A explosão social bate às portas do Brasil
É hora de mobilizar os organizados, organizar os desorganizados e
construir a contra-hegemonia no campo proletário
O capitalismo monopolista brasileiro criou uma estrutura econômica
desenvolvida, um sistema industrial dinâmico, diversificado e
verticalizado e uma produção agropecuária tipicamente
capitalista, que abastece o mercado interno e tem um peso expressivo na pauta
de exportações, fatos que em meio século colocaram o
Brasil entre as dez principais economias do mundo. O resultado desse processo
foi a construção de uma sociedade urbana, metropolitanizada,
complexa e perversamente desigual, mas com um conjunto de singularidades,
fenômenos sociais, culturais e comportamentais novos, que começam
a se expressar de maneira explosiva na conjuntura brasileira, posto que
representam uma demanda social reprimida que não cabe mais nas velhas
relações de produção construídas no
último meio século.
Em outras palavras, o conjunto das forças produtivas que possibilitaram
ao Brasil se transformar numa economia industrial madura está hoje em
contradição com o Brasil da segunda metade do século
passado e já não corresponde mais à dinâmica social
do século XXI. Esgotou-se um sistema de dominação no qual
as classes dominantes conseguiam a hegemonia mediante o consentimento
espontâneo do proletariado e da população em geral. Agora
está ocorrendo uma mudança de qualidade nessa
relação: a população explorada e espoliada
está perdendo o respeito espontâneo pela ordem pública e
ultrapassando as fronteiras das relações pacíficas da
conjuntura anterior. Está assim colocado para todas as forças
políticas e sociais o velho dilema da esfinge: decifra-me ou te devoro!
Essa nova conjuntura está possibilitando a emergência de um
conjunto de novos fenômenos sociais e políticos, como as grandes
manifestações de massas nas ruas, sem liderança, sem
necessidade de carro de som, sem direção nem objetivos ainda
claramente definidos; elevado grau de violência por parte da
população dos bairros periféricos, como fechamento de ruas
e avenidas, barricadas, queima de ônibus e trens, ocupações
de prédios públicos e privados; enfrentamentos constantes com a
polícia; os
"rolezinhos"
da juventude adolescente nos
shoppings centers
e aglomerações públicas; a greve vitoriosa dos garis em
pleno carnaval; e até assembléia grevista com 20 mil
trabalhadores, como nas obras do Complexo Petroquímico do Rio de
Janeiro, além de várias greves à revelia dos sindicatos
pelegos.
Como sempre acontece em momentos de transição e
efervescência social, verifica-se também outras
manifestações bizarras, em função da ausência
de uma ordem reconhecida por todos, como a barbárie na
penitenciária de Pedrinhas, a violência das próprias
pessoas contra pequenos marginais, a justiça com as próprias
mãos em várias regiões do País, quadro que se
completa com a ampliação das contumazes chacinas de jovens
pretos, pardos e pobres das periferias, além do desaparecimento de
pessoas, vítimas da polícia e dos marginais.
Esses fenômenos sociais, fruto dessa conjuntura tensa e complexa,
têm provocado pânico junto às classes dominantes, que
começam a perceber que a contestação ao seu domínio
está fugindo do controle, ultrapassando limites nos quais estavam
acostumadas a enquadrar os dominados no passado. As classes dominantes e seu
governo buscam de todas as formas enquadrar e conter as novas
manifestações com os velhos esquemas do passado, como a
repressão, a criminalização social, a
satanizações das novas formas de luta, mas esses métodos
não mais estão funcionando como anteriormente, uma vez que esses
novos fenômenos sociais resultam de um complexo mosaico da luta de classe
para os quais o velho receituário tem pouca eficácia.
As manifestações e os novos métodos de lutas também
têm provocado espanto e incredulidade junto à grande maioria das
forças de esquerda e aos espíritos acomodados aos velhos esquemas
caricatos de enquadrar os conflitos sociais em decalques
pré-estabelecidos, sem um esforço inovador para compreender os
fenômenos sociais como eles se apresentam e não como tipologia
sociológica pré-estabelecida. Muitas dessas
organizações com perfil de esquerda, por não entenderem a
nova dinâmica da luta de classes no Brasil, se comportam como a
mão esquerda das velhas classes dominantes, ao ratificar o discurso da
criminalização das novas formas de luta, sob o argumento de que
os trabalhadores não escondem o rosto nem quebram bancos nem lojas,
esquecendo-se de que a grande maioria das manifestações ocorre nas
periferias e que os manifestantes fazem parte do novo proletariado precarizado,
em sua grande maioria jovem, ganhando baixos salários e vivendo nas
grandes metrópoles
[1]
.
Parece que vastos setores da sociedade e da esquerda em particular
não compreenderam ainda que, da mesma forma que acontece em
várias partes do mundo, a luta de classes no Brasil também mudou
de patamar a partir das
manifestações de junho
. O ciclo do
refluxo, da cooptação, da despolitização e do
apassivamento dos trabalhadores, induzido e praticado pelo Partido dos
Trabalhadores e sua base aliada nestes 12 anos de governo, está se
esgotando. O novo proletariado jovem, que debutou nas lutas de junho, agora
está mais maduro e mais politizado e a conjuntura que se desdobra a
partir de agora será de acirramento da luta de classes nas ruas, greves
dos trabalhadores, enfrentamento com as forças da repressão nas
periferias e politização das reivindicações que
estavam difusas nas manifestações de junho.
Para compreendermos a nova dinâmica da luta de classes no Brasil é
fundamental atentarmos para os novos dados da realidade do mundo do trabalho, o
novo perfil do proletariado; é importante compreendermos as
condições de vida da população das grandes
metrópoles urbanas e a insatisfação generalizada do povo
pobre dos bairros periféricos com o desleixo com que as autoridades
tratam as reivindicações populares; é relevante ainda
observarmos as contradições entre o marketing capitalista do
consumismo de luxo e as frustrações de milhões de jovens
(a maior parte deles componentes do proletariado precarizado), cujo
salário não é suficiente para adquirir os produtos que a
publicidade lhes oferece diariamente. Esse conjunto de elementos sociais,
políticos e até psicológicos estão na base da
insatisfação da população da periferia e da
juventude e na origem das novas formas de protesto da população.
Quais são os principais aspectos da realidade econômico, social e
política do Brasil atual?
Uma sociedade complexa, urbana, com demandas reprimidas
O capitalismo brasileiro criou um País economicamente desenvolvido e
socialmente desigual. O Produto Interno Bruto Brasileiro (PIB) de 2013
alcançou R$ 4,85 trilhões (US$ 2,43 trilhões),
correspondente ao sétimo maior PIB do mundo, o que coloca a economia
brasileira, em termos puramente econômicos, num patamar semelhante
às economias centrais.
Trata-se de uma economia monopolista em todos os grandes setores,
verticalmente integrada, com um parque industrial com capacidade para produzir
todos os bens e serviços necessários ao consumo do País,
além de vasto excedente para exportação; com um setor de
serviços dinâmico, onde as grandes redes de supermercados e lojas
de departamentos são responsáveis pela
comercialização da grande maioria dos produtos do setor moderno
da economia; um sistema financeiro sofisticado e integrado nacionalmente, muito
embora não cumpra o papel básico de fazer a ligação
entre o capital bancário e o capital industrial; uma rede de
telecomunicações e de comunicação social à
altura do processo de acumulação; e um setor agropecuário
que abastece não só o mercado interno, mas se transformou em um
dos principais exportadores de
commodities
do mundo.
No entanto, esse nível de crescimento do produto não se refletiu
na distribuição da renda
[NR]
nem nas condições de vida
das famílias: o Brasil possui uma das mais desiguais
distribuições de renda do mundo, bastando dizer que os 10% mais
ricos do País amealharam, em 2009, 42,5% da renda nacional, mais de 40
vezes que os 10% mais pobres, enquanto os 5% mais ricos possuem renda maior que
os 50% mais pobres (Tabela 1). Além disso, o Brasil ocupa a 85º
posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano da
Organização das Nações Unidas.
Tabela 1 Distribuição pessoal da renda, 1999-2009
Grupo
|
1999
|
2001
|
2002
|
2003
|
2004
|
2005
|
2006
|
2007
|
2008
|
2009
|
10% mais pobres
|
1,0
|
1,0
|
1.0
|
1,0
|
1,0
|
1,0
|
1,0
|
1,1
|
1,2
|
1,2
|
20% mais pobres
|
3,3
|
3,3
|
3,4
|
3,4
|
3,5
|
3,6
|
3,6
|
3,9
|
4,0
|
4,0
|
50% mais pobres
|
14,5
|
14,8
|
14,9
|
15,5
|
16,0
|
16,3
|
16,5
|
17,2
|
17,6
|
17,8
|
10% mais ricos
|
45,7
|
46,1
|
46,1
|
45,3
|
44,6
|
44,7
|
44,5
|
43,3
|
42,7
|
42,5
|
5% mais ricos
|
33,1
|
33,4
|
33,0
|
32,7
|
31,7
|
32,0
|
31,7
|
30,7
|
30,4
|
30,3
|
1% mais ricos
|
13,2
|
12,5
|
13,3
|
12,9
|
12,7
|
13,0
|
12,8
|
12,4
|
12,3
|
12,4
|
Fonte: PNAD/Dieese
Essa macroestrutura econômica é hegemonizada pelos 100 maiores
grupos econômicos que atuam no País. Para se ter uma idéia,
esses grupos registraram, em 2010, um volume de vendas correspondente a 56% do
PIB, mais da metade de tudo que se produziu no Brasil no ano de
referência. Se desagregarmos mais um pouco essa
constatação, veremos que os 20 maiores grupos venderam no mesmo
ano o correspondente a cerca de 35% do PIB, enquanto somente os 10 maiores
conglomerados do País obtiveram um faturamento bruto de vendas
correspondente a cerca de 25% do PIB (Tabela 2). Esses grupos são os
líderes tanto no setor industrial, mineração,
agronegócio, quanto financeiro, comercial e de serviços em geral,
o que significa dizer que nenhum setor da economia brasileira escapa ao
processo de monopolização.
Tabela 2
Faturamento dos 20 maiores grupos e proporção do PIB, 2010
Ordem
|
Empresa
|
Faturamento
|
R$ milhão
|
% do PIB
|
Simples
|
Acumulado
|
1
|
Petrobrás
|
268.107,00
|
7,30
|
7,30
|
2
|
Bradesco
|
121.983,20
|
3,32
|
10,61
|
3
|
Banco do Brasil
|
114.307,20
|
3,11
|
13,73
|
4
|
Vale
|
85.345,00
|
2,32
|
16,05
|
5
|
JBS
|
57.107,10
|
1,55
|
17,60
|
6
|
Odebrecht
|
55.860,50
|
1,52
|
19,12
|
7
|
CEF
|
55.833,20
|
1,52
|
20,64
|
8
|
Santander
|
55.765,30
|
1,52
|
22,16
|
9
|
Telefonica
|
50.027,80
|
1,36
|
23,52
|
10
|
Itaúsa
|
47.942,00
|
1,30
|
24,82
|
11
|
Ambev
|
46.881,40
|
1,28
|
26,10
|
12
|
Fiat
|
46.078,30
|
1,25
|
27,35
|
13
|
Oi
|
45.928,20
|
1,25
|
28,60
|
14
|
Ultra
|
44.201,00
|
1,20
|
29,81
|
15
|
Pão de Açúcar
|
36.144,40
|
0,98
|
30,79
|
16
|
Gerdau
|
35.666,40
|
0,97
|
31,76
|
17
|
Votorantim
|
34.224,00
|
0,93
|
32,69
|
18
|
Volksvagem
|
30.024,00
|
0,82
|
33,51
|
19
|
Eletrobrás
|
29.814,70
|
0,81
|
34,32
|
20
|
BRF Brasil Foods
|
26.033,40
|
0,71
|
35,03
|
Fonte: Grandes Grupos, Valor Econômico, 2011
Se observarmos do ponto de vista da propriedade, também poderemos
constatar que desses 100 maiores grupos econômicos, 58% são de
capital majoritariamente nacional, enquanto 42% são controlados pelo
capital estrangeiro. Mas se analisarmos, por exemplo, a indústria, que
é o setor mais dinâmico da economia, aquele que cria a riqueza
nova, veremos que a participação do capital estrangeiro é
maior que a do capital nacional. No entanto, os dados sobre o controle
acionário dos grandes grupos econômicos merecem uma
qualificação, pois se não clarearmos essa análise
teremos a impressão de que o capital nacional tem o comando da economia.
Na verdade, a grande maioria dos grupos de capital nacional está
associada, em algum ponto de sua atividade econômica, ao capital
estrangeiro, uma vez que essa sociedade lhes é funcional, pois abre
espaços para atuação no mercado internacional e os torna
ator importante nos fluxos financeiros internacionais.
Esses dados também demonstram de forma clara não só o grau
de concentração da economia brasileira, mas especialmente o
nível de relação entre o capital nacional e o capital
estrangeiro, ou seja, a ligação orgânica entre a economia
brasileira e as economias centrais. Em praticamente todos os setores
dinâmicos da economia, como indústria automobilística,
tecnologia da informação, química, farmacêutica,
metalurgia, entre outros, o capital internacional hegemoniza o processo de
produção. Além disso, mesmo nos setores tradicionais, em
que o capital nacional sempre foi majoritário, como finanças,
comércio e agronegócio, o capital estrangeiro está
avançando de maneira extraordinária nos últimos anos.
O capital monopolista em geral se concentrou nas grandes cidades, enquadrou em
sua lógica todos os outros setores mais frágeis do capital e
interligou de maneira subordinada a economia brasileira aos centros dirigentes
e aos fluxos financeiros do capital internacional. O mesmo ocorreu no campo,
onde o agronegócio também subordinou as pequenas empresas e
outras formas de produção à lógica do mercado,
ocupou vastas áreas de terras para a produção de
commodities
e se transformou num dos principais expoentes do setor exportador brasileiro,
mas sua lógica de desenvolvimento não sobrevive sem a
aliança orgânica com os grupos internacionais, quer em
relação ao fornecimento de sementes, adubos e defensivos
agrícolas, quer em termos de comércio internacional. Em tempos de
bonança, essa relação de subordinação
é ofuscada pela própria conjuntura de crescimento, uma vez que no
ascenso do ciclo todos estão ganhando. No entanto, a lógica da
subordinação se torna mais explícita nos momentos de crise
internacional do capital, onde vigora um clima de salve-se quem puder e
aí então todos os mecanismos hegemônicos são
acionados para favorecer aos interesses do capital internacional.
Portanto, uma conjuntura dessa ordem deixa para as calendas as velhas
ilusões de uma provável aliança do proletariado com
setores da burguesia brasileira, como imaginam certas forças de
esquerda, pois essa burguesia nacional não é nacional e seus
interesses estão ligados organicamente aos interesses do grande capital
internacional. Em 1964, muitos setores acreditavam numa postura antimperialista
da burguesia, mas quando ocorreu o golpe praticamente toda a burguesia apoiou a
nova ordem. Agora, numa conjuntura muito mais adversa, nas quais se mesclam a
globalização e a crise econômica mundial, insistir numa
aliança dessa ordem é se comportar como os místicos, que
acreditam em duendes, sereias e mula sem cabeça...
O capitalismo monopolista brasileiro criou uma sociedade urbana e complexa,
onde cerca de 83% da população vivem nas cidades, além de
um elevado nível de concentração urbana nas regiões
metropolitanas. As 20 maiores regiões metropolitanas do País
possuem uma população de 76 milhões de habitantes, cerca
de 40% da população brasileira. Apenas a região
metropolitana de São Paulo possui uma população
correspondente a mais de 10% da população nacional, o que por si
só já reflete o nível da concentração urbana
do País. Em outros termos, os números demográficos indicam
um País urbano, com uma população concentrada nas grandes
cidades, justamente o teatro de operações onde pulsa mais
fortemente as lutas sociais e onde existem também as demandas mais
reprimidas da população. Para se ter uma idéia do grau de
urbanização do País e da configuração do
mundo do trabalho, é importante ressaltar que do conjunto da
população ocupada, constituída por cerca de 93
milhões de pessoas, apenas 13,4 milhões estão ligadas
às atividades agrícolas, enquanto 80,5 milhões
estão vinculados às atividades não-agrícolas
realizadas no País (Tabela 3).
Tabela 3
Pessoas ocupadas com 15 anos ou mais , segundo a atividade
(1000
pessoas)
|
Brasil
|
Norte
|
Nordeste
|
Sudeste
|
Sul
|
Centro Oeste
|
Agrícola
|
13368
|
1644
|
5874
|
2908
|
2078
|
864
|
Empregados
|
4110
|
350
|
1505
|
1332
|
477
|
446
|
Conta Própria
|
3915
|
637
|
1656
|
673
|
756
|
194
|
Empregadores
|
313
|
29
|
98
|
96
|
42
|
47
|
Não remunerados
|
1491
|
279
|
643
|
214
|
315
|
40
|
Trab. no próprio consumo
|
3540
|
350
|
1972
|
594
|
487
|
137
|
Não agrícola
|
80547
|
5774
|
17814
|
37765
|
12645
|
6549
|
Empregados
|
54218
|
3550
|
11122
|
26312
|
8795
|
4438
|
Trabalhadores domésticos
|
6355
|
432
|
1513
|
3007
|
871
|
533
|
Conta Própria
|
15596
|
1428
|
4223
|
6564
|
2162
|
1219
|
Empregadores
|
3251
|
173
|
564
|
1563
|
652
|
299
|
Não remunerados
|
1056
|
182
|
367
|
295
|
158
|
54
|
Trab. na construção para próprio uso
|
70
|
8
|
24
|
24
|
8
|
6
|
Fonte: PNAD, 2012
Da mesma forma que o capitalismo monopolista concentrou as empresas e as
pessoas nas grandes cidades, concentrou também o proletariado. A
população ocupada do País está constituída
por 93,9 milhões de pessoas, sendo 19,6 milhões trabalhadores
por conta própria e 3,6 milhões empregadores. Já o
conjunto dos trabalhadores brasileiros está composto por um total de
ocupados correspondente a 64,7 milhões, incluindo os trabalhadores
domésticos, enquanto o proletariado está constituído por
58,3 milhões de assalariados (Tabela 4).
Tabela 4
Pessoas ocupadas com 15 anos ou mais, por grandes regiões
(1000
pessoas)
|
Brasil
|
Norte
|
Nordeste
|
Sudeste
|
Sul
|
Centro Oeste
|
Total
|
93915
|
7417
|
23688
|
40673
|
14723
|
7414
|
Empregados
|
58328
|
3900
|
12628
|
27644
|
9227
|
4884
|
Trab. Domésticos
|
6355
|
432
|
1513
|
3007
|
871
|
533
|
Trab. Conta Própria
|
19511
|
2065
|
5879
|
7237
|
2918
|
1413
|
Empregadores
|
3564
|
202
|
662
|
1659
|
694
|
347
|
Trab. no próprio consumo
|
3540
|
350
|
1972
|
594
|
487
|
137
|
Não remunerados
|
2547
|
461
|
1010
|
508
|
473
|
94
|
Trab. na construção para próprio uso
|
70
|
8
|
24
|
24
|
8
|
6
|
Fonte: PNAD
A grande maioria desses trabalhadores (60,8%) vivem nas regiões Sudeste
e Sul brasileiras, onde estão também os principais conglomerados
econômicos do País. Uma das principais características do
novo proletariado brasileiro é o fato de que 62,8% atuam nos setores de
serviço, comércio e reparações, enquanto 16,7%
trabalham nas atividades agrícolas, 13,5% na indústria e 7,8% na
construção. Em outras palavras, 38,2% estão ligados
diretamente à produção, enquanto 62,8% trabalham nas
atividades de serviços em geral (Tabelas 5). Como em todas as economias
desenvolvidas, o total de trabalhadores na área dos serviços
é quase o dobro dos trabalhadores ligados diretamente à
produção. Em outras palavras, a maioria do novo proletariado
trabalha no setor de serviços e vive nas grandes metrópoles.
Possivelmente, isso explica porque as grandes manifestações de
julho não foram constituídas por setores da classe média,
mas por jovens proletários precarizados desse setor.
Tabela 5
Pessoas ocupadas com 15 anos ou mais, segundo a atividade do trabalho principal
(1000 pessoas)
Setor de atividade
|
Brasil
|
Norte
|
Nordeste
|
Sudeste
|
Sul
|
Centro Oeste
|
Total
|
93915
|
7417
|
23688
|
40673
|
14723
|
7414
|
Agrícola
|
13368
|
1644
|
5874
|
2908
|
2078
|
864
|
Indústria
|
13161
|
761
|
2155
|
6564
|
2851
|
830
|
Construção
|
8218
|
686
|
2038
|
3611
|
1257
|
625
|
Comércio e reparação
|
16688
|
1321
|
4223
|
7147
|
2558
|
1439
|
Transporte, armazenagem e comunicação
|
5252
|
361
|
1068
|
2585
|
816
|
422
|
Administração pública
|
5178
|
556
|
1361
|
2015
|
658
|
588
|
Educação, saúde e serviços sociais
|
9100
|
687
|
2185
|
4226
|
1287
|
715
|
Serviços domésticos
|
6355
|
432
|
1513
|
3007
|
871
|
533
|
Outros serviços coletivos, sociais e pessoais
|
3748
|
248
|
846
|
1825
|
525
|
304
|
Outras atividades
|
8307
|
360
|
129
|
4668
|
1237
|
747
|
Atividades mal definidas
|
69
|
14
|
20
|
25
|
5
|
5
|
Fonte: PNAD, 2012
O conjunto da classe trabalhadora do País possui um perfil muito
diferente do proletariado típico do período fordista, não
só do ponto de vista da ocupação mas também em
termos geracionais, de formação escolar e profissional. Trata-se
de um proletariado jovem, a grande maioria tem entre 18 e 35 anos. Além
disso, é um contingente com pelo menos o dobro dos anos de estudo dos
trabalhadores do período de ascenso das lutas no final da década
de 70: mais de 60% desses trabalhadores têm acima de oito anos de estudo,
ressaltando que 48,2% possuem mais de 11 anos de estudo (Tabela 6).
Tabela 6
População ativa com 15 anos e mais por anos de estudo
(1000 pessoas)
|
Brasil
|
Norte
|
Nordeste
|
Sudeste
|
Sul
|
Centro Oeste
|
Total
|
93915
|
7417
|
23688
|
40673
|
14723
|
7414
|
Sem instrução e menos de 1 ano
|
6247
|
679
|
3169
|
1493
|
464
|
441
|
1 a 3 anos
|
6844
|
796
|
2675
|
2068
|
838
|
467
|
4 a 7 anos
|
19286
|
1615
|
5122
|
7623
|
3501
|
1426
|
8 a 10 anos
|
16152
|
1278
|
3615
|
7024
|
2865
|
1370
|
11 anos e mais
|
45260
|
3019
|
9071
|
22438
|
7032
|
3701
|
Fonte: PNAD, 2012
Uma questão importante para a reflexão é a seguinte: quase
todo o proletariado atual iniciou sua atividade no mercado de trabalho no
período de refluxo das lutas sociais, hegemonia do neoliberalismo e
direção política do Partido dos Trabalhadores. Portanto,
no período de ofensiva contra os direitos e garantias dos assalariados,
fragmentação do movimento sindical, cooptação dos
movimentos sociais, apassivamento da luta de classes e difusão
ideológica da busca de soluções individuais para
resolução dos problemas dos trabalhadores. Trata-se de um
proletariado que não passou pelas escolas da luta de classes e, dessa
forma, não adquiriu ainda a experiência do enfrentamento com o
capital. Um dos reflexos dessa conjuntura é o nível de
sindicalização da população ocupada: mesmo levando
em conta que nesse contingente estejam incluídos os autônomos,
empregadores e outras categorias não diretamente assalariadas, o
resultado demonstra realmente um índice de sindicalização
muito baixo: dos 93,9 milhões de ocupados, apenas 16,7% são
sindicalizados, enquanto 83,3% não têm vínculo associativo
com os sindicatos (Tabela 7).
Tabela 7
População ativa, segundo associação a um
sindicato, 2012
(1000 pessoas)
|
Brasil
|
Norte
|
Nordeste
|
Sudeste
|
Sul
|
Centro Oeste
|
Total
|
93915
|
7417
|
23688
|
40673
|
14723
|
7414
|
Sindicalizados
|
15728
|
1080
|
4507
|
6237
|
2914
|
990
|
Não sindicalizados
|
78188
|
6338
|
19181
|
34436
|
11809
|
8424
|
Fonte: PNAD, 2012
As condições de trabalho da grande maioria do proletariado
brasileiro são precárias e parcela importante desse contingente
realiza uma jornada de trabalho onde não há nenhum respeito aos
mínimos direitos já conquistados há mais de um
século pelos trabalhadores, como o descanso aos domingos e a semana de
40 horas. Cerca de um terço dos trabalhadores têm uma jornada de
trabalho acima de 45 horas semanais. Para se compreender as dramáticas
condições de trabalho de um imenso contingente de assalariados
das grandes cidades, basta dizer que no comércio, nos
shoppings centers,
nos
call centers,
por exemplo, que envolvem algo em torno de 20 milhões de assalariados,
esses trabalhadores praticamente não têm vida própria.
Trabalham de domingo a domingo, num regime de escalas de flexíveis, onde
o dia de folga é definido pelos interesses do capital, o que significa
dizer que perderam completamente o controle da vida social junto à
família, aos filhos ou aos amigos.
Outro dos aspectos dramáticos da vida do proletariado das grandes
metrópoles é a baixa remuneração, fato
típico da economia brasileira, especialmente a partir da
implantação da ditadura militar, quando esta implantou a ferro e
fogo uma economia de baixos salários, processo que viciou as classes
dominantes, continuou no período democrático e se aprofundou no
período do neoliberalismo. Cerca de 72% dos assalariados, representando
um universo de 46,7 milhões de trabalhadores, mais de dois terços
da mão-de-obra ocupada, ganham até 3 salários
mínimos, ressaltando-se que 18,2 milhões recebem apenas um
salário mínimo (Tabela 8). Os baixos salários pagos na
economia brasileira estão em contradição aberta com o grau
de desenvolvimento da economia brasileira, uma vez que no Brasil os
empresários possuem uma das maiores taxas de lucro do mundo industrial,
enquanto pagam também um dos menores salários das economias
industrializadas.
Tabela 8
Empregados com 15 anos ou mais, segundo o rendimento mensal do trabalho
principal
(1000 pessoas)
Classes de rendimento mensal
|
Brasil
|
Norte
|
Nordeste
|
Sudeste
|
Sul
|
Centro Oeste
|
Total
|
64683
|
4332
|
14140
|
39651
|
10143
|
5417
|
Até 1 salário mínimo
|
18269
|
1706
|
7792
|
5735
|
1755
|
1280
|
Mais de 1 a 2 salários mínimos
|
20516
|
1544
|
4013
|
13702
|
4943
|
2314
|
Mais de 2 a 3 salários mínimos
|
7934
|
399
|
863
|
4355
|
1617
|
700
|
Mais de 3 a 5 salários mínimos
|
6189
|
389
|
753
|
3418
|
1086
|
543
|
Mais de 5 a 10 salários mínimos
|
2843
|
161
|
357
|
1565
|
430
|
330
|
Mais de 10 a 20 salários mínimos
|
940
|
38
|
122
|
533
|
126
|
122
|
Mais de 20 salários mínimos
|
250
|
8
|
25
|
144
|
31
|
42
|
Sem rendimento
|
27
|
1
|
6
|
14
|
5
|
1
|
Fonte: PNAD, 2012
Até mesmo do ponto de vista da legalidade trabalhista, cuja
institucionalidade foi definida ainda no início dos anos 40 do
século passado, com a promulgação da CLT
(Consolidação das Leis do Trabalho), a maioria dos trabalhadores
brasileiros ainda está desprotegida: dos 64,7 milhões de
assalariados, somente 39,1 milhões têm carteira assinada, enquanto
18,6 milhões não estão garantidos pela
legislação trabalhista e 7,0 são militares ou
estatutários (Tabela 9). Outro dos reflexos dessa situação
é o fato de que esses trabalhadores sem carteira assinada não
recebem férias, 13º. salário, FGTS (Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço), além de outros direitos pagos aos
trabalhadores com carteira assinada.
Tabela 9
Trabalhadores de 15 anos e mais, com e sem carteira assinada
|
Brasil
|
Norte
|
Nordeste
|
Sudeste
|
Sul
|
Centro Oeste
|
Total
|
64683
|
4332
|
14140
|
30651
|
10143
|
5417
|
Com carteira de trabalho assinada
|
39096
|
1852
|
6341
|
20770
|
6945
|
3188
|
Outros sem carteira assinada
|
18611
|
1765
|
6092
|
7016
|
2231
|
1508
|
Militares e estatutários
|
6976
|
715
|
1707
|
2866
|
967
|
721
|
Fonte: PNAD, 2012
Além disso, esse proletariado também enfrenta uma mobilidade
urbana angustiante, o que faz com que cada trabalhador leve cerca de quatro
horas diárias para ir e voltar ao trabalho. Quando o jovem
proletário estuda à noite, o que acontece com cerca de seis
milhões de universitários, sua chegada em casa se dá por
volta de uma hora da madrugada. Dorme apenas quatro/cinco horas, porque tem que
acordar muito cedo para enfrentar o transporte caótico nos ônibus
e metrôs lotados. Esse proletariado também se alimenta mal, porque
o
vale alimentação
que recebem das empresas, quando recebem, não é suficiente para
realizar uma refeição num restaurante.
Ou seja, os trabalhadores das grandes metrópoles, enfrentam o caos
urbano, a saúde precária, ganham baixos salários, se
alimentam mal, dormem pouco e praticamente não têm lazer. Convivem
diariamente com a violência policial e com uma classe dominante obtusa
que ainda trata a questão social como um caso de polícia. Vivendo
nessas condições não é de espantar que as
manifestações de rua sejam marcadas por um elevado nível
de fúria dos manifestantes, especialmente os jovens. Não poderia
ser de outra forma, afinal são anos e anos de acúmulo de
frustrações financeiras e sociais. A paciência das pessoas
tem limites.
Além disso, os assalariados das grandes metrópoles todo dia
são bombardeados pela propaganda na mídia, estimulando o consumo
de grifes da moda e de um estilo de vida incompatível com o
salário desses trabalhadores. Isso vai gerando necessidades e desejos
fabricados artificialmente e novas frustrações cotidianas, pois
tudo aquilo que é oferecido pelo mercado, eles não tem
condições financeiras de adquirir. Dessa forma, vai-se acumulando
indignação e revolta, que tanto pode ser expressa na busca de
soluções individuais, inclusive na marginalidade, quanto em
manifestações explosivas, sem objetivos políticos ainda
claros contra o sistema. Não se pode exigir de um proletariado jovem,
sem experiência de luta, e vivendo nessas condições, que
este tenha o mesmo comportamento de um militante experiente da esquerda. Isso
explica em grande parte o que ocorreu nas manifestações de junho
e os constantes enfrentamentos espontâneos nos bairros contra a
polícia.
Para se compreender a relação entre o novo perfil do proletariado
brasileiro, as grandes jornadas de lutas de junho e as outras
manifestações que vem se realizando pelo País a fora,
é importante observarmos as pesquisa de opinião que foram feitas
no fogo dos acontecimentos de junho. O IBOPE (Instituto Brasileiro de
Opinião Pública) realizou duas pesquisas nacionais: uma para a TV
Globo, que foi anunciada pelo programa
Fantástico,
e outra para a Confederação Nacional da Indústria.
Além disso, outros dois institutos, o Inovare, em Belo Horizonte, a
Clave de Fá, no Rio de Janeiro, também realizaram pesquisas com
os manifestantes, só que esses dois últimos com resultado para os
respectivos Estados, o que proporciona mais detalhes sobre o perfil dos
manifestantes e as motivações que os levaram às ruas.
A pesquisa constatou que 75% da população apoiavam as
manifestações e que 78% dos manifestantes se organizaram
através das redes sociais. Entre os manifestantes consultados, 96%
não são filiados a nenhum partido político, 83% não
se sentem representados por nenhum partido. Outro dado importante é o
fato de que 46% dos manifestantes nunca tinham participado de
manifestações de protesto, 52% são estudantes e 43%
têm ensino superior e menos de 24 anos. Segundo a pesquisa, 38% foram
às ruas para reivindicar melhorias no sistema de transporte, para outros
30% a motivação foi política e 12% em busca de melhores
serviços de saúde. Quem quiser influir na realidade tem que
ficar atento a esta realidade, pois as novas manifestações que
já estão ocorrendo têm a mesma base, que poderá ser
ampliada com a emergência em massa dos trabalhadores mais organizados no
processo de luta.
Uma copa que não é do povo
Num País em que faltam hospitais, postos de saúde e o
trânsito é uma calamidade pública, os gastos
faraônicos com a copa despertaram um sentimento muito crítico em
relação este evento, afinal 85% dessas despesas foram bancados
pelo governo. Não que as pessoas sejam contra a copa em si, mas contra o
abuso das autoridades, o superfaturamento, a corrupção e a
prioridade dos gastos. Para o senso comum, a compreensão é a
seguinte: não tem dinheiro para a saúde nem para a
educação, mas tem dinheiro para construir estádios e cada
dia surge um novo escândalo de corrupção. Algo está
errado com o sistema.
De acordo com cálculos do próprio governo, já foram gastos
até agora cerca de R$ 25,6 bilhões (U$ 12,8 bilhões), mas
esse número está bastante subestimado. Outros
órgãos independentes afirmam que os gastos atingirão R$ 40
bilhões. No entanto, não é só os gastos com a copa
que enfurece a população. Um conjunto de outros problemas,
ligados à ganância capitalista, à arrogância da FIFA
e os superfaturamentos das obras da copa, à repressão policial
vêm adicionar mais lenha à fogueira da insatisfação
popular.
A copa intensificou o apetite da especulação imobiliária,
que se articulou para se apoderar das áreas próximas aos
estádios, com o objetivo de construir hotéis e apartamentos de
luxo. O governo, em aliança com as grandes construtoras e
corporações imobiliárias, intensificou os despejos e
remoções da população pobre que morava nessas
regiões. Muitas favelas localizadas nessas áreas foram
misteriosamente incendiadas para forçar a saída dos moradores. Os
cálculos dos
Comitês Populares da Copa
, uma das organizações que está promovendo as
manifestações, indicam que cerca de 250 mil pessoas foram
expulsas dessas áreas nos entornos dos estádios onde serão
realizados os jogos, mediante violenta repressão. Tornou-se um fato
comum as forças policiais expulsarem regiões inteiras, com os
tratores e retroescavadeiras, demolindo as casas das famílias, policiais
batendo em homens, mulheres e crianças, cuja única culpa era
estar residindo próximo aos estádios onde serão realizados
os jogos da copa do mundo e não querer sair de onde moram.
Essas pessoas, expulsas violentamente de suas casas, estão sendo levadas
para regiões muito distantes, onde os serviços básicos,
como transporte, saúde e educação ainda são mais
precários do que nos locais em que residiam originalmente. São
milhares de famílias desestruturadas, pois lhes roubaram o
convívio social que mantinham há anos com parentes e vizinhos e
agora estão jogadas à própria sorte. Isso explica em
grande parte o poder de mobilização e luta dos movimentos por
moradia nas grandes metrópoles brasileiras, especialmente em São
Paulo e no Rio de Janeiro.
Não bastasse essa violência contra a população dos
bairros pobres das grandes metrópoles, as próprias
metrópoles se tornaram reféns da FIFA. Para satisfazer os
interesses mercantilistas dos cartolas do futebol, o governo aprovou a
Lei Geral da Copa,
um conjunto de dispositivos legais que representam uma verdadeira
intervenção da FIFA no País. Trata-se de leis de
exceção, cujo objetivo é garantir que a copa seja um
negócio muito lucrativo para a FIFA, para os grandes patrocinadores da
copa e um conjunto de corporações empresariais que estão
recebendo verbas governamentais para construir estádios e organizar os
eventos.
A
Lei Geral da Copa
é uma excrescência jurídica, um atentado à
soberania nacional e uma violação aberta aos direitos e garantias
da população. Praticamente transforma o País num Estado de
exceção durante a copa. Essa lei estabelece zonas de
exclusão de dois quilômetros no entorno dos estádios, onde
apenas os patrocinadores e empresas e estes ligadas podem comercializar
qualquer tipo de produto - são as chamadas zonas limpas, de
exclusividade da FIFA. Todo o comércio de rua está proibido
nesses bantustões futebolísticos. Em dias de jogos nas 12
cidades-sede da copa a circulação de automóveis e
pedestres é limitada. Em cidades como Salvador e Rio de Janeiro os
moradores do entorno receberão "credenciais" para poder chegar
e sair de casa. Foram criados novos tipos penais para enquadrar qualquer
pessoa que usar os símbolos da copa, sem autorização da
FIFA. Além disso, a União se torna responsável por
eventuais prejuízos causados por fenômenos da natureza ou
acidentes relacionados ao evento que venha prejudicar a FIFA e a própria
FIFA fica isenta de pagamento das custas judiciais.
Esta também é uma copa dos ricos, pois vai afastar o povo dos
estádios: o preço dos ingressos para as partidas de futebol
é proibitivo para o trabalhador. A euforia de ver a copa do mundo em seu
próprio País não será possível, pois a FIFA
sequestrou a alegria da população. Transformou o futebol num
negócio onde só os ricos podem usufruir. É só ver o
preço dos ingressos. Existem quatro categorias: os mais baratos, a
categoria 4
, custará U$ 50; a
categoria 3
, custará U$ 100; para quem quiser ingressos da
categoria 2
, o preço é de U$ 450; e a última das categorias, a
categoria 1
, os ingressos custarão U$ 900. Trata-se de preços proibitivos
para a absoluta maioria da população, que agora só
poderá assistir aos jogos pela televisão. Mais uma
frustração que alimentará a revolta da
população.
Como o governo já tomou conhecimento do profundo descontentamento da
população, preparou um aparato repressivo como se o País
estivesse em tempos de guerra. São milhares de soldados do
Exército, da Força Nacional e das Polícias Militares,
armados com o que há de mais moderno para ocupar as ruas e reprimir as
manifestações. Os corpos policiais de choque, a vanguarda
repressiva, parecem
robocops
tresloucados, com licença para jogar bombas de gás
lacrimogêneo, gás de pimenta, bombas de efeito moral, balas de
borracha, prender arbitrariamente os manifestantes e atirar contra a
população indefesa, como já aconteceu em junho. Esse
contingente é auxiliado por um corpo especial, a chamada
tropa ninja,
formada por centenas de lutadores de artes marciais, descaracterizados entre
os manifestantes, cujo único objetivo é bater e dominar os
manifestantes.
Para dar uma fachada legal a essa repressão, o governo aprovou uma
portaria que define as regras para a garantia da lei e da ordem durante a copa,
um verdadeiro
AI-5 padrão FIFA
, que lembra os tempos mais sombrios da Lei de Segurança Nacional e da
ditadura. Essa portaria trata todos os manifestantes como
inimigos internos
e os iguala a
membros de quadrilha
. Além disso, prevê longas penas para os manifestantes que
interditarem vias públicas, fecharem avenidas, realizarem greves.
Trata-se de uma lei de exceção que suspende garantias e direitos
previstos na própria Constituição. Todo isso está
sendo realizado pelo governo do Partido dos Trabalhadores e de sua base aliada
para garantir a mercantilização do futebol, os lucros do grande
capital e da FIFA.
A revolta latente, que começa a aparecer de novo nas ruas
Como se pode observar, o conjunto de contradições que envolvem a
sociedade brasileira, bem como a insatisfação popular que vem se
gestando entre a população, estão chegando à
superfície após um longo processo de amadurecimento. O Brasil
atualmente pode ser comparado a uma grande panela de pressão prestes a
explodir, especialmente com a realização da Copa do Mundo e das
eleições. O respeito espontâneo à ordem, a
obediência consentida das grandes massas e a coesão social imposta
pela disciplina do capital está se deteriorando rapidamente. Cada vez
mais se constata uma impaciência generalizada da população
em relação ao poder público e uma fúria em
relação a tudo que é ligado às
instituições, tanto públicas quanto privadas, uma vez que
o modelo econômico e social imposto ao Brasil nestas três
últimas décadas obstruiu os canais de expressão social, de
representação e mediação das
reivindicações populares. Portanto, a Copa do Mundo é
apenas o elemento catalisador dessa revolta latente da população.
No País do futebol, onde esse esporte é uma paixão
nacional, recentes pesquisas indicam que mais de 40% da população
critica a realização da Copa do Mundo e os gastos
astronômicos realizados com a construção de estádios
e outras obras ligadas ao evento, além do fato de que 66% acham que a
copa vai trazer mais prejuízos que benefícios para a
população. Esse é um dado que nunca se constatou em nenhum
momento da história do Brasil, pois o povo brasileiro ama o futebol,
adora a "seleção canarinho". Nos períodos de
copa do mundo é comum as pessoas pintarem as ruas e as paredes das casas
com a bandeira brasileira; cria-se um clima de alegria em relação
à seleção. Mas isso agora não está
acontecendo: às vésperas do início da copa são
raras as casas e ruas pintadas e também não existe clima de
euforia entre a população. Isso porque as demandas reprimidas e o
desleixo das autoridades públicas em relação às
reivindicações populares mudaram a
percepção da população sobre a
realização da copa no Brasil.
Não se pode deixar de incluir outros motivos para a
insatisfação popular. Elementos econômicos e sociais
vão se tornando cada vez mais claros para a população.
Como se pode explicar um País que possui a sétima economia do
mundo, mais de 50 milhões de pessoas vivem na miséria, recebendo
migalhas dos programas de compensação social? Como se pode
entender um País que possui terra e água em abundância, sol
o ano inteiro, praticamente todas as matérias-primas necessárias
à produção de bens e serviços, com uma carga
tributária de 34% do PIB, tenha serviços públicos, como
educação saúde e saneamento, tão precários
como os países mais pobres do mundo. Como se pode explicar a perversa
distribuição de renda, na qual os 10% mais ricos possuem 42,5% da
renda e os 50% mais pobres possuem menos renda que os 5% mais ricos? Essa
é a base material na qual perpassa a insatisfação da
população e a copa é apenas o pretexto que as pessoas
encontraram para demonstrar sua indignação.
Os primeiros sintomas dessa revolta latente vieram à tona com as
manifestações de junho, cujo processo abriu um novo ciclo de
lutas sociais no Brasil. Milhões de jovens proletários debutaram
na luta de classes e colocaram novamente as ruas como o palco das
mudanças. Essas manifestações, por serem basicamente
espontâneas, não tinham um objetivo claro, nem uma
orientação anticapitalista. Refletiam apenas a
indignação do povo contra a ordem estabelecida. Mas foram capazes
de mudar a psicologia das massas e todo um discurso de que o País estava
bem. Com as lutas de junho a população perdeu o medo de se
manifestar e aprendeu que somente com a luta se pode obter conquistas, a
exemplo da revogação do aumento das passagens, que foi o estopim
das manifestações de junho de 2013.
É importante enfatizar que as lutas populares não pararam com o
ciclo aberto em junho. Mudaram apenas de palco e de forma. Em vez de
multidões nas ruas, passaram a ocorrer nos bairros, nas
ocupações urbanas e rurais, nos confrontos com a polícia,
nas manifestações contra os precários serviços
públicos. Até mesmo os alagamentos são motivos para a
população se manifestar, especialmente nas grandes
metrópoles. Pode-se constatar claramente um esgarçamento do
tecido social, pois a luta popular passou a conter um elemento de
violência muito acentuado. Qualquer motivo é suficiente para
contestar
a ordem ou fazer justiça com as próprias mãos. Tornou-se
uma rotina a violência durante as manifestações dos
bairros da periferia.
Diariamente, em alguma região das grandes cidades, a
população enfrenta a polícia, fecha ruas e avenidas,
queima ônibus (só em São Paulo este ano foram queimados 80
ônibus), depreda trens e metrô, saqueia lojas e supermercados,
ocupa prédios abandonados e terrenos urbanos. Até mesmo os
adolescentes da periferia encontraram uma forma de protestar, com os chamados
"rolezinhos", movimento no qual a juventude adolescente da periferia
vai aos milhares aos
shopping centers
para se encontrar e se divertir. Nesses templos do consumo, esses jovens da
periferia não são benvindos, pois seu jeito de vestir, sua
linguagem e comportamento diferente dos frequentadores das lojas causam medo
aos proprietários, que chamam a polícia para reprimir duramente
os adolescentes ou então fecham os estabelecimentos quando têm
notícia de que os "rolezinhos" serão realizados
naqueles shoppings.
Todavia, é importante ressaltar que essas lutas ainda são
bastante fragmentadas e representam basicamente uma resposta espontânea
à brutalidade com que a polícia trata a população
da periferia e um protesto em função do desprezo com que o povo
é tratado pelas autoridades governamentais. Mas em cada luta há
uma sensação difusa de que as coisas não podem mais
continuar como estão, que é necessária uma mudança
urgente. Esse sentimento difuso, quando se torna generalizado, como
começa a ocorrer atualmente, qualquer pretexto é suficiente para
a luta social. Em outras palavras, a luta de classes também está
mudando de patamar no Brasil, para desespero das classes dominantes, antes
acostumadas ao mito de que o povo brasileiro era pacífico e ordeiro e
que procurava exorcizar sua indignação no samba, no futebol e no
carnaval.
Na segunda metade do mês de maio, às vésperas da
realização da copa do mundo, o movimento social ganhou um novo
personagem: a entrada dos trabalhadores organizados na luta. Vale ressaltar que
lutas organizadas dos trabalhadores já vinham ocorrendo depois de junho
de 2013, só que ainda de forma embrionária, como ocorreu no caso
da greve vitoriosa dos garis no Rio de Janeiro, em pleno carnaval, na greve dos
trabalhadores do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (cujas
assembléias chegaram a reunir 20 mil trabalhadores) ou dos
rodoviários de Porto Alegre. Todas essas greves mantiveram um mesmo
padrão: foram realizadas à revelia dos sindicatos pelegos, que
tudo fizeram para desmobilizar o movimento, inclusive se aliando com o governo,
os patrões e a polícia para derrotar o movimento.
Agora mesmo, a menos de um mês da inauguração da copa, uma
onde de manifestações e greves se espalha por todo o País.
Estão atualmente em greve os professores da rede municipal de São
Paulo, os professores da rede municipal e estadual do Rio de Janeiro,
professores universitários. Os motoristas de ônibus de São
Paulo e das cidades metropolitanas também cruzaram os braços,
assim como motoristas de várias cidades do País; os policiais
militares da Bahia também realizaram greve este mês, assim como os
policiais civis de 13 estados brasileiros. Estão programadas ainda um
conjunto de novas greves de várias categorias, o que promete um junho
com muita luta, justamente no primeiro aniversário das grandes
manifestações do ano passado. No dia 15 de maio ocorreram
manifestações em 12 estados contra a copa, e o Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto (MTST) vem fustigando diariamente o governo, com
ocupações de prédios, terrenos urbanos, bem como
ocupações das sedes de grandes empreiteiras responsáveis
pela construção dos estádios e obras de infraestrutura dos
eventos.
Um novo tipo de greve também ocorreu em São Paulo, quando os
motoristas de ônibus da cidade realizaram uma
greve surpresa
, um dia após a assinatura de acordo entre o Sindicato dos Trabalhadores
e o Sindicato patronal. Acontece que este é mais um sindicato pelego
atropelado pelas bases, pois mesmo sem apoio de ninguém os trabalhadores
pararam por dois dias a cidade de São Paulo, deixando em desespero tanto
o sindicato patronal quanto o sindicato pelego, a polícia e as
autoridades governamentais. A greve de base, que pegou todos de surpresa, teve
a adesão da maioria absoluta da categoria, mas nem as autoridades nem a
polícia tinham idéia de quem eram os líderes ou
interlocutores.
Como sempre ocorre nesses episódios, o prefeito de São Paulo, do
PT, veio a público dizer que não entendia as razões do
movimento, que esse tipo de greve sem aviso era inadmissível, que os
grevistas se comportaram como sabotadores, que usaram táticas de
guerrilha. Nesta greve, os motoristas param os ônibus nos terminais,
levam as chaves e inviabilizam a circulação. Também
enfileiraram os ônibus nas grandes avenidas, que ficam interditadas, sem
condições para o tráfego. O irônico dessa
situação é o apavoramento das autoridades, que não
conseguiam reprimir os grevistas porque estes aparentemente não tinham
lideranças visíveis, não realizaram piquetes e nem
apresentaram uma pauta de reivindicações, a não ser
algumas entrevistas de motoristas criticando o acordo feito pelo sindicato
pelego. São as novas formas de luta da luta de classe no Brasil.
A tendência da luta social no Brasil é se acirrar à medida
em que a copa se aproxima. Vão se ampliar as
manifestações de rua, bem como as greves dos trabalhadores, pois
razões é que não faltam para as pessoas protestarem.
Pode-se mesmo dizer que articula-se nos subterrâneos sociais, sem que as
pessoas percebam, um processo de desobediência civil, nesse momento
estimulada apenas pela fúria e a indignação da
população. Essas lutas têm um imenso potencial para evoluir
a um patamar mais organizado de intervenção, à medida em
que as forças de esquerda revolucionária forem ganhando
espaço entre os trabalhadores e a população. Não
está descartado que no bojo das lutas sociais que se iniciaram com as
manifestações de junho de 2013 e que se consolidarem com as
manifestações e greves de maio e junho de 2014, abra-se um
espaço privilegiado para a construção de uma greve geral
com uma plataforma de mudanças que coloque em questão os
principais postulados do atual modelo econômico e social brasileiro.
Diante de uma conjuntura dessa ordem, cabe às forças
revolucionárias contribuírem com sua experiência para
ajudar a organizar os trabalhadores já organizados em sindicatos e nas
principais entidades dos movimentos sociais, organizar os trabalhadores e a
população ainda desorganizada e buscar um processo de
construção de uma contra-hegemonia anticapitalista, capaz de
construir um outro rumo para o País e de atender as principais demandas
populares.
[1]
Estamos assumindo aqui o conceito amplo de proletariado como todos aqueles
que são obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver, que tem
contradições com o capital ismo e que não são funcionários do capital. É bem
verdade que ainda existe uma diferenciação técnica entre os trabalhadores
ligados diretamente à produção e os outros trabalhadores, mas o capitalismo
globalizado está aproximando cada vez mais o conjunto dos assalariados, em
funções de suas próprias contradições.
[NR]
No Brasil chamam de renda a qualquer espécie de rendimento, inclusive os
salariais.
Artigos de Edmilson Costa em resistir.info:
O Brasil está maduro para o socialismo
Capitalismo contemporâneo, imperialismo e agressividade
Brasil: extraordinária jornada de lutas
A terceira onda da crise: O capitalismo no olho do furacão
A crise do euro e a crise sistêmica global
Os movimentos sociais e os processos revolucionários na América Latina: Uma crítica aos pós-modernistas
"Abrem-se janelas de oportunidades para a emergência do movimento popular"
Atenção: Resistir.info dispõe de alguns exemplares de "A crise económica
mundial, a
globalização e o Brasil", de Edmilson Costa (287 pg., ed. ICP). Custa 15 euros
(porte incluido). Os interessados poderão transferir essa quantia para o NIB
003601689910004600741 e a seguir informar (com nome/morada) para o email
resistir[arroba]resistir.info.
[*]
Doutorado em economia pela Universidade Estadual de
Campinas, com pós-doutoramento no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da mesma instituição. É autor,
entre outros, de
A globalização e o capitalismo contemporâneo
(Expressão Popular, 2009),
A crise econômica mundial, a globalização e o Brasil
(Edições ICP, 2013). Além de professor
universitário, é diretor de pesquisa do Instituto Caio Prado
Junior, um dos editores da revistas
Novos Temas
e membro do Comitê Central do PCB.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|