A alternância e seus consensos
por Daniel Vaz de Carvalho
|
Matamo-nos a cantar os hinos do progresso ao compasso do batuque da
agiotagem,
Oliveira Martins, "Portugal Contemporâneo".
O conservadorismo moderno está comprometido num dos exercícios
intelectuais mais antigos que se conhecem: a procura de uma
justificação moral para o egoísmo.
John Kenneth Galbraith
|
1 AS POLITICAS RESPONSÁVEIS
O capitalismo é a legalização da avareza e do
egoísmo de que falava Galbraith.
PS, PSD, CDS, os partidos do "arco da governação", a
troika interna, proclamaram estas práticas como "políticas
responsáveis".
Mas responsáveis em quê e de quê?! Responsáveis pelo
aumento da pobreza, do desemprego, da estagnação económica
que já vai em década e meia, pelo crescimento das desigualdades,
pela desindustrialização, pela assinatura de um
"memorando" assumido como "ajuda", certamente à
finança, mas consistindo num claro pacto de agressão à
nossa soberania e ao nosso povo. As "políticas
responsáveis" tornaram Portugal num dos países mais
endividados da OCDE, a dívida pública e privada (famílias
e empresas) ao estrangeiro ascendia no final de 2014 a 300 % do PIB.
As grandes empresas apoderam-se dos serviços públicos, as suas
taxas de lucro aumentaram em termos monopolistas e pela "flexibilidade
laboral". As MPME vivem em permanente risco de falência devido
à perda do poder de compra da população; o investimento em
termos líquidos (descontando as amortizações) é
negativo. O país tornou-se um fornecedor líquido de capitais:
desde a criação da Zona Euro foram transferidos do país em
15 anos (2000 a 2014) 62 536 M. Note-se que no mesmo período a
Alemanha absorveu um total de 608 456 M.
[1]
Os partidos da alternância fingem ignorar este facto e assentam a sua
estratégia nas verbas que hão de vir da UE
fazem por
ignorar o que sai.
Com as "políticas responsáveis" de
privatizações e "flexibilidade laboral" os
défices, o endividamento, a pobreza nunca deixaram de crescer. Os
serviços pioraram, os preços aumentaram, a redução
de custos é feita não de investimento, mas à custa dos
trabalhadores, para aumentar os lucros e a saída de capitais.
Quando o PSD e CDS se afundam no descrédito, PS os substitui mantendo
políticas idênticas. Quando o PS se afunda, o PSD-CDS
substituem-no aprofundando as mesmas políticas
"responsáveis" de obediência "às regras da
UE". É a alternância. Nenhum destes partidos defende
políticas de intervenção do Estado no campo
económico: defendem a "economia de mercado", o neoliberalismo.
A prática do PS com variantes de estilo é também uma
política de direita.
2 CONSENSO SOBRE OS "MERCADOS"
A ideologia do mercado é uma dominante do consenso do "arco da
governação". Quando no governo, o PS argumentava contra
partidos à sua esquerda acusando com indisfarçável
arrogância o PCP de ser contra o mercado. O jogo de palavras mostra uma
tática de deflexão para fugir ao essencial: uma coisa são
"os mercados" na assumida versão neoliberal
monopólios e finança especuladora e outra o mercado, que
existe sempre que haja produção mercantil e portanto
também em socialismo dada a existência de cooperativas e mesmo
MPME privadas. O PS critica o governo PSD-CDS por ser fundamentalista e por ir
mais longe que a troika, mas não critica "os mercados" nem a
troika.
A ideologia da economia de mercado à qual tudo se tem se subordinar
levou os países a uma crise que se prolonga há sete anos, sem fim
à vista, com crises a serem pagas pelos trabalhadores, pois, segundo o
seu consenso o que as provoca são salários altos e
prestações sociais. O PS diz agora que é necessário
aumentar a procura para reduzir o desemprego, o PSD e CDS diziam o mesmo na
oposição.
A teologia neoliberal impõe o dogma dos mercados. Mas os mercados
não são as abstrações da "mão
invisível", são instituições politicamente
determinadas no sentido de favorecer a finança e o grande capital. Os
"mercados" são o eufemismo para a especulação
financeira e sobre bens essenciais, para a extração juros e de
rendas monopolistas, além de uma arma do imperialismo para dominar os
povos.
A tese da "eficiência do mercado" permitiu às
oligarquias apoderarem-se de partes crescentes da riqueza produzida, levando os
países a intermináveis crises em prejuízo dos
trabalhadores e da sociedade em geral. Esta traficância foi
alcançada com a cumplicidade de partidos ditos "socialistas".
A dívida pública veiculada pelos critérios neoliberais
tornou-se a mais descarada forma de espoliação dos povos. A
ineficiência do Estado não chega a merecer o nome de dogma, mas de
reles mentira atendendo aos atos de má gestão e fraude, que com
impressionante frequência vêm a público, com as
instituições de regulação e
fiscalização a nada verem.
De 2011 a 2014 Portugal pagou de juros 28.528,8 M, face a 34.646,2
M de défice orçamental acumulado, porém a
dívida aumentou 58 700 M desde final de 2010! Os excedentes
orçamentais ficam hipotecados aos juros, envolvendo o país num
círculo vicioso.
PSD e CDS não querem falar em renegociação da
dívida, pois isso pode "traumatizar os mercados" (espantosos
estes eufemismos!) o PS também não. Esta convergência
manifestou-se claramente no voto dos três partidos contra uma
proposta do PCP para a renegociação da dívida
, debate sobre as consequências da permanência no euro e sobre a
saída da moeda única e controlo público da banca.
O Banco de Portugal não passa na realidade de uma
delegação do BCE, a "regulação" é
semelhante quer o governador seja do PS, como Vítor Constâncio ou
Carlos Costa, um banqueiro escolhido em consenso, que se mostrou mais
preocupado na flexibilização laboral do que em fazer o que lhe
competia no caso BES. E como é possível colocar à frente
de um órgão de regulação (o que quer que isto
queira dizer) gente que convictamente é pela desregulação
dos "mercados"?!
3 - CONSENSOS SOBRE A UE
Quando o PS diz que os problemas do país se têm que resolver na
UE, a conclusão está inserida nas próprias premissas da
questão: os nossos problemas radicam na UE e nos absurdos tratados que
pressurosamente assinaram, escudando-se em promessas totalmente infundadas e
falsas. Como na história do Pinóquio, a festa dos meninos foi
só para os levar a transformarem-se em animais de trabalho.
Tudo o que poderia beneficiar Portugal, mesmo tímidas medidas como a
intervenção pública na economia, o controlo da banca,
fiscalização financeira, choca com as imposições
dos tratados europeus. O consenso da troika interna está patente nas
profissões de fé europeístas e de "continuarmos a
honrar os nossos compromissos".
Se o primeiro-ministro "passa por ser na UE o campeão da
união bancária", o PS pede meças com os seus impulsos
federalistas, de reforço do Parlamento Europeu e de dotar a Zona Euro de
capacidade de governação própria ao nível
legislativo e executivo.
Defesa justificada com argumentos que as políticas em curso totalmente
negam: promover os Direitos Humanos (ex. Líbia, Síria,
Ucrânia
), uma mundialização sustentável e com
regras (as da finança predadora!), o fim dos paraísos fiscais,
(livre transferência de capitais e "competitividade fiscal").
PSD e CDS entregam o país aos interesses monopolistas e aos predadores
financeiros com o argumento de "deixar a economia funcionar" (TAP,
PT, Estaleiros de Viana, etc.). O PS afirma querer na UE o primado da
política sobre os interesses financeiros. Pelos vistos o PS tem muitas
ideias sobre a política europeia, mas concretamente quase nenhumas sobre
medidas para Portugal.
A posição relativamente à Grécia mostra outro
consenso apenas mascarado com palavras diferentes. O primeiro-ministro, como
caixa-de-ressonância da oligarquia alemã, vai mais longe que o
suserano alemão e disse que a posição do governo grego era
"uma criancice" (o PR não lhe ficou a trás). Esta
linguagem da direita troglodita foi depois objeto de ajustes, mas mostra bem o
nível de decadência da UE. António Costa, mais comedido
disse que apoiava as negociações da Grécia "dentro
das regras europeias". Puro oximoro! Um absurdo, pois foram estas
"regras" que levaram Portugal, a Grécia, a Itália, a
Irlanda, ao descalabro e estão a levar a França e a
Bélgica.
Quando o BCE tem 60 000 M por mês (!) para a finança
predadora prosseguir a especulação, mas chantageia miseravelmente
o povo grego, está tudo dito acerca das ilusões do PS sobre a UE
e suas instituições, mas também do alcance da
social-democracia (mesmo a do Syriza) acerca da sua capacidade e
determinação quanto a "transformações" a
favor dos povos na UE.
As suas propostas do PS radicam, na ilusão de que "ter uma
voz" na "Europa" (a sua) irá mudar alguma coisa.
Não quer entender que a UE, que não existe como tal, o que existe
é um espaço neocolonial de repressão social, submetido ao
imperialismo alemão. Basta escutar o ministro das Finanças
alemão, Schauble, para compreendermos o que há a esperar da dita
UE.
Tudo indica que depois de uma série de quiméricas promessas como
no passado, o PS vai fazer como na rábula da
"Ida à guerra"
do ator Raul Solnado. Pergunta-lhe o comandante:
Então onde está o prisioneiro?
Ele não quis vir, meu capitão
4 OUTROS CONSENSOS
As divergências entre PS e PSD-CDS não são as
políticas da troika, mas de se ir "para além da
troika". Os comentários sobre "ir mais longe que a
troika" tendo em vista os resultados e as sucessivas revisões
não passam de "diálogos do absurdo". Ficariam bem em
Ionesco, mas que o povo português dispensaria.
Espalha-se a ilusão de que na UE, no dizer do eurodeputado Carlos
Zorrinho (Z-News, 07/janeiro/2015), "finalmente o mito da austeridade
regeneradora caiu. Abriu-se um novo ciclo. É preciso que os recursos
sejam colocados ao serviço da economia real e não da
especulação financeira." Tudo isto sem pôr em causa
"as regras da UE".
As políticas conjuntas da "troika interna" de que faz parte no
campo laboral a direção da UGT, levaram a uma queda brutal da
contratação coletiva. Há 15 anos realizavam-se entre 350 a
400 convenções por ano abrangendo 2 milhões de
trabalhadores, em 2013, apenas 97 convenções abrangendo 186 mil
trabalhadores (CGTP). A cartilha das regras da UE torna-nos um país de
baixos salários, precariedade, sem crescimento económico, vergado
à escravidão do endividamento.
PS e PSD-CDS competiram em "flexibilizar" as leis laborais,
revisões atrás de revisões para satisfazer os
"mercados" e ser atrativo para o capital, mas que para o FMI e UE
nunca são suficientes mostram uma completa
distorção quanto aos interesses nacionais: não é o
capital que tem de se tornar vantajoso para o país é o
país que tem de se tornar vantajoso para o capital.
Não adiantam vagas intenções que nada de essencial mudam,
mascarando a realidade com promessas de diminuir o ritmo da austeridade e
interpretações "inteligentes" e
"flexíveis" de tratados iníquos e estúpidos (por
impraticáveis democraticamente) confiando na boa vontade dos oligarcas.
Os três partidos estão também unidos na defesa de um
inconcebível tratado em termos de soberania e desenvolvimento, a
Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento
[2]
, que contraria tudo o que o PS diz defender, colocando os países na
situação de colónia das transnacionais. A perda de
soberania de que estes três partidos são responsáveis, leva
à inviabilidade da democracia, anulando a vontade e os interesses
populares pela intimidação e pela chantagem.
Na interpelação ao ministro Pires de Lima, um deputado do PS diz:
"é necessário que o PSD e CDS deixem de falar em 2011, temos
é de pensar para além de 2015". O ministro Poiares Maduro
deixa claro aquilo com o que o PS pode contar: "os portugueses já
não aceitam facilmente políticos que mudam o comportamento devido
à proximidade das eleições. O Portugal 2020 nunca pode ser
planeado em função das eleições"
[3]
É este discurso fascizante e dentro das regras europeias
que o PR de forma melíflua também faz para garantir a
alternância neoliberal com o PS.
Dirigentes e deputados do PS não se afastam deste "paradigma"
e defendem um consenso com PSD após as eleições.
Para o PSD-CDS a doutrina não difere da defendida por Mussolini "a
verdadeira história do capitalismo começa agora (...) há
que abolir o Estado coletivista, tal como a guerra nos transmitiu pela
necessidade das circunstâncias e voltar ao estado manchesteriano",
ou seja disciplinamento da força de trabalho e liberdade total para os
capitalistas. Isto explica a tendência do liberalismo a derivar rumo ao
fascismo.
[4]
O que não impede largos sectores responsáveis no PS de
abertamente defenderem um governo ligado ao PSD, o "bloco central".
O objetivo do PS é instituir "um capitalismo bom", "de
rosto humano". Os erros, as crises, a corrupção (os crimes
ignoram-se), são devidos a comportamentos inadequados e
incompetência. Querer mudar comportamentos sem alterar as causas que os
motivam não passa de alquimia política. E a alquimia como
se sabe era um misto de superstição e escroqueria.
A alternância comprometeu o futuro do país. Romper com estas
políticas implica que seja posta em prática uma política
de esquerda e a patriótica defesa da nossa soberania, em suma, que o
socialismo tenha lugar.
Notas
[1]
A União Europeia e o Euro serviram para enriquecer a Alemanha
, Eugénio Rosa,
[2]
TTIP, O tratado de comércio livre EUA-UE: a grande golpada
, Vaz de Carvalho,
[3] Poiares Maduro,
Diário Económico,
18/02/2015
[4]
Origem e declínio do capitalismo
, Jorge Beinstein,
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|