Como a austeridade orçamental de hoje recorda os mal entendidos
económicos da I Guerra Mundial
O enganoso abismo orçamental de 2012 dos EUA
Quando a I Guerra Mundial estalou em Agosto de 1914, economistas de ambos os
lados previram que as hostilidades não poderiam perdurar mais do que
cerca de seis meses. As guerras haviam-se tornado tão caras que o
dinheiro dos governos rapidamente ficaria esgotado. Parecia que se a Alemanha
não pudesse derrotar a França na Primavera, as potências
aliadas e central teriam as suas poupanças esgotadas e atingiriam o que
hoje é chamado de precipício orçamental
(fiscal cliff)
e seriam forçadas a negociar um acordo de paz.
Mas a Grande Guerra arrastou-se durante quatro anos destrutivos. Os governos
europeus fizeram o mesmo que os Estados Unidos após o estalar da Guerra
Civil em 1861, quando o Tesouro imprimiu o papel-moeda, os chamados
greenbacks
. Eles pagavam por mais combate simplesmente com a impressão da sua
própria moeda. Suas economias não cederam e não houve
grande inflação. Isso aconteceu só após o
término da guerra, devido à tentativa da Alemanha de pagar
reparações em divisas estrangeiras. Foi o que provocou o
afundamento da sua taxa de câmbio, elevando preços de
importação e portanto preços internos. A culpa não
foi da despesa do governo com a própria guerra (muito menos com programas
sociais).
Mas a história é escrita pelos vitoriosos e a última
geração assistiu à emergência dos bancos e do sector
financeiro como os grandes vitoriosos. Mantendo os 99% da base em
dívida, os 1% do topo estão agora a criar uma teoria
económica enganosa para persuadir os eleitores a seguirem
políticas que beneficiam o sector financeiro a expensas do trabalho, da
indústria e do governo democrático tal como o conhecemos.
Os lobbystas da Wall Street atribuem a culpa do desemprego e da perda de
competitividade industrial aos gastos do governo e aos défices
orçamentais especialmente com programas sociais e à
reivindicação do trabalho em participar da produtividade
crescente da economia. O mito (talvez devêssemos chamá-lo teoria
económica lixo) é que (1) governos não deveriam incidir em
défices (pelo menos, não através da impressão da sua
própria moeda), porque (2) a criação de moeda
pública e impostos elevados (pelo menos sobre a riqueza) provoca
ascensão de preços. Eles dizem que a cura para o mal-estar
económico (o qual foi provocado por eles próprios) é menos
despesa pública, bem como mais cortes fiscais para a riqueza, a qual
eufemizam como "criadores de emprego". Reivindicando excedentes
orçamentais, lobbystas dos bancos prometem que estes
proporcionarão à economia bastante poder de compra para crescer.
Então, quando isto acaba em crise, eles insistem em que a austeridade
pode espremer suficiente rendimento para permitir que dívidas do sector
privado sejam pagas.
A realidade é que quando bancos sobrecarregam a economia com
dívida isto deixa menos para gastar com bens e serviços internos
ao mesmo tempo que conduz para a alta os preços da
habitação (e portanto o custo de vida) com criação
imprudente de crédito em condições de empréstimo
frouxas. Mas no topo desta deflação da dívida, os
lobbystas dos bancos pressionam por deflação fiscal: excedentes
orçamentais ao invés de défices com a
criação de frentes de trabalho. O efeito é mais uma vez
reduzir a procura de mercado do sector privado, contraindo mercados e emprego.
Os governos caem mais profundamente em aflições e dizem-lhes
então para liquidar ao desbarato terras e recursos naturais, empresas
públicas e outros activos. Isto cria um mercado lucrativo para
empréstimos bancários financiarem privatizações a
crédito. O que explica porque os lobbystas financeiros apoiam os
direitos dos novos compradores a elevarem os preços que cobram por
necessidades básicas, criando uma frente unida para endossar a
extracção de renda. O efeito é enriquecer o sector
financeiro possuído pelos 1% de maneiras que endividam e privatizam a
economia como um todo indivíduos, negócios e o
próprio governo.
Esta política foi denunciada como destrutiva no fim dos anos 1920 e
princípio da década de 1930 quando John Maynard Keynes, Harold
Moulton e alguns outros contestaram as afirmações de Jacques
Rueff e Bertil Ohlin de que dívidas de qualquer magnitude podiam ser
pagas se os governo impusessem austeridade e sofrimento suficientemente
profundos. Esta é a doutrina adoptada desde a década de 1960 pelo
Fundo Monetário Internacional para ser imposta sobre devedores do
Terceiro Mundo e pelos neoliberais europeus que defendem credores impondo
austeridade à Irlanda, Grécia, Espanha e Portugal.
Tal mitologia pró austeridade destina-se a desviar o público a
fim de que não pergunte porque em tempo de paz os governos não
podem simplesmente imprimir o dinheiro de que precisam. Dada a
opção de imprimir dinheiro ao invés de tributar, por que
tantos políticos só criam novos gastos com o objectivo de travar
guerra e destruir propriedade, não para construir ou reparar pontos,
estradas e outras infraestruturas públicas? Por que deveriam os governos
tributar empregados para futuros pagamentos de aposentações, mas
não a Wall Street por comissões e seguros financeiros a fim de
construir um fundo para pagar por futuras crises de empréstimos
excessivos dos bancos? A propósito, por que o Governo dos EUA não
imprime o dinheiro para pagar a Segurança Social e cuidados
médicos, da mesma forma como criou nova dívida no montante de
US$13 milhões de milhões
(trillion)
após o salvamento bancário de 2008? (Voltarei a esta
questão mais abaixo).
A resposta a estas questões tem pouco a ver com mercados, ou com teoria
monetária e fiscal. Os banqueiros afirmam que se têm de pagar mais
comissões de utilizador para pré-financiar futuras
reclamações por maus empréstimos e seguros de
depósito para poupar o Tesouro ou os contribuintes de serem cravados
pela conta, terão de cobrar mais aos clientes apesar dos seus
presentes historiais de lucros, que parecem agarrar tudo quanto podem. Mas eles
apoiam um duplo padrão quando se trata de tributar o trabalho.
A comutação do fardo fiscal para o trabalho e a indústria
é conseguida mais facilmente através do corte nas despesas
públicas para os 99%. Aqui está a raiz do confronto de Dezembro
de 2012 sobre as políticas anti-défice propostas pela
comissão Bowles-Simpson de cortes orçamentais que o presidente
Obama nomeou em
2010. Derramando lágrimas de crocodilo sobre o fracasso do governo em
equilibrar o orçamento, os bancos insistem em que os 15,3% de hoje de
retenção salarial do FICA (Federal Insurance Contributions Act)
seja elevado como se isto não elevasse o custo de vida e
não drenasse a economia do consumidor de poder de compra. Ao patronato e
sua força de trabalho dizem para poupar antecipadamente para a
Segurança Social ou outros programas públicos. Isto é um
imposto sobre rendimento disfarçado sobre os 99% da base, cujas receitas
são utilizadas para reduzir o défice orçamental de modo a
que possam ser cortados impostos sobre as finanças e os 1%. Para
parafrasear um dito de Leon Helmley, de que "Só o povo miúdo
paga
impostos", a palavra de ordem pós 2008 é de que só os
99% têm de sofrer perdas, não os 1% quando a
deflação da dívida afunda os preços do
imobiliário e do mercado de acções para inaugurar uma
economia de Situação Líquida Negativa
(Negative Equity)
enquanto as taxas de desemprego levantam voo.
Não há mais necessidade de poupar antecipadamente para a
Segurança Social do que há para poupar antecipadamente para pagar
uma guerra. Vender títulos do Tesouro para pagar pensões tem
efeito monetário e fiscal idêntico de vender títulos
recém impressos. Trata-se de uma farsa para comutar o fardo
fiscal para cima do trabalho e da indústria. Os governos precisam
proporcionar à economia dinheiro e crédito para expandir mercados
e emprego. Eles fazem isso incidindo em défices orçamentais e
isso pode ser feito pela criação da sua própria moeda.
É a isto que os bancos se opõem, acusando-os de levar à
hiper-inflação ao invés de ajudar as economias a crescerem.
A sua motivação para esta acusação errada é
em causa própria e a sua lógica é enganadora. Banqueiros
sempre combateram a fim de impedir governos de criarem a sua própria
moeda pelo menos em condições normais de paz. Durante
muitos séculos, títulos governamentais foram o maior e mais
seguro investimento para as elites financeiras que possuíam a maior
parte das poupanças. Banqueiros de investimento e correctores
monopolizaram as finanças públicas, com comissões
substanciais de subscrição. O mercado para acções e
títulos corporativos era abundante em fraudes, dominado por iniciados
(insiders)
ao serviço das ferrovias e grandes trusts organizados pela Wall Street
e empreendimentos de canais organizados por correctores franceses e
britânicos.
Contudo, quando os custos de travar uma guerra internacional excediam muito o
volume da poupança nacional ou a receita fiscal disponível, havia
pouca alternativa para governos senão criarem a sua própria
moeda. Esta necessidade óbvia aplacava a oposição habitual
levantada pelos banqueiros a fim de limitar a opção
monetária pública. O que mostra que governos podem fazer mais sob
condições de emergência de
force majeur
do que sob condições normais. E a crise financeira de Setembro
de 2008 proporcionou uma oportunidade para os governos estado-unidense e
europeus criarem nova dívida para salvamentos bancários. Isto
revelou-se ser tão caro quanto travar uma guerra. Era na verdade uma
guerra financeira. Os bancos já haviam capturado as agências
reguladoras para entrarem em empréstimos temerários e numa onda
de fraude e corrupção nunca vista desde a década de 1920.
E agora eles estão a manter economias reféns de uma ruptura na
cadeia de pagamentos se não forem salvos dos seus jogos especulativos,
das suas hipotecas lixo e do seu fraudulento empacotamento de
empréstimos.
A primeira vitória foi neutralizar a capacidade ou pelo menos a
vontade do Tesouro, da Reserva Federal e do Controlador da Moeda
(Comptroller of the Currency)
de regular o sector financeiro. A Goldman Sachs, o Citicorp e seus
companheiros gigantes da Wall Street mantinham poder de veto na
nomeação de administradores chave destas agências. Eles
utilizaram esta cabeça de ponte para eliminar candidatos que pudessem
não favorecer os seus interesses, preferindo desreguladores
ideológicos do tipo de Alan Greenspan e Tim Geithner. Como disse
satiricamente John Kenneth Galbraith, uma pré condição
para obter um posto num banco central é visão em túnel
quando chega a entender que governos podem criar o seu crédito
tão prontamente quanto os bancos o fazem. O que é
necessário sã lealdades políticas para deitarem-se na cama
com os bancos.
Na ruína financeira pós 2008 bastou apenas uma série de
toques no teclado do computador para o governo dos EUA criar US$13
milhões de milhões de dívida a fim de salvar bancos de
sofrerem perdas com os seus empréstimos imobiliários imprudentes
(os quais modelos de computadores pretendiam que tornariam os bancos
tão ricos que poderiam pagar aos seus administradores enormes
salários, bónus e opções de acções),
apostas em seguros que resultaram más (subvalorizando o risco para
ganhar negócios a fim de pagar aos seus administradores enormes
salários e bónus), jogos de arbitragem e fraude absoluta (dar a
ilusão de rendimentos que justificassem enormes salários,
bónus e opções de acções). Os US$800 mil
milhões do Troubled Asset Relief Program
(TARP)
e os US$2 milhões de milhões dos swaps "caixa por
lixo"
("cash for trash")
do Federal Reserve permitiram aos bancos continuar a sua
remuneração de executivos e possuidores de títulos sem um
soluço enquanto os rendimentos e a riqueza afundavam para os 99%
restantes dos americanos.
Uma nova expressão, Capitalismo de Casino, foi cunhada para descrever a
transformação do capitalismo financeiro que estava na era da
desregulamentação pós 1980 que abriu as portas a bancos
para fazerem o que governos até agora faziam em tempo de guerra: criar
moeda e nova dívida pública simplesmente "imprimindo-o"
neste caso, electronicamente nos seus teclados de computador.
Levar as agências de financiamento hipotecário Fannie Mae e
Freddie Mac, insolventes, para o balanço público por US$5,2
milhões de milhões representou mais de um terço do
salvamento de US$13 milhões de milhões. Isto salvou os
possuidores dos seus títulos de terem de sofrer perdas com as
avaliações fraudulentas das hipotecas lixo com as quais o
Countrywide, Bank of America, Citibank e outros bancos "demasiado grandes
para falir" as haviam entupido. Este enorme aumento de dívida foi
feito sem elevar impostos. De facto, a administração Bush cortou
impostos, efectuando os maiores cortes para os mais altos rendimentos e
escalões de riqueza que foram os seus grandes contribuidores de campanha
[eleitoral]. Privilégios fiscais especiais foram dados a bancos de modo
a que eles pudessem "ganhar o seu caminho para sair da dívida"
(e, na verdade, da situação líquida negativa).
[1]
O Federal Reserve deu uma linha gratuita de crédito
(Quantitative Easing)
ao sistema bancário a apenas 0,25% de juro anual em 2011 ou
seja, um quarto de um ponto percentual, sem perguntar questões acerca da
qualidade das hipotecas lixo e outros títulos penhorados como colateral
ao seu valor facial pleno, o qual estava muito acima do preço de mercado.
Esta criação de uma dívida de US$13 milhões de
milhões
(trillion)
para salvar bancos a fim de que não sofressem perdas não foi
acusada de ameaçar a estabilidade económica. Ela permitiu [aos
banqueiros]
continuar a pagar salários e bónus exorbitantes, bem como
dividendos a accionistas e pagar também contrapartes nas apostas de
arbitragem do casino capitalista. Estes pagamentos ajudaram os 1% a receberem
uns confirmados 93% dos ganhos em rendimento desde 2008. O salvamento portanto
polarizou a economia, dando ao sector financeiro mais poder sobre o trabalho e
os consumidores, sobre a indústria e o governo do que até
então desde a Era Dourada do século XIX.
Tudo isto torna a guerra financeira de hoje muito semelhante ao período
pós I Guerra Mundial e a incontáveis guerras anteriores. O efeito
é empobrecer os perdedores, apropriar activos até então
públicos em benefício dos vitoriosos e impor serviço de
dívida e
impostos pela tributação. "As crises financeiras
têm sido tão devastadoras economicamente quanto uma guerra mundial
e podem ser ainda um fardo para os nossos netos", observou recentemente
Andrew Haldane, responsável do Banco da Inglaterra. "Em termos de
perda de rendimento e produção, isto é tão mau
quanto uma guerra mundial", disse ele. A ascensão da dívida
governamental estimulou apelo à austeridade sobre a parte
daqueles que não receberam a dádiva. "Seria espantoso se o
povo não estivesse a formular grandes questões acerca de onde
é que as finanças deram para o torto"
[2]
.
Mas enquanto o sector financeiro estiver a vencer a sua guerra contra a
economia como um todo, ele prefere que as pessoas acreditem que Não
Há Alternativa. Tendo capturado a teoria económica dominante
(mainstream)
bem como a política governamental, as finanças procuram
dissuadir estudantes, eleitores e os media de perguntarem se o sistema
financeiro realmente precisa ser organizado do modo como é. Uma vez que
uma tal linha de questionamento seja empreendida, o povo pode perceber que os
sistemas bancário, de pensões, de Segurança Social e de
financiamento do défice público não têm de ser
organizados do modo como são agora. Há melhores alternativas
à estrada actual para a austeridade e a servidão da
dívida.
A continuar.
Notas
[1] Tais benefícios não foram concedidos aos proprietários
de casas cujo valor imobiliário caiu em situação
líquida negativa. Para os poucos que receberam
amortizações parciais
(write-downs)
de dívida para o valor corrente de mercado, o crédito foi
tratado como rendimento normal e tributado!
[2] Philip Aldrick, "
Loss of income caused by banks as bad as a 'world war'
, afirma BoE's Andrew Haldane,"
The Telegraph,
December 3, 2012. O sr. Haldane é o director executivo do banco para
a estabilidade financeira.
[*]
O livro
The Bubble and Beyond
resume as teorias económicas de Michael Hudson.
O seu livro mais recente é
Finance Capitalism and Its Discontents
. Ele contribuiu para
Hopeless: Barack Obama and the Politics of Illusion
, publicado pela AK Press.
mh@michael-hudson.com
O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/2012/12/28/americas-deceptive-2012-fiscal-cliff/
. Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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