continuar a recusar a cirurgia é que me parece completamente impensável. O artigo de Eugénio Rosa pode, portanto, ser bom e aproveitável sobretudo como contributo para se pensar bem nas medidas prudenciais necessárias, que se terá de tomar em caso de saída do Euro. E elas são várias, admito-o desde já e de forma inequívoca.

Incluem, na minha opinião, obrigatoriamente o default relativamente à dívida externa (com o reescalonamento compulsivo dos pagamentos e o pagamento só mesmo daquilo que se puder pagar e nas modalidades em que se puder pagar), o controlo dos movimentos de capitais e a nacionalização da banca. Provavelmente, toda a banca; quase de certeza, a maior parte dela.

Quanto aos efeitos benéficos da saída, são todavia também vários. Incluem evidentemente a muito falada (e realmente muito importante) desvalorização cambial, com o subsequente relançamento das exportações e do turismo. Estes aspetos NÃO são laterais, ao contrário do que tantas vezes é sugerido pelos defensores da manutenção no Euro a todo o custo. A taxa de câmbio é um dispositivo económico fundamental. Desprezá-lo equivale, entre outras coisas, a desprezar simplesmente o papel da existência da moeda, e em particular da moeda fiduciária — isto é, do papel-moeda emitido por bancos emissores apoiados nos poderes soberanos, tal como existe na maior parte dos países desde pelo menos finais do século XIX.

Ou seja, quem assume a desvalorização cambial e a alternativa "desvalorização interna" como sendo, no fundamental, a mesma coisa incorre na verdade numa dupla falácia: a) a correspondente à clássica falácia do "véu monetário", isto é, supor-se que uma economia monetária é fundamentalmente o mesmo que uma simples "economia real", uma economia de funcionasse sem moeda, ou baseada na troca direta; e b) a correspondente ao não reconhecimento de que a moeda, nas sociedades contemporâneas, corresponde basicamente a uma extensão direta do exercício da soberania, da qual todavia vários grupos privados encontraram uma forma para recolherem os benefícios, deixando entretanto do lado do público os prejuízos, em caso de estes ocorrerem (vide o caso paradigmático do BPN, mas vide também vários outros, versões mitigadas do mesmo princípio). A verdade é que, nas nossas sociedades, TODA a "banca privada" constitui de facto uma "parceria público-privada": com lucros e prejuízos, cada um deles, do lado do costume, tal como acontece por princípio nas "PPP"…

Mas é melhor deixar aqui de lado aspetos mais gerais ou meramente "teóricos" da discussão: a alternativa portuguesa a uma desvalorização cambial, e dado o nosso sistemático défice da balança de pagamentos (que é a origem principal dos males atuais) corresponde a uma "desvalorização interna" que, para além de necessariamente mais do que proporcional (porque só atinge salários e pensões, não rendimentos do capital e da propriedade), também é socialmente muitíssimo iníqua (idem aspas), e para além de tudo o mais indutora de recessão, dado que os efeitos benéficos em matéria de promoção de exportações e de inibição das importações demoram neste outro caso muito mais a sentir-se, e entretanto a economia no seu conjunto vai ao tapete, como resultado de efeitos recessivos em "bola de neve" no plano interno. Tal como estamos a ver: ao vivo e a cores, todos os dias desde há pelo menos dois anos (na verdade mais, mas deixemos isso também agora de lado).

É bom que se compreenda bem isto, e que se vá pensando que, em vez de meramente recusar o argumento neoliberal tradicional do " there-is-no-alternative ", o que deve de facto fazer-se é virar-se esse argumento ao contrário, fazendo valer a ideia de que todas espadas têm dois gumes. É necessário que se compreenda isto, para não se cair na esparrela em que me parece cair a generalidade das iniciativas de protesto hoje em dia. Mesmo quando isso vem embrulhado em muita retórica "social", e às vezes até mesmo "revolucionária", a verdade é que, face ao muro representado pela opinião mainstream, o protesto social tende hoje em dia a "encolher-se", refugiando-se em ideias vagas de que "a Europa" devia isto, ou que "a Europa" bem podia aquilo, de que Merkel é realmente muito antipática, mas o Hollande talvez seja um bocadito mais suave, etc. "A Europa", compreendamo-lo com clareza, não irá NUNCA fazer o correspondente às propostas destas pretensas "alternativas". As quais, por isso, não o são de facto. É tão simples quanto isso.

Se queremos REALMENTE um outro rumo geral para os acontecimentos, e que o protesto seja algo mais do que simples balbucio e "voto de protesto" inconsequente, se queremos, todos nós, ser mais do que "homens vazios, homens de palha, uns nos outros apoiados", etc., temos bom remédio: antes de mais, recuperar a soberania monetária. Isso, só por si, já nos dá muito mais armas negociais, subtraindo-nos à posição de " sitting ducks " em que os arranjos institucionais do Euro nos deixaram.

Depois, compreensão da inevitabilidade, da necessidade imperiosa e incontornável da desvalorização cambial, se se pretende de facto uma alternativa à catástrofe diária e crescente, à calamidade coletiva, ao verdadeiro suicídio nacional ao ralenti que é a "desvalorização interna" em curso, seja ela mais à bruta ou mais "vaselinizada", comandada pelo PSD, pelo PP, pelo PS, por todos eles… ou no limite caso fosse mesmo comandada pelo BE — ou mutatis mutandis pelo SYRIZA, caso estes por hipótese pudessem formar governos, insistindo todavia em continuar no Euro, como é hoje em dia a posição oficial destes partidos. Aos que argumentam que a desvalorização cambial traria inflação, anulando-se por isso os seus efeitos benéficos, recomendo como antídoto a leitura da obra-prima de ironia concentrada que é este post do Nuno Teles, aqui: ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2012/07/o-valor-da-moeda-nao-interessa.html (É mesmo só comparar 0,9 por cento de crescimento das exportações, sem o fator da desvalorização cambial, com 31,4 por cento de crescimento havendo desvalorização cambial, e de apenas 13,5 por cento, e só face ao dólar…)

É razoável admitir que euro e dólar norte-americano rivalizam como moeda de reserva mundial. Também é claro que a economia alemã aguenta essa guerra na perfeição, visto que se mantém excedentária relativamente ao exterior. Ou talvez se possa conjeturar que os alemães, ao insistirem na cartada da valorização, ou da "moeda forte", estão de facto a fazer um frete aos norte-americanos, de resto tal como estes estão sempre a reclamar também, por exemplo, dos chineses. Mas isto tudo já são já conjeturas. O que é ainda muito mais claro é que Portugal NÃO aguenta esta cartada da "moeda forte", e que essa não é NEM TEM DE SER a nossa guerra. Por isso, pensar numa desvalorização de 30 por cento (que no fundo reponha a taxa de câmbio com o dólar de que o euro partiu, valendo então o dólar 1,1, contra os atuais 0,8) não parece de todo uma má ideia. É o correspondente ao que defende o Octávio Teixeira, aqui: http://resistir.info/portugal/o_teixeira_08nov12.html , e já agora também eu, aqui: http://resistir.info/portugal/denuncia_do_memorando.html ). Repito, porém, que o montante exato da desvalorização é coisa a deixar ao próprio processo e ao que durante este se revelar necessário fazer.

Entretanto, uma vez de fora da Eurolândia, será imperioso por definição renegociar vários tratados. Pelo que, e desde logo, a questão (meramente) económica da dívida externa deverá desaguar na questão (necessária e eminentemente) política da dívida externa. Todo o assunto, em resumo, de oficialmente apenas "técnico-económico", transformar-se-á de imediato num assunto plenamente político, onde portanto Portugal deverá fazer prevalecer o princípio da "suprema lei da salvação pública". Só sob a ameaça desta "bomba atómica" que é a reassunção da política em sentido pleno, da Soberania e do Estado com "S" e com "E" maiúsculos, é que poderá pôr-se travão à voragem parasitária do "capitalismo financeiro", ou "neofeudalismo da dívida", como lhe chama o Michael Hudson (aqui: http://resistir.info/crise/hudson_04jan13_parte_4.html e aqui: www.counterpunch.org/... ), ou o que se preferir chamar-lhe em vez disso.

Com as mãos libertadas por esse outro 25 de Abril, com o horizonte de "3 Ds" — democratizar, desenvolver, (auto-)descolonizar — de novo aberto à nossa frente, fica também ao nosso alcance, de imediato, tudo aquilo que se pode ganhar, ou recuperar, renacionalizando empresas escandalosamente "rentistas" do tipo EDP, GALP e afins, tudo o que se pode potenciar em matéria de desenvolvimento com políticas económicas próprias e voltando a nacionalizar e unificar empresas como a CP/REFER, os CTT e tantas outras. Mas não é necessário entrar aqui em detalhes. Em traços largos, porém, convirá reter que, sim, no fundamental, e para além de outro 25 de Abril, Portugal precisa também de outro 11 de Março. E urgentemente!

Ah mas, replicarão vários, não esqueçamos que a crise económica é "global", que a economia está a "arrefecer" em todo o mundo, que há até quem fale em "decrescimento" e pretenda apresentar-se como "de esquerda", e não sei que mais. Quanto a isso, deve desde já ficar registado que a tese do carácter "global" da crise é apenas parcialmente verdadeira: os EUA estão em declínio e a Europa ainda mais, isso sim. A OCDE está em declínio. Mas a OCDE não é o Globo!

Independentemente de minudências, porém, o que é imperativo destacar é que esse argumentário não pode ser usado — como geralmente é usado — precisamente pelos defensores do "na-prática-não-fazer-nada", do continuar na UEM, sentadinhos, quietinhos, como a ameixa da história, etc. Isso constitui uma completa impostura! Mesmo um país pequeno, como a Islândia, é um adversário muito respeitável se se souber impor assumindo-se como país, como estado-nação verdadeiramente soberano. Muito mais seríamos nós, se não estivéssemos tão auto-colonizados pela "ideologia europeia". A "crise global", quer no que tem de ideia falsa, quer mesmo no que constitui uma verdade parcial, NÃO PODE servir de desculpa. Há por aí muito conformado e desalentado, ou talvez pior, que disfarça o conformismo e o desalento travestindo-os de apocalipse "global", de conversas (por vezes mesmo formalmente híper-radicais e ultra-bombásticas) sobre a "crise global do capitalismo", etc. Quanto não, pior ainda, de conversas do tipo Serge Latouche, a defender já abertamente teses da pretensa necessidade do "decrescimento"...

São excelentes pretextos para não fazer nada, como se entende; ou pelo menos nada de decisivo. E isso é que dá um jeito enorme à direita, digo eu agora. Sobretudo com o FMI a bater-nos à porta, a reclamar ainda mais "sacrifícios". Até quando durará esta outra tragédia — já não grega, desta vez, mas portuguesa e portuguesíssima, e a reclamar não palavreado oco sobre "solidariedade, irmão", à maneira de A Vida de Brian ( http://www.youtube.com/watch?v=ZPRhV9hAv9U ) mas decisões e ações — isso é questão que permanece em aberto, e só mesmo nós, portugueses, poderemos resolver.

[*] Economista e sociólogo, jogra1958@netcabo.pt

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
11/Jan/13