O enganoso abismo orçamental dos EUA (4)
A crise ideológica subjacente à actual política fiscal e
financeira
Desde a antiguidade e durante milhares de anos, terra, recursos naturais,
monopólios, portos marítimos e estradas foram mantidas sob o
domínio público. Em tempos mais recentes, ferrovias, metros
subterrâneos, linhas aéreas e companhias de gás e
electricidade foram tornadas públicas. O objectivo era proporcionar os
seus serviços básicos ao preço de custo ou a preços
subsidiados ao invés de permitir que fossem privatizados e transformados
em oportunidades para a extracção de renda. A Era Progressiva
coroou esta transição para uma economia mais equitativa
promulgando impostos progressivos sobre o rendimento e a riqueza.
As economias estavam a libertar-se dos privilégios especiais que o
feudalismo e colonialismo europeu haviam estabelecido para os privilegiados. O
objectivo de acabar com estes privilégios ou tributar retirando
renda económica onde ela se verificasse naturalmente, como no valor da
terra e na renda de recursos naturais era baixar os custos de viver e
fazer negócio. Esperava-se que isto fizesse as economias progressivas
mais competitivas, obrigando outros países a seguirem-nas ou serem
tornados obsoletos. A era do que se considerava ser uma forma socialismo
parecia estar ao alcance da mão elevando o papel do sector
público como parte inseparável da evolução da
tecnologia e da prosperidade.
Mas os proprietários de terra e as classes financeiras resistiam,
esforçando-se por apagar a conclusão política central da
teoria económica clássica: a doutrina de que a renda
económica do "almoço gratuito" deveria servir como a
base fiscal para economias que procuravam ser mais eficientes e mais justas.
Imbuído de legitimidade académica pela Universidade de Chicago (a
qual
Upton Sinclair
chamou correctamente de Universidade da Standard Oil) a
nova teoria económica pós clássica adoptou o lema de
Milton Friedman: "Não existe tal coisa como um almoço
gratuito"
("There Is No Such Thing As A Free Lunch", TINSTAAFL).
Se essa coisa não for vista, tem menos probabilidade de ser tributada.
O problema político enfrentado pelos rentistas os "ricos
ociosos" que drenam a maior parte dos ganhos da economia para si
próprios é convencer os eleitores a concordarem em que o
trabalho e os consumidores deveriam ser tributados ao invés dos ganhos
financeiros dos 1% mais ricos. Quanto tempo mais conseguirão eles
impedir o povo de ver que fazer com que juros sejam isentos de impostos
pressiona o orçamento do governo rumo ao défice? Para libertar de
impostos a riqueza financeira e os ganhos com preços de activos
e ao mesmo tempo impedir o governo de financiar os seus défices
através da sua opção pública de criar moeda
académicos patrocinados por lobbyistas financeiros sequestraram a teoria
monetária, a política fiscal e a teoria económica em
geral. A actuarem no terreno da eficiência aparente, afirmam eles que o
governo não deveria mais regulamentar a Wall Street e os seus clientes
corporativos. Ao invés de criticarem a busca de renda como em
séculos anteriores, eles descrevem o governo como um Leviatã
opressivo por utilizar o seu poder de proteger mercados de monopólios,
de empresas farmacêuticas vigaristas, de companhias de seguros de
saúde e de finanças predatórias.
Esta ideia de que um "mercado livre" é livre para a Wall
Street actuar sem regulamentação só pôde ser
popularizada através da censura da história do pensamento
económico. Bastaria ler o que Adam Smith e o que economistas posteriores
realmente ensinaram acerca de renda, impostos e a necessidade da
regulamentação ou da propriedade pública. A teoria
económica académica foi transformada num exercício
orwelliano de duplo pensamento, concebido para convencer a
população de que os 99% da base deveriam pagar impostos ao
invés dos 1% que obtêm a maior parte dos juros, dividendos e
ganhos de capital. Ao negar a existência de um almoço gratuito, e
ao confundir o relacionamento entre moeda e impostos, eles transformaram a
disciplina da ciência económica e grande parte do discurso
político num esforço de lobbying para os 1%.
Os lobbyistas que trabalham para os 1% estruturam a questão fiscal em
termos de "Como podemos fazer os 99% pagarem pelos seus próprios
programas sociais?" A consequência implícita é,
"de modo a que nós (os 1%) não tenhamos de pagar".
É assim que o sistema de Segurança Social veio a ser
"financiado" e a seguir "desfinanciado". O imposto mais
regressivo de todos é o FICA (Federan Insurance Contributions Act) com
encargos sociais sobre as folhas de pagamento de 15,3% dos salários
até cerca de US$105 mil [por ano]. Acima disso, os ricos não
têm de contribuir. Estes encargos sociais excedem o imposto de rendimento
pago por muitas famílias colarinho azul. A pretensão é que
não tributar estes desfrutadores de almoços gratuitos
tornará as economias mais competitivas e as afastará da
depressão. A realidade é o oposto. Ao invés de tributar o
almoço gratuito da riqueza, o fardo fiscal aumenta o custo de viver e
fazer negócio. Esta é uma das principais razões porque a
economia dos EUA está hoje a ser desindustrializada.
A questão chave é o que os 1% fazem com a sua receita
"libertada" de impostos. A resposta é que eles a emprestam
para endividar os 99%. Isto polariza a economia entre credores e devedores. Ao
longo da geração passada os 1% mais ricos reescreveram as leis
fiscais a um ponto tal que eles agora recebem uma estimativa de 66% dois
terços de todos os retornos da riqueza (juros, dividendos, rendas
e ganhos de capital) e uns confirmados 93% de todos os ganhos em rendimento
desde o salvamento da Wall Street de Setembro de 2008.
Eles utilizaram este dinheiro para financiar as campanhas eleitorais de
políticos comprometidos em alterar impostos sobre os 99%. Eles
também compraram o controle dos principais media que moldam o
entendimento popular do que está a acontecer. E, como descreveu
Thorstein Veblen há aproximadamente um século, os homens de
negócio tornaram-se os dirigentes da maior parte das universidades e
dirigem o seu curriculum de acordo com linhas "amistosas para com os
negócios".
O modo mais claro de analisar qualquer sistema financeiro é perguntar
Quem/Para quem. Isso é assim porque os sistemas financeiros são
basicamente um conjunto de dívidas para com credores. Na economia
neo-rentista de hoje os 99% da base (trabalhadores e consumidores) devem aos 1%
(possuidores de títulos, possuidores de acções e
proprietários de imóveis). Os negócios corporativos e os
corpos governamentais também estão endividados a estes 1%. O grau
de polarização financeira acelerou-se agudamente quando os 1%
fizeram o seu movimento de endividar os 99% juntamente com a
indústria, os governos estaduais, locais e federal até o
ponto em que todo o excedente económico está obrigado ao
serviço de dívida. O objectivo é monopolizar a economia,
acima de tudo o privilégio da criação de moeda pelo
fornecimento do crédito que a economia precisa para crescer e
transaccionar negócios, permitindo-lhes extrair juros e outras
comissões por este privilégio.
Os 1% do topo quase tiveram êxito em drenar todo o excedente
económico para si mesmos, recebendo 93% do crescimento do rendimento dos
EUA desde Setembro de 2008. O seu controle sobre o processo político
permitiu-lhes utilizar cada nova crise financeira para fortalecer a sua
posição ao forçar empresas, estados e localidades a
abrirem mão da sua propriedade em favor de credores e investidores
financeiros. Assim, depois de monopolizarem o excedente económico, eles
agora procuram transferir para si próprios a infraestrutura
económica, terra e recursos naturais, e quaisquer outros activos sobre
os quais possa ser instalada uma portagem a fim de extrair rendas.
A situação é afim àquela da Europa medieval
após as invasões nórdicas. A força supra-nacional
de Roma em tempos feudais está agora situada em Washington, com a
cristandade substituída pelo Consenso de Washington exercido pelo FMI,
Banco Mundial, OMC e suas instituições satélites tais como
o Banco Central Europeu, apoiado no plano moral e ideológico por
economistas académicos ao invés da Igreja. E sobre o novo campo
de batalha financeiro, os subscritores da Wall Street têm utilizado a
crise como uma oportunidade para pressionar por privatizações. A
forte máquina política do Partido Democrata de Chicago vende
direitos de instalar medidores de parqueamento nos seus passeios e tem tentado
transformar ruas públicas em ruas com portagens privatizadas
[NT]
. E o presidente da municipalidade, Rahm Emanuel, tem utilizado a
privatização dos seus serviços de aeroporto para romper a
sindicalização dos trabalhadores, estilo Thatcher. A guerra de
classe está de volta, com tácticas financeiras a desempenharem um
papel principal em que mal se pensava um século atrás.
Esta monopolização da propriedade é o que as conquistas
militares da Europa medieval pretendiam alcançar, o que a sua
colonização de continentes além-mar replicava. Mas apesar
de isto ter sido alcançado originalmente pela conquista militar da
terra, os 1% de hoje fazem isso pela financiarização da economia
(embora a força do braço militar não esteja ausente, com
certeza, como se viu no Chile após 1973).
O dilema financeiro confronta-nos
Os encargos gerais da dívida na economia cresceram tanto que já
nem todos podem ser pagos. O aumento das taxas de incumprimento coloca a velha
questão secular do Quem/Para quem. A resposta é quase sempre que
o peixe grande come o peixe pequeno. Grandes bancos (demasiado grandes para
caírem) estão a comer pequenos bancos, enquanto os 1% tentam
tomar a fatia do leão para si próprios pela
anulação de dívidas públicas e corporativas devidas
aos 99%. O seu plano é degradar poupanças da Segurança
Social e Medicare a "direitos"
("entitlements"),
como se fosse uma matéria de opção fiscal saudável
não pagar pagadores de baixo rendimento enquanto rentistas no topo
rebaptizam-se como "criadores de emprego", como se eles houvessem
obtido os seus ganhos a ajudar assalariados ao invés de travar guerra
contra eles.
O problema não é a Segurança Social, a qual pode ser paga
com a receita fiscal normal, como no sistema de pagamento imediato
(pay-as-you-go)
da Alemanha. Este problema fiscal destributando o imobiliário, o
petróleo e o gás, os recursos naturais, os monopólios e os
bancos tem sido descrito como financeiro como se alguém
precisasse poupar antecipadamente através de um imposto especial a fim
de emprestar ao governo para cortar impostos sobre os 99%.
O abismo real das pensões é com planos de pensão
corporativos, dos estados e locais, os quais estão a ser subfinanciados
e saqueados por administradores financeiros. O défice está a
piorar quando este período de retracção económica
reduz receitas fiscais locais, deixando estados e cidades incapazes de
financiar seus programas, investir em nova infraestrutura pública ou
mesmo manter e reparar investimentos existentes. O transporte público em
particular está a sofrer, elevando o pagamento dos utilizadores a fim de
pagar possuidores de títulos. Mas é principalmente aos
aposentados que é dito para se sacrificarem. (A palavra hipócrita
é "participar" no sacrifício, embora isto evidentemente
não se aplique aos 1%.)
O lobby da banca gostaria que a economia continuasse a tentar sair da
dívida através da tomada de empréstimos e portanto a
enterrar-se cada vez mais fundo num buraco financeiro que coloca ainda mais
propriedade privada em risco de incumprimento e arresto. A ideia é de o
governo "estabilizar" o sistema financeiro salvando os bancos
isto é, fazendo para eles o que não tem desejado fazer para
receptores da Segurança Social e do Medicare, ou para estados e
localidades que já não recebem mais as suas fatias de receitas,
ou para proprietários de casas em situação líquida
negativa a sofrerem com a explosão de taxas de juro mesmo no momento em
que os custos dos bancos nas tomadas de empréstimos junto ao Fed
afundaram. O sonho é que a feliz financeira de Greenspan possa ser
recuperada, tornando toda a gente rica outra vez, desde que eles
desalavancassem para aumentar preços do imobiliário,
acções e títulos e criassem novos ganhos de capital.
Realizar este sonho é o único meio de os fundos de pensão
poderem pagar aposentados. Eles estarão insolventes se não
puderem fazer os seus programados 8+%, o que dá um novo significado
à expressão "capital fictício". E no mercado
imobiliário, os preços não subirão outra vez
até que os especuladores recuem como fizeram antes de 2008. Se
empréstimos estudantis não forem anulados, os licenciados
enfrentarão uma vida inteira de servidão obrigada por contrato
(indentured).
Mas em grande medida assim foi estabelecida a América colonial, afinal
de contas a remover gradualmente o preço da sua liberdade,
só para ser mergulhada no caldeirão de vastas
especulações imobiliárias e de fortunas feitas
através do roubo sobre as quais foi fundada a República (ou pelo
menos as maiores fortunas americanas). Imaginava-se que tal servidão
pertencia apenas a uma era remota, não ao futuro do Ocidente. Mas agora
podemos olhar para trás, para aquela era, a fim de ter um
instantâneo do nosso futuro.
O plano financeiro é o governo fornecer crédito quase gratuito
aos bancos, de modo a que eles possam emprestar bastante a devedores aos
mais vastos
markups
de taxas de juro da memória recente (aquilo que os bancos cobram aos
tomadores de empréstimo e utilizadores de cartão de
crédito sobre os seus custos de menos de 1% de empréstimos
contraídos) para pagarem à vista as dívidas em que
incidiram antes de 2008.
Não se trata de um programa para aumentar a procura do mercado para os
produtos do trabalho. Não é a espécie de fluxo circular
que economistas descreveram como a essência do capitalismo industrial.
É um esbulho
(rake-off)
financeiro de uma magnitude tal como nunca existiu desde os tempos da Europa
medieval e os dos últimos dias opressivos do oligárquico
Império Romano há dois mil anos atrás.
Imaginar que uma economia possa basear-se nestas políticas levará
a que se desestabilizem ainda mais ao invés de aliviar a
deflação da dívida de hoje. Mas se a economia for salva,
os bancos não podem ser salvos. Eis porque a administração
Obama optou por salvar os bancos, não a economia. A primeira directiva
do Fed é manter taxas de juro baixas para ressuscitar a
contratação de empréstimos, não para financiar
investimentos em novos negócios a fim de produzir mais, mas simplesmente
para inflacionar os preços dos activos que dão suporte a
empréstimos bancários que constituem as suas reservas. É o
sonho tortuoso de uma nova Bolha da Economia ou, mais precisamente, de
uma nova Grande Dádiva
(Great Giveaway).
Aqui está o dilema: Se o Fed mantiver taxas de juro baixas, como
é que planos de pensão corporativos, estaduais e locais
obterão os 8+% de retorno que precisam para pagar suas pensões
programadas? Irão eles jogar mais com hedge funs a brincar no
Capitalismo de Casino?
Por outro lado, se as taxas de juro subirem isto reduzirá a
capitalização múltipla à qual os bancos emprestam
contra os actuais rendimentos e lucros rentistas. Taxas de juro mais altas
reduzirão preços para o imobiliário, acções
e títulos corporativos, empurrando os bancos (e fundos de pensão)
para situação líquida negativa ainda mais profunda.
Assim, alguma coisa tem de ceder. Em qualquer dos casos, o sistema financeiro
não pode continuar ao longo do seu caminho actual. Só
cancelamentos parciais de dívida "libertarão" mercados
para que retomem os gastos em bens e serviços. E só uma
mudança dos impostos para a propriedade produtora de rendas e para as
portagens das finanças e dos monopólios salvarão os
preços de serem sobrecarregados com encargos gerais extractivos e
recentrarão a concessão de empréstimos no financiamento da
produção e do emprego. A menos que isto seja feito, não
há meio de a economia dos EUA poder tornar-se competitiva em mercados
internacionais, excepto naturalmente para hardware militar e direitos de
propriedade intelectual para artefactos culturais escapistas.
A solução para a Segurança Social, o Medicare e o Medicaid
é desfinancializá-los. Tratá-los como os programas do
governo para gastos militares, reconstrução de litorais e
subsídios a bancos, e pagar os seus custos a partir da actual receita
fiscal e criação de novo dinheiro por bancos centrais a
fazerem aquilo para que foram estabelecidos para fazer.
Políticos esquivam-se a enfrentar esta solução sobretudo
porque o sector financeiro patrocinou uma visão em túnel que
ignora o papel da dívida, do dinheiro e do fenómeno da renda
económica, da alavancagem de dívida e da inflação
do preço de activos que se tornou a característica definidora da
crise financeira de hoje. A política do governo foi capturada para
salvar ou pelo menos subsidiar um sistema financeiro que
não pode ser salvo senão temporariamente. Ele está a ser
mantido com aparelhos de
life support
ao custo da contracção da economia enquanto o verdadeiro
gasto médico para suportar a vida real está a ser cortado a
grande parte da população.
A economia está a morrer de uma doença respiratória
financeira, ou o que os
Fisiocratas
teriam chamado uma "desordem
circulatória". Ao invés de libertar a economia da
dívida, o rendimento está a ser desviado para pagar
dívidas de cartões de crédito e dívidas
hipotecárias. Estudantes sem emprego permanecem com o fardo de mais de
US$1 milhão de milhões
(trillion)
de dívida estudantil, com a antiga e respeitada válvula de
segurança da bancarrota fechada para eles. Muitos licenciados devem
viver com os seus pais pois as taxas de casamentos e formação de
família (e portanto de nova compra de casa) declinam. A economia
está a morrer. Isso é o que faz o neoliberalismo.
Agora que a acumulação de dívida assim se efectuou, o
sector bancário coloca as suas esperanças no jogo das
probabilidades matemáticas através do capitalismo de hedge funds.
Este Casino Capitalista tornou-se o estágio do capitalismo financeiro
que se segue ao capitalismo Fundo de Pensões e antecedendo o
estágio de insolvência da austeridade e tomadas de propriedade.
A questão em aberto agora é se o neofeudalismo será o
estágio final. A austeridade aprofunda os défices do
orçamento público ao invés de curá-los. Ao
contrário dos séculos passados, estes défices não
estão a ser incorridos para travar guerra, mas para pagar um sistema
financeiro que se tornou predatório da economia "real" da
produção e do consumo. O colapso deste sistema foi o que provocou
o défice orçamental de hoje. Ao invés de reconhecer isto,
a administração Obama está tentar fazer com que seja pago
pelo trabalho. Pressionar assalariados sobre o "abismo
orçamental" a fim de fazê-los pagar pelo salvamento
financeiro da Wall Street (hipocritamente chamando seus impostos de "taxas
de utilizador) só pode contrair ainda mais o mercado, empurrando a
economia para uma combinação fatal de austeridade fiscal e
financeira infestada de impostos e infestada de dívidas.
O assobiar no escuro intelectual que os banqueiros centrais denominam pela
palavra tecnocrática de "desalavancagem" (liquidando as
dívidas que se verificaram) significa desviar ainda mais rendimento para
pagar o sector financeiro. Isto é a antítese de retomar o
crescimento económico e restaurar os níveis de emprego. A
lição recente da experiência europeia é que apesar
da austeridade a dívida ascendeu de 381% do PIB em meados de 2007 para
417% em meados de 2012. Isso é o que acontece quando as economias se
contraem: as dívidas aumentam com atrasos (e com rígidas
penalidades financeiras).
Mas mesmo quando as economias se contraem, o sector financeiro enriquece-se ao
transformar seus direitos à dívida a que economistas do
século XIX chamavam "capital fictício" antes de ser
chamado capital financeiro numa tomada de propriedades. Isto torna um
encargo irrealista de dívida irrealista porque não
há maneira de poder pagá-la sob as existentes
relações de propriedade e distribuição do
rendimento num pesadelo vivo. Isso é o que está a
acontecer na Europa e é isto o objectivo da administração
Obama de Tim Geithner, Ben Bernanke, Erik Holder et al. Eles fariam a
América parecer-se com a Europa, arruinada pelo desemprego crescente,
mercados em queda e o síndrome correspondente das adversas
consequências sociais e políticas da guerra financeira travada em
conjunto contra o trabalho, a indústria e o governo. A alternativa ao
caminho da servidão governos suficientemente fortes para
protegerem populações contra as finanças
predatórias revela-se ser um desvio para o caminho da
servidão da dívida
(debt peonage)
e do neofeudalismo.
Assim, estamos a experimentar o fim de um mito, ou pelo menos o fim de um
retórico balbuciar orwelliano acerca do que realmente são
mercados livres
(free markets).
Eles não são livres se forem para pagar extractores de renda ao
invés de produtores para cobrirem os custos reais de
produção. Mercados financeiros não são livres se
fraudsters
(de fraudulentos+gangsters) não são punidos por comporem
fictícias hipotecas lixo e pagarem a agências de
classificação para venderem "opiniões" de que
finanças predatórias dos clientes constituem
criação de riqueza saudável. Um mercado livre precisa ser
regulamentado para impedir a fraude e a busca de renda.
O outro mito é que seria inflacionário para bancos centrais
monetizar despesa pública. O que aumenta preços é instalar
juros e serviço de dívida, renda económica e encargos
financeiros dentro do custo de viver e fazer negócios. A alavancagem com
dívida do preço da habitação,
educação e cuidados de saúde para fazer com que
assalariados paguem mais de dois terços do seu rendimento para o sector
FIRE, retenção salarial do FICA e outros impostos que caem sobre
o trabalho são responsáveis pela
desindustrialização da economia e por torná-la não
competitiva.
A criação de moeda pelo banco central não é
inflacionária se financiar nova produção e emprego. Mas
não é isso o que está a acontecer hoje. A política
monetária foi sequestrada para inflacionar preços de activos, ou
pelo menos para deter o seu declínio, ou simplesmente para dar aos
bancos [oportunidades] para jogarem. "A economia" está cada
vez menos na esfera da produção, consumo e emprego; ela
está cada vez mais na esfera da criação de crédito
para comprar activos, transformando lucros e rendimento em pagamentos de juros
até que todo o excedente económico e conjunto de propriedades
estejam comprometidos com serviço de divida.
Celebrar isto como uma "sociedade pós industrial", como se
fosse uma nova espécie de universo no qual todos podem ficar ricos com
alavancagem de dívida, é uma fraude. A estrada que levou a esta
armadilha estava pejada com iscos de milhares de milhões de
dólares: o lixo subsidiado e apregoado como teoria
económica a fim de
estimular eleitores a votarem contra os seus interesses. A narrativa financeira
pós clássica, favorável aos rentistas, é falsa
e de modo intencional. O objectivo do seu modelo económico é
fazer com que as pessoas vejam o mundo e actuem (ou invistam o seu dinheiro) de
um modo que os seus apoiantes possam ganhar o dinheiro daqueles que vão
atrás da ilusão de estarem a ser subsidiados. A tarefa de uma
nova teoria económica continua a ser ressuscitar a
distinção clássica entre riqueza e encargos gerais,
rendimento ganho e não ganho, lucro e rendimento rentista e, em
última análise, entre capitalismo e feudalismo.
04/Janeiro/2013
[NT] A Câmara Municipal de Lisboa vai pelo mesmo caminho com a sua
empresa municipal EMEL, cuja principal actividade é a caça
à multa. E para melhor extorquir renda dos automobilistas lisboetas, a
EMEL também subcontrata pelo menos uma empresa privada para aplicar e
cobrar multas. Em Portugal a extracção de renda já se
tornou um dos principais negócios do capital financeiro e o país
tornou-se um campo fértil de situações dessas basta
pensar nas PPPs.
Este é o quarto e último artigo de uma série. A primeira
parte está em
resistir.info/crise/hudson_28dez12.html
, a segunda em
resistir.info/crise/hudson_31dez12_parte_2.html
e a terceira em
resistir.info/crise/hudson_02jan13_parte_3.html
[*]
O livro
The Bubble and Beyond
resume as teorias económicas de Michael Hudson.
O seu livro mais recente é
Finance Capitalism and Its Discontents
. O autor contribuiu para
Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion
.
mh@michael-hudson.com
O original encontra-se em
www.counterpunch.org/2013/01/04/...
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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