Origem e declínio do capitalismo
Retorno à origem
Em certos rituais funerários de tempos remotos os mortos eram colocados
em posição fetal. Encontraram-se por exemplo restos de homens do
neandertal sepultados dessa maneira com a cabeça a apontar para o Oeste
e os pés para o Leste. Algumas hipóteses antropológicas
sustentam que essa disposição do cadáver se relacionava
com a crença no renascimento do morto. A civilização
burguesa à medida que avança a sua senilidade parece reiterar
esses ritos. Preparando-se para o desenlace final aponta a cabeça para a
sua origem ocidental e vai acomodando o corpo degradado procurando recuperar as
formas pré-natais, tentando talvez assim conseguir uma vitalidade
irremediavelmente perdida.
O fim e a origem aparentam convergir, mas o ancião não consegue
voltar ao passado e sim, antes, reproduzi-lo de maneira grotesca e decadente.
Rumo ao final do seu percurso histórico o capitalismo volta-se
prioritariamente para as finanças, o comércio e o militarismo no
seu nível mais aventureiro
"copiando"
seu início quando o Ocidente conseguiu saquear recursos
naturais,sobre-explorar populações e realizar genocídios
acumulando desse modo riquezas desmesuradas em relação ao seu
tamanho. Isso lhe permitiu expandir seus mercados internos, investir em novas
formas produtivas, desenvolver instituições, capacidade
científica e técnica. Em suma, construir a
"civilização" que levou Voltaire a dizer:
"a civilização não suprime a barbárie,
aperfeiçoa-a".
A decadência do mundo burguês de certo modo imita a sua origem, mas
não o faz a partir de um protagonista jovem e sim decrépito e num
contexto completamente diferente: o da gestação era um
planeta
rico em recursos humanos e naturais disponíveis, virgem do ponto de
vista dos apetites capitalistas. O actual é um contexto saturado de
capitalismo, com fortes espaços resistentes ou pouco manejáveis
na periferia, com numerosos recursos naturais decisivos em rápido
esgotamento e um meio ambiente global desarranjado.
Fim de ciclo. Decadência: do capitalismo industrial ao
parasitismo.
Toda a história do capitalismo é atravessada por numerosas crises
de curta, média e longa duração, de
gestação, de nascimento, de crescimento, de maturidade, de
decadência, sectorial, pluri-sectorial, geral, etc. A actual conjuntura
global costuma ser descrita empregando o termo
crise
(do neoliberalismo, financeira, sistémica, do capitalismo, de
civilização...). Trata-se realmente de uma crise ou de algo mais?
Encontramo-nos perante uma turbulência devastadora ou não
tão truculenta mas anunciadora de uma nova ordem mundial capitalista, ou
seja, de uma regeneração sistémica ou antes do canto do
cisne de uma civilização caduca? No primeiro caso cabia falar de
crise de reconversão, de
destruição criadora
no sentido shumpeteriano, no segundo poderia em princípio ser definida
com uma só palavra: decadência.
Os conceitos de
crise
e
decadência
são ambíguos, o seu uso não resolve completamente as
interrogações que coloca a descrição da realidade
actual. Em geral falamos de
crise
quando enfrentamos uma turbulência ou perturbação
importante do sistema social. O conceito de
decadência
costuma ser associado à ideia de irreversibilidade, de
trajectória iniludível, de caminho mais ou menos lento,
acidentado ou calmo, rumo à extinção, rumo ao final.
Contudo, a história mostra tanto longos processos de declínio que
culminam com o fim de uma sociedade ou civilização como
fenómenos vistos como decadências mas que em algum momento se
convertem em renascimento, no início de uma segunda juventude. Sobretudo
durante certos períodos de transição cultural onde se
combina o velho dominante mas ainda hegemónico com o novo ascendente
ainda que suportando derrotas, fracassos próprios das experiências
demasiado jovens, demasiado dependentes do
"senso comum"
estabelecido pelas antigas verdades capazes de sobreviver durante muito tempo
ao seu crescente divórcio com a realidade.
Muitas vezes uma crise prolongada atravessada por turbulências que se
vão sucedendo umas após as outras formando uma continuidade de
calamidades surge como um mundo que se arruína quando pode chegar a ser
a oficina de forja de uma nova era. A chamada
"longa crise do século XVII"
que afectou a Europa e que se foi convertendo gradualmente na base de
lançamento planetário da modernidade ocidental foi vista por boa
parte dos seus contemporâneos mais lúcidos como uma época
de desastres e decadência universal.
Essa visão prolongou-se até estar bem avançado o
século XVIII, quando a emergência do
iluminismo,
da ideologia do
progresso,
do culto à
Razão,
combinaram-se nas elites do Ocidente com o fantasma da decadência,
simbolizado pelo declínio do império romano. Em 1734 Montesquieu
publicava suas
"Considerações acerca das causas da grandeza e
decadência dos romanos"
e curiosamente, em 1776 na Inglaterra, onde começava a
Revolução Industrial enquanto Adam Smith publicava a primeira
edição de
"A riqueza das nações"
estabelecendo as bases teóricas do capitalismo liberal nascente,
marcando o avanço optimista do racionalismo burguês, Edward Gibbon
publicava a primeira edição da sua
"História da decadência e queda do Império romano"
dilatando o espaço das visões pessimistas das elites
tradicionais da Europa angustiadas pelo declínio do universo cultural e
institucional das aristocracias.
Não é excessivo recordar aquilo que poderíamos qualificar
como obsessão e nostalgia plurisecular recorrente da cultura ocidental
quanto à grandeza da Roma imperial, da sua duradoura "pax
romana" ou dominação "universal" (do
"universo" colonial possível nessa época com centro no
Mar Mediterrâneo). Desde a tentativa de restauração do
império vários séculos depois do seu derrube com a
proclamação em Roma de Carlos Magno no ano 800 (e em
consequência do extinto
Império Romano do Ocidente
), seguindo com o
Sacro Império Romano Germânico
(o "Primeiro Reich") no século posterior, chegando aos
delírios imperiais-romanos do imperador Napoleão, continuando com
o
Kaiserreich
("Kaiser" derivado do César romano) ou "Segundo
Reich" da Alemanha a partir de 1871 radicalizado a seguir por Hitler como
"Terceiro Reich", a Itália fascista proclamada por Mussolini
como Terceira Roma (a
"Terza Roma" herdeira da Roma Imperial e da Roma papal
) e naturalmente falangistas, nazi e fascistas a saudarem com o braço ao
alto, a saudação romano imperial, para chegar finalmente (por
agora) às elucubrações durante a década passada
acerca da
Pax Americana
imaginada pelos falcões de George W. Bush como uma espécie de
reedição em escala planetária do Império Romano tal
como propuseram na altura textos influentes no primeiro círculo do poder
dos Estados Unidos autores como Robert Kaplan
[1]
.
Mas a nostalgia imperialista não pode prescindir do temor oculto que
esconde por baixo da euforia, porque o esplendor escravocrata anunciava a sua
decadência, seus luxos parasitários que resultavam da incessante
expansão do sistema converteram-se no veneno mortal, a droga alentou a
sua ruína. Como assinalava Juvenal:
"O luxo, mais insidioso que o inimigo estrangeiro, apoia-nos sua
mão pesada, vingando o mundo que conquistámos"
[2]
. A extravagante literatura que proliferou nos princípios do
século XXI alentada pelo triunfalismo dos falcões do
Império desenvolvendo paralelos entre Roma (dos césares) e
Washington (de Bush) fê-lo em paralelo com a aparição de
numerosos textos relativos à decadência romana muitos deles
a estabelecerem semelhanças com as potências ocidentais,
principalmente os Estados Unidos.
A longo crise do século XVII foi uma enorme trituradora histórica
de velhas estruturas e mentalidades, gerando o declive das monarquias
absolutistas do Ocidente e mais adiante favorecendo a ascensão do
capitalismo industrial a partir de uma
crise de nascimento,
do parto turbulento, dramático, do mundo moderno, entre fins do
século XVIII e princípios do XIX, marcado pela
revolução industrial na Inglaterra, pela Revolução
Francesa, pelas guerras napoleónicas, pela Restauração,
etc.
Muito tempo depois a Europa viveu uma crise relativamente longa entre 1914 e
1945. Foi pensada pelos bolcheviques como o declínio universal do
capitalismo que abrir as portas à sua superação
revolucionária, socialista-comunista. Na realidade, tratou-se de um
processo complexo que combinava elementos incipientes de decadência,
significativos mas insuficientes para forma constituir uma avalancha global
imparável, com outros de recomposição, de rejuvenescimento
como a intervenção estatal na economia, a massa de
invenções, de ideias técnicas que se foram transformando
em inovações abrindo um novo horizonte social e sobretudo a
presença dos aparelhos militares em expansão conjugando
potência e acção destrutiva com multiplicadores do consumo,
o investimento e a renovação tecnológica da
produção civil (keynesianismo militar).
Os comunistas dos anos 1920 subestimavam a capacidade de
recomposição do mundo burguês mas a extrema-direita, os
fascistas dessa época, super-estimavam-na pois atribuíam-lhe uma
esperança de vida demasiado prolongada. É assim que Mussolini
proclamava triunfalista num artigo de Janeiro de 1921:
"o capitalismo está agora apenas no início da sua
história",
capítulo no qual o novo autoritarismo fascista projectava cumprir um
papel decisivo, refundador, recuperando as raízes mais brutais do
sistema. O Duce assim o sintetizava perante a Câmara de Deputado italiana
alguns meses depois:
"a verdadeira história do capitalismo começa agora...
há que abolir o Estado colectivista, tal como a guerra nos transmitiu
pela necessidade das circunstâncias e voltar ao estado
manchesteriano"
[3]
. Disciplinamento ditatorial da força de trabalho e liberdade total para
os capitalistas.
Contudo, o sistema não podia regressar ao século XIX. Seus
bloqueios estruturais obrigavam-no a utilizar a intervenção
estatal na economia para desenvolver novos espaços de
rentabilização como a indústria de guerra e as grandes
obras públicas. O que se começava a instalar não era o
velho capitalismo liberal do século XIX e sim a sua tábua de
salvação militarista, intervencionista, que na sua primeira etapa
europeia durante os anos 1920-1930 assumiu a forma de mutação
ideológica do liberalismo para o totalitarismo fascista sob o
guarda-chuva legitimador da "comunidade nacional" esmagando os
"interesses sectoriais"
dos de baixo. Como assinalava Horkheimer,
"a ideia de comunidade nacional (a "Volksgemeinschaft" dos
nazis), erguida como objecto de idolatria não podia em última
análise ser sustentada senão por meio do terror. Isto explica a
tendência do liberalismo a derivar rumo ao fascismo"
[4]
.
A recomposição estatista (keynesiana) do capitalismo central,
emergida da Segunda Guerra Mundial, teve uma era dourada de apenas um quarto de
século (aproximadamente 1945-1970). A seguir iniciou-se uma
sucessão de turbulências que duram até o presente.
Mais adiante, a partir dos anos 1980, surgiu o que os meios de
comunicação anunciavam como
recomposição neoliberal
do sistema. Contudo, os dados frios demonstram que para além do barulho
mediático optimista se verificava uma deterioração
sistémica que se aprofundava com o decorrer dos anos. As taxas de
crescimento produtivo global, principalmente nos países centrais,
foram-se reduzindo em termos de tendência a longo prazo, a economia
mundial foi-se financiarizando até que em finais da primeira
década do século XXI a massa financeira global equivalia a vinte
vezes do Produto Bruto Mundial. Os estados, as empresas e os consumidores dos
países ricos endividavam-se vertiginosamente até ficarem
esmagados pelas dívidas.
Esta longa degradação tem todas as características de uma
decadência
lenta
se a medirmos segundo os ritmos do século XX. Trata-se de uma
trajectória de aproximadamente quatro décadas cujo arranque pode
ser situado no período 1968-1973/74. A partir daí a
expansão do capitalismo global combina-se com a
deterioração das suas componentes fundamentais que vão
sendo encobertas pelo parasitismo financeiro e consumista, por uma
militarização desestruturante e onde a dinâmica
tecnológica está no centro de uma depredação sem
precedentes dos recursos naturais. O percurso não atinge um
ponto de regeneração
e sim, muito pelo contrário, por volta dos anos 2007-2008-2009
produz-se um verdadeiro salto qualitativo e a decadência radicaliza-se
convertendo-se num fenómeno de auto-destruição.
Decadência geral do sistema e não
crise longa
nem
de crescimento
como ocorreu na Europa no século XVII e entre fins do século
XVIII e princípios do XIX. Tão pouco aparecem, como no
período 1914-1945, manifestações de declínio
mescladas com outras de recomposição marcadas pelo
declínio da Europa centro-ocidental e a ascensão dos Estados
Unidos.
Em relação a este último é necessário
assinalar que do ponto de vista da dinâmica do capitalismo mundial a
China dos princípios do século XXI não é o
equivalente dos Estados Unidos da primeira metade do século XX. A
economia chinesa é periférica em relação às
potências centrais, seu desenvolvimento depende da sua estrutura
industrial-exportadora atada aos seus principais clientes: os Estados
Unidos, a
União Europeia e o Japão, compradores do grosso das suas
exportações que constituem aproximadamente a metade da sua
produção industrial e em consequência cerca de 25% do seu
Produto Interno Bruto.
Ela o faz a partir da sua mão-de-obra barata, o que permite a essas
potências sobre-explorar de maneira directa e indirecta uns 230
milhões de operários industriais e um leque ainda mais vasto de
trabalhadores chineses. Acumula mais de 3,5 milhões de milhões de
dólares de reservas, montanhas de papeis de valor futuro incerto, o
endividamento estatal e empresarial cresce vertiginosamente e sua economia
está plenamente integrada no emaranhado financeiro global que provoca
impacto no seu interior, gerando bolhas especulativas, distorções
inflacionárias, corrupção institucional
[5]
.
O seu desinchar actual, em acordo com o estancamento dos centros imperiais,
é inevitável e as tentativas das autoridades para
suavizá-lo, contê-lo dentro de limites manejáveis,
chocam-se cada vez mais com uma configuração social elitista que
bloqueia a expansão do mercado interno. A isto acrescenta-se a rigidez
de estruturas transnacionais transnacionalizadas, incorporadas a redes
comerciais e financeiras globais, tecnologicamente modeladas pela procura dos
países ricos cuja reconversão à procura local constitui
uma espécie de quadratura do círculo.
Enquanto isso a China saiu da existência marginal e miserável a
que a havia condenado a decadência do velho império e a
colonização ocidental e hoje dispõe de um potencial
industrial, científico-tecnológico, militar, etc (produto dos
processos de desenvolvimento iniciados há pouco mais de seis
décadas) que a converte num protagonista decisivo das futuras
turbulências internacionais.
A visão de uma China "
mais desenvolvida"
pode ser estendida ao conjunto da periferia, em especial seus grandes
países como a Índia, Brasil ou Rússia e a outros de menor
porte como a África do Sul, Argentina ou Venezuela, o que conduz
inevitavelmente em direcção ao campo das ilusões em torno
da renovação do capitalismo global a partir da periferia, do seu
arranque positivo em relação à decadência ocidental
(e japonesa). Mas os dados sobre a China, Índia, Brasil, Rússia,
etc, mostram a integração dessas economias à rede
financeira global centrada nos espaços especulativos do Ocidente. E
apesar de ser certo que as economias periféricas emergentes continuam a
crescer, não é menos certo que o seu crescimento se vai
desinchando. Isso acontece com uma defasagem temporal que se vem sustentando
durante o último lustro, mas que poderia ser corrigida proximamente de
maneira abrupta.
Ainda que este esclarecimento deva ser associado ao facto de que se verificou
uma mudança significativa na geografia económica mundial,
sobretudo ao longo da última década. Portanto, agora uma parte
significativa da periferia apresenta níveis relativos de desenvolvimento
industrial, militar, urbano, etc que a tornam menos submissa à
hierarquia global tradicional do capitalismo, mais independente do ponto de
vista político. Medida em
"paridade de poder de compra",
a soma dos PIB de três países periféricos Brasil,
Índia e China hoje é equivalente à das grandes
economias ocidentais (Inglaterra, França, Canadá, Itália,
Alemanha e Estados Unidos) e o comércio entre os países do Sul
é quase igual ao que existe entre os países do Norte.
O futuro agravamento da deterioração do capitalismo global abre
portanto importantes espaços de autonomia na periferia, que agora conta
com bases produtivas e culturais que lhe poderiam permitir atravessar com maior
facilidade as barreiras burguesas e defender-se de eventuais agressões
externas. Pensemos por exemplo na onda de movimentos sociais e nos crescimentos
produtivos da América Latina na última década, na China
passando de 50 milhões para 230 milhões de operários
industriais num quarto de século, numa periferia onde as
comunicações expandiram-se exponencialmente: a
massificação da Internet em princípios da década
passada era uma marca característica dos países centrais, mas
actualmente na periferia os utilizadores de Internet superam as 1500
milhões de pessoas contra pouco mais de 600 milhões nos
países centrais.
Isto nos leva ao primeiro indicador da decadência global: o
declínio sem substituição à vista do centro
dominante (ocidental) do sistema. A integração (política,
militar, financeira, etc) das grandes potências capitalistas em torno dos
Estados Unidos moldou uma espécie de
imperialismo colectivo
que só um grau muito avançado da decadência poderia chegar
a desfazer. Por outro lado, nenhuma das economias importantes da periferia
está em condições de ser converter em super-potência
imperialista planetária. Fica colocada a possibilidade teórica de
um capitalismo mundial sem centro imperialista, ou seja, sem um amo capaz de
impor regras de jogo ao conjunto do sistema diante do qual estas regras seriam
o resultado de uma espécie de idílica harmonia universal. Desse
modo, uma formação social essencialmente autoritária
conseguiria funcionar de modo democrático no plano internacional
estabelecendo regras de jogo minimamente estáveis: um
verdadeiro milagre
histórico. A outra alternativa seria a do funcionamento do sistema sem
regras de jogo estáveis a reproduzir-se positivamente em meio ao caos:
um milagre histórico ainda maior.
A este indicador decisivo é possível acrescentar outros como a
tendência (desde os anos 1970 até o presente) à
desaceleração do crescimento global, a hipertrofia
(hegemónica) as redes financeiras cuja expansão entrou no
nível da metástase invadindo-degradando a totalidade do sistema
global, a evidência de rendimentos produtivos decrescentes da
revolução tecnológica que submetida à
dinâmica do capitalismo parasitário vai-se convertendo num factor
de destruição líquida de forças produtivas, o
estancamento ou declínio na extracção de recursos naturais
não renováveis decisivos (como por exemplo o petróleo), a
decadência do estado burguês, sua transformação nos
países centrais num aparelho manipulado por bandos mafiosos, a
desintegração social no centro, principalmente nos Estados Unidos.
As diferentes "crises" das últimas quatro décadas ficam
portanto inscritas num processo de decadência sistémica de longa
duração. A última crise iniciada em 2007-2008 inaugurou
uma etapa em que a decadência experimenta um gigantesco salto
qualitativo. A tendência iniciada nos anos 1970 para a
redução das taxas de crescimento económico global
começa a bater no piso: o fatídico crescimento zero. Ele
já chegou para a União Europeia, para o Japão que depois
de atravessá-lo agora navega na recessão e para os Estados
Unidos, esgotam suas últimas artimanhas financeiras. As
reactivações são cada vez mais custos e menos eficazes.
Os países centrais já se encontram a percorrer uma nova etapa em
que o desemprego em grande escala, a concentração acelerada de
rendimentos e o desmantelamento de tecidos produtivos passam a ser aspectos
"normais"
da sua vida económica e onde os discursos acerca de uma futura
recomposição perderam toda a credibilidade. O que parecia ser uma
fanfarronada de especialistas quando em Agosto de 2012 o banco francês
Natixis anunciava que
"a crise na zona euro pode durar até vinte anos"
surge hoje como um prognóstico relativamente realista
[6]
. O que não parece realista é supor que a
"zona euro"
poderia sobreviver como espaço monetário comum durante duas
décadas de contracção económica permanente, salvo
se a referência futurista à "zona euro" limitar-se ao
espaço geográfico.
É necessário ir mais além da economia integrando-a
à totalidade social, o que nos permite descrever estratégias,
interacções perversas entre estruturas militares, financeiras,
mediáticas, religiosas, parlamentares, etc das potências centrais,
ou seja, mecanismos de reprodução do sistema cujos manipuladores
submergem-se no pântano do desespero, da psicologia do náufrago
sem esperança. O capitalismo global bloqueado do ponto de vista
económico elabora e põe em execução
estratégias político-militares de rapina periférica
destinadas a apropriar-se e explorar intensamente até ao esgotamento o
conjunto de recursos naturais do planeta e espremer até a sua
extinção os mercados periféricos compensando assim a
redução dos benefícios produtivos e dos mercados internos
centrais. A apontar contra a maior parte do território global e uma
população de vários milhares de milhões de pessoas
que o habitam, a referida estratégia ameaça provocar o maior
desastre humano e ambiental da história.
Seria a liquidação a periferia, devorada numa poucas
décadas. Mas a história do capitalismo, desde a sua origem,
é a da articulação imperialista entre centro e periferia.
Sendo esta última a base central na reprodução ampliada da
civilização burguesa, a sua destruição integral
equivaleria à anulação de um pilar decisivo do sistema.
Mais ainda: se visualizarmos o "centro" e a
"periferia"
como formas específicas da totalidade capitalista mundial (não
há desenvolvimento no centro sem subdesenvolvimento na periferia) a
anulação do subúrbio global, sua
transformação num caos não é o esmagamento de uma
realidade externa
e sim de um
espaço inferior interno
estreitamente inter-relacionado com os níveis superiores do sistema
global através de um conjunto de redes visíveis e
invisíveis, de infinitas inter-penetrações. A
destruição [portanto] é a auto-destruição do
mundo burguês, da sua história, de subsistemas decisivos para a
sua reprodução.
A destruição do Iraque, do Afeganistão, da Líbia,
da Síria, do México e das próximas vítimas pode
chegar a ser pensada pelos membros mais duros das elites imperiais como uma
auto-destruição parcial, sacrifício necessário para
a sobrevivência do sistema. Nesse caso, encontramo-nos perante um
pensamento delirante, uma profunda crise de percepção da
realidade cindida artificialmente entre dois planetas: o
próprio,
humano, desenvolvido, e o
outro,
simiesco, inferior, subdesenvolvido, condenado a perecer. Mas as
estratégias imperiais não se limitam a circular pelo mundo
imaginário, golpeiam o mundo real e ao fazê-lo desestruturam o
sistema na sua totalidade: a destruição da periferia
converte-se
em auto-destruição do capitalismo como totalidade universal.
As origens: do parasitismo ao capitalismo industrial
O Ocidente iniciou sua corrida imperial com uma primeira arremetida que
terminou em fracasso. Ao despertar o segundo milénio produziram-se
paralelamente fenómenos cuja interacção criou as bases
para uma grande transformação social. As cruzadas foram a
primeira tentativa séria, em grande escala, de ocupação e
saqueio colonial de um espaço rico e o seu longo desenvolvimento
engendrou mudanças e ampliações significativas das
actividades militares. Por outro lado, redes de mercadores e banqueiros
começaram a instalar-se implantando embriões de capitalismo.
Na mesma época, impulsionado por um sector
"modernizador"
da igreja, os monges cisterciences, desenvolveu-se um conjunto de
inovações técnicas que alguns historiadores qualificam
como
"primeira revolução industrial".
Elas causaram transformações da produção
agrícola em espaços limitados da Europa ocidental
(introdução do moinho hidráulico, do arado
metálico, difusão de melhoras de sementes, etc). Também
foram dados importantes passos estabelecendo elementos embrionários para
futuros desenvolvimentos da ciência moderna. Um dos seus capítulos
decisivos foi a dessacralização da "natureza", sua
percepção como realidade externa, hostil mas que podia ser
racionalizada, controlada, explorada, base das grandes revoluções
tecnológicas do capitalismo... e do desastre ambiental que agora
experimentamos
[7]
.
Encontramo-nos assim perante o desdobramento de uma grande
transformação cultural apoiada no militarismo colonial e em
emergências comerciais e financeiras, engendrando desenvolvimentos
técnico-produtivos, ideológicos, etc. A ascensão do
parasitismo colonial, militar, comercial e financeiro começava a
produzir modernidade burguesa.
Mas as cruzadas foram derrotadas. A expansão colonial em
direcção ao rico Médio Oriente foi contrariada pela
resistência das vítimas, frustrando o saqueio. Por outro lado, os
esforços e êxitos iniciais dos saqueadores havia desordenado a sua
retaguarda: a
cristandade
ocidental (o espaço imperialista). A combinação desses
processos gerou no Ocidente um retrocesso produtivo geral, lutas intestinas, a
deterioração do sistema alimentar e do estado de saúde da
população. Tudo isso culminou em meados do século XIV com
a
"peste negra",
epidemia que se expandiu facilmente numa sociedade frágil atravessada
pela fome e causou uma gigantesca queda demográfica.
Esse mega desastre significou a sepultura do feudalismo que vinha sendo
desestabilizado pela sua expansão interna e externa. Isso incluiu o seu
sistema militar: o ano 1348 é o do início da
peste negra
mas em 1346 verificou-se a batalha de Crecy onde a cavalaria francesa com as
suas imponentes e pesadas armaduras, força blindada aparentemente
invencível, foi derrotada pela infantaria inglesa assinalando o ocaso da
velha configuração social
[8]
[NT]
.
Mas a segunda arremetida colonial teve êxito. A sucessão de ondas
de pilhagem e controle da periferia iniciada no século XV culminou,
quase quinhentos anos depois, com a dominação total do planeta.
Os pilares sobre os quais se instalou a modernidade foram em primeiro lugar a
depredação periférica que potenciou a expansão
comercial e financeira e, apoiado por esta última, o desenvolvimento das
estruturas militares, sua renovação técnica, parte
essencial do desenvolvimento de estados despóticos. Foi esse complexo
colonial, estatal, militar, comercial e financeiro o pai da modernidade
burguesa, acumulando riquezas, destruindo estruturas sociais internas e criando
mercados prósperos, açambarcando terras, expulsando camponeses
para as cidades, formando desde fins do século XVIII massas de pobres
urbanos, mão-de-obra barata do capitalismo industrial. Historicamente
não foi o capitalismo produtivo (e a cultura burguesa em geral) o
berço do estado moderno, do militarismo e das finanças e sim
exactamente o inverso.
Com toda razão, Robert Kurz referia-se às
"origens destrutivas do capitalismo"
colocando o desenvolvimento militar como o disparador da modernidade
[9]
. O
"Arsenal de Veneza",
fábrica militar avançada do século XVI sem cuja
existência é impossível explicar o resultado da batalha de
Lepanto, ou seja, a vitória estratégica do Ocidente sobre o
Império Otomando, foi uma das escolas mais importantes de
organização industrial. Suas inovações em
matéria de divisão e programação do trabalho
assentaram as bases da produção capitalista.
Mas junto ao senhor da guerra, à monarquia despótica,
encontrava-se o banqueiro, por sua vez ligado a negócios comerciais.
Exemplo: a
Casa Fugger,
facilitando fundos ao imperador Carlos I e seu descendente Felipe II,
titulares de um vasto sistema colonial.
A revolução industrial chegará mais de dois séculos
depois, disposta sobre um enorme
excedente (surplús) histórico
[10]
que foi não só acumulação de riquezas coloniais
como também disciplinamento social por parte do estado e do seu
dispositivo militar.
Desta vez o parasitismo pôde parir capitalismo com tanto êxito que
conseguiu ocultar a memória das suas origens e desse modo instalar
armadilhas ideológicas destinadas não só a construir
legitimidade produtivista como também para confundir tanto os seus
partidários como os seus inimigos.
Uróboros.
O
mito de uróboros,
da serpente que se devora a si mesma atravessa várias
civilizações desde a Grécia Clássica até o
Antigo Egipto, chegando ao Ocidente medieval. Fundamenta-se na ilusão
conservadora de que a serpente começa devorando sua cauda e ao
fazê-lo vai regenerando seu próprio corpo num jogo infinito onde o
começo é ao mesmo tempo o fim e vice-versa, consumando-se o
eterno retorno, a imortalidade do mundo. O mito pareceria encontrar uma
referência concreta em casos observáveis desse animal a
alimentar-se e suicidar-se ao mesmo tempo. O espectáculo é
aterrador.
A confrontação entre o mito e a sua referência real sugere
a reflexão em torno do que poderia ser qualificado como "armadilha
de uróboros": a civilização burguesa, tal
como outras
civilizações anteriores em decadência, considera que
devorar uma parte mais longínqua, menos próxima da cabeça
imperial, recupera forças e dinamiza seu funcionamento. Não
experimenta nenhuma sensação de horror, não se angustia e
sim, muito pelo contrário, provisoriamente sente-se melhor, melhora a
sua auto-estima fundada no esmagamento e pilhagem dos fracos. Para que se ponha
em marcha e avance o processo de suicídio é necessário que
o suicida realize uma espécie de ruptura psicológica com a parte
do seu corpo que está a ser sacrificada. A cauda deixa de ser cauda ou,
talvez, passa a ser a cauda de outro animal. A periferia deixa de ser periferia
do sistema e converte-se em outro universo, seus habitantes deixam de ser seres
humanos. A realidade afasta-se da cabeça, a crise de
percepção converte-se em loucura suicida.
O fenómeno tem antecedentes na história do sistema, nos seus
mecanismos de reprodução desde as suas origens mais
longínquas, atravessando suas etapas mais prósperas.
Dito de outro modo, debaixo das revoluções culturais e produtivas
da modernidade, do
progresso
no seu sentido mais amplo, podemos encontrar pistas que nos conduzem ao actual
processo de auto-destruição sistémica global. A
dissociação homem-natureza, fundamento das
revoluções técnicas da modernidade, converte-se finalmente
em degradação ambiental planetária. A
exploração imperialista da periferia, interacção
desenvolvimento-subdesenvolvimento como motor histórico da
expansão global de forças produtivas tende agora ao
extermínio de sociedade e recursos naturais, as finanças
impulsionadoras de mercados e investimentos industriais transforma-se em
devoradora de tecidos produtivos e capacidades de consumo, etc.
O mito de
uróboros
exprimiu-se na tradição europeia-nórdica como
Jörmungander,
uma gigantesca serpente cujo crescimento, numa das versões do tema,
leva-a a rodear completamente o planeta até chegar à sua
própria cauda iniciando-se a autofagia apresentada como o resultado
inevitável do êxito do processo expansivo. Este encontra o limite
superior, o máximo nível de expansão, não como
fronteira externa ao monstro e sim como auto-bloqueio. A solução
para a tragédia não passa por persuadir a serpente, totalmente
decidida a seguir o rumo escolhido inscrito na sua dinâmica de
desenvolvimento, e sim na metamorfose a transformação
radical da besta num ser diferente. Não há outro capitalismo
possível, o que abre a perspectiva do pós-capitalismo e instala
dramaticamente a sua necessidade histórica.
(1) Robert Kaplan, "
El retorno de la Antigüedad"
, Ediciones B, Barcelona, 2002.
(2) Juvenal, Satiras, Editorial Gredos, Madrid, 1991, Satira VI.
(3) Angelo Tasca, "El nacimiento del fascismo", pp. 152-153,
Crítica, Barcelona, 2000.
4)
Max Horkheimer, "Éclipse de la Raison",
pp. 29-30, Payot, París, 1974.
(5) Os dados estatísticos aqui assinalados apoiam-se em números
dos anos 2011 e 2012.
(6) Natixis, "
The euro-zone crisis may last 20 years
", Flash Economics-Economic Research, August 16th 2012 - Nº 534
(7) Jean Gimpel, "La révolution industrielle du Moyen Age",
Éditions du Seuil, Paris, 1975.
(8) A batalha de Crecy constituiu um acontecimento decisivo mas não foi
a primeira da série. Em 1302 as milícias populares de Courtrai
(Bélgica) haviam derrotado a pé, com chuços e
lanças, a cavalaria feudal do Conde de Artois. A cavalaria feudal foi-se
desmoronando gradualmente, golpeada por uma realidade social em
transformação. Em 1415, a batalha de Agincourt, onde novamente a
cavalaria francesa foi aniquilada pela infantaria inglesa, encerra
definitivamente o ciclo militar do feudalismo. O processo desenvolveu-se ao
longo do espaço europeu durante algo mais de um século. Exemplo:
a infantaria suíça derrotou a golpes de machado (uma
alabarda
com mais dois metros de comprimento) a cavalaria austríaca em Morgarten
(1315), Laupen (1339), Sempach (1386).
(9) Robert Kurz,
"Los orígenes destructivos del capitalismo",
1997,
www.oocities.org/pimientanegra2000/kurz_origen_destructivo_capitalismo.htm
(10) Anouar Abdel Malek, "Political Islam", Socialism in the World,
Number 2, Beograd 1978.
[NT] Caso análogo ao da batalha de Aljubarrota, em que a infantaria
portuguesa derrotou a cavalaria castelhana. Ver artigo do General Vasco
Gonçalves:
A Revolução de 1383-85
[*]
Professor da Universidade de Buenos Aires.
Comunicação apresentada na jornada internacional "CHAVEZ
SIEMPRE" Crisis mundial y agresiones imperialistas: Venezuela y
las luchas emancipadoras en Nuestra América. Jueves 23 mayo, Auditorio
Alcaldía Girardot, Maracay. Tradução de JF.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
.
|