O tratado de comércio livre EUA-UE: a grande golpada
por Daniel Vaz de Carvalho
[*]
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O proletariado liberta-se suprimindo a concorrência. F. Engels
[1]
Chama-se liberdade de imprensa o direito exclusivo de certos potentados ou
certos malfeitores, graças à sua fortuna ou às suas
chantagens, de influir na opinião do país.
Chama-se liberdade económica à liberdade que têm alguns
indivíduos de se oporem em nome dos interesses criados à
liberdade de todos os outros.
Chamo-lhe os sofismas liberais aos quais acrescentava a chamada liberdade de
ensino.
Cada dia se imporá com mais clareza que o liberalismo económico
é uma das formas mais revoltantes do privilégio e do despotismo.
Raul Proença
[2]
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1 O QUE SE PREPARA
No segredo dos cidadãos, em junho deste ano, a CE recebeu mandato dos
ministros do Comércio Externo da UE para negociar com os EUA um tratado
de comércio livre, também designado por «Transatlantic Trade
and Investment Partnership» (TTIP) para entrar em vigor em 2015. Desde
julho que as negociações decorrem.
Este secretismo mostra bem o nível a que os políticos ao
serviço das oligarquias desceram. Trechos do tratado vieram a
público no sítio da internet do
L'Humanité.
O ministro francês do Comércio Externo indignou-se com "as
fugas".
[3]
Aqueles que imaginam a UE como um espaço de progresso e democracia,
"abandonem toda a esperança", como, na Divina Comédia,
Dante viu escrito "em letreiro escuro" à entrada do Inferno e,
já agora, tapem o nariz: para publicar o documento foi necessário
decifra-lo, pois estava encriptado!
[3]
Eis por onde anda a "glasnot" na UE
"As negociações são secretas para impedir os povos de
descobrirem o que verdadeiramente está em jogo. Por outro lado, 600
"conselheiros" oficiais das grandes empresas dispõem de um
acesso privilegiado a estas negociações para forjar o seu ponto
de vista"
[4]
O acordo visa não apenas o livre comércio de bens e
serviços mas também a "proteção",
leia-se: a desregulamentação, dos investimentos. O objetivo
é "ir além dos compromissos atuais da OMC". Pretende
assim, conforme expresso, "ligar ao mais alto nível de
liberalização os acordos de comércio livre
existentes." "A eliminação de todos os
obstáculos inúteis ao comércio (
) e à
abertura dos mercados e uma melhoria das regras".
[5]
É fácil entender o que esta gente entende por
"obstáculos inúteis "e "melhoria das regras":
trata-se de eliminar ou tornar insignificantes salário mínimo,
indemnizações por despedimento, subsídios de desemprego,
enfim direitos sociais e laborais, que no fanatismo neoliberal são
obstáculos "à criação de riqueza". Para
quem? É a questão.
Diz-se que os "serviços fornecidos no exercício da atividade
governamental devem estar excluídos das negociações".
Porém esclarece-se que por "serviço no exercício do
poder governamental entende-se todo o serviço que não é
fornecido nem sob uma base comercial nem em concorrência com um ou
vários fornecedores de serviços".
[5]
Note-se a subtileza do "um fornecedor". No reino do neoliberalismo,
vivam pois os monopólios!
Saúde pública, escola pública, segurança social
pública tudo isto ou acaba ou fica residual, decadente, apenas em termos
de assistencialismo. É voltar aquilo a que em linguagem
anglo-saxónica se designa pelas "dark ages" os anos
negros.
O resto é sujeito à gula das multinacionais. Quem quiser
educação paga-a, quem quiser saúde paga-a, quem quiser
pensão de reforma privatiza-a, ou seja, pague os lucros e sujeite-se
à economia de casino. Toda a orientação política do
atual governo e da UE é já neste sentido.
Normas, regulamentos sanitários, sociais e laborais serão
"uniformizados, aplanados, harmonizados". Isto significa que as
restrições a aditivos, pesticidas, carne com hormonas, sementes
transgénicas (OGM) serão cada vez mais ténues ou mesmo
inexistentes, para o que contribuirá a propaganda ao serviço
destes interesses e os especialistas subvencionados, sem o que nem as
universidades nem eles próprios subsistem. Assim está desenhado
este "admirável mundo novo", construído no mito da
eficiência privada.
Em função da concorrência "as normas mundiais
procuradas serão as mais baixas e as menos protetoras, exceto para os
investidores e acionistas."
[6]
Se assim não fosse as grandes marcas multinacionais de
confeções não procuravam trabalho semi-escravo em
países como o Bangladesh.
As informações das embalagens tornar-se-ão mais opacas ou
enganadoras, sob pena também de caso contrário prejudicarem o
comércio. A saúde pública fica à conta do
"mercado".
Claro que haverá alimentos baratos mas de baixa qualidade nutricional
para os pobres e saudáveis mas caros para quem puder pagar. Eis o que os
sicofantas do neoliberalismo vão propagandear como liberdade de escolha.
2 TODO O PODER ÀS MULTINACIONAIS
O tratado representa o culminar do processo neoliberal imposto aos povos,
ficando a sua soberania à mercê dos interesses grande capital.
Este, se achar que um Estado limita por regulamentações, taxas,
leis, as suas vendas ou investimentos pode processar esse Estado que
será obrigado a pagar uma indemnização e sujeitar-se.
É fácil imaginar o que isto representa para países
endividados, a braços com elevado desemprego, deficitários devido
à fuga de capitais e sem crescimento económico. São de
facto Estados párias, no que esta expressão significa de sem
direitos e exclusão.
Um Estado pode ser acusado e processado por pôr entraves ao "livre
comércio" ou a investimentos, designadamente por normas de controlo
sanitário, de qualidade, de biodiversidade, ecológicas. A
resolução de qualquer litígio não é entregue
a Tribunais soberanos nacionais, mas fica a cargo de um organismo dito
regulador ou regulamentar.
"O mais escandaloso é que um tribunal dominado por uma pequena
clique de advogados de negócios poderá lançar o
anátema sobre Estados ou instâncias que infrinjam as
disposições do acordo. O grande capital passa a dispor de uma
"supremacia do tipo imperial que lhe permite fazer passar os seus direitos
antes de todos os outros"
[4]
Há aliás casos de processos em curso com pedidos de
indemnizações de milhares de milhões de dólares,
reclamados por megaempresas a Estados, ou seja, ao povo. Por exemplo, Philip
Morris (tabaco) contra o Uruguai e Austrália; Vattenfall (nuclear)
contra a Alemanha; Lone Pine (extração de gás de xisto)
contra o Canadá por recusas ambientais do Quebec.
[6]
Refira-se que "a jurisprudência do tribunal de justiça da UE
já dá prioridade ao direito de concorrência sobre as
legislações sociais dos Estados membros" (decisão
Viking, decisão Ruffert, decisão da Comissão contra o
Luxemburgo)
[5]
O fabricante de um aditivo cancerígeno contido na gasolina exigiu do
Canadá 250 milhões de dólares por "perda de vendas e
entraves ao comércio. O Canadá temendo perder o processo
autorizou o aditivo e pagou uma indemnização de 10 milhões
de dólares ao fabricante"
[4]
A cláusula de lucros cessantes que qualquer contrato de boa-fé
rejeita por leonina, pode ser agora aplicada sob a forma de lucros potenciais
cessantes.
O tratado é aliás bastante claro no seu objetivo de impor um
totalitarismo supranacional, ao prescrever que todas as
restrições que não estejam justificadas por
exceções no tratado serão suprimidas. Neste contexto, os
Estados ficam ameaçados de ser penalizados com sanções,
multas ou aumento das taxas de juro.
Se um país recusar produtos alimentares dos EUA com aditivos, hormonas,
originários de OGM poderá ser penalizado: estará a
pôr entraves ao "comércio livre". Democracia,
critérios de saúde e regulamentação alimentar que
cada Estado deveria poder definir segundo critérios próprios
conforme a decisão dos seus cidadãos assim se construiu e
constrói o progresso serão não apenas considerados
nulos, mas poderão obrigar a pagar indemnizações como
lucros que determinadas empresas alegarão ter deixado de receber.
Trata-se como afirma Susanne Suchuster de "um ataque frontal contra a
nossa democracia ou, pelo menos, do que ainda resta".
[4]
3 "AS BOAS INTENÇÕES"
Os argumentos vão ser os mesmos com que se propagandearam os tratados da
UE e do euro, a diretiva do mercado comum dos contratos públicos, etc.
Tudo isto iria trazer mais emprego, mais crescimento, mais economias para o
Estado. Chegaram mesmo a quantificar os aumentos. Que se verificou? Mais
desemprego, mais pobreza, mais endividamento, numa UE que recua perante a
economia mundial, até mesmo perante os EUA.
O ponto 8 do tratado afirma: "O acordo deveria reconhecer que as partes
não encorajarão o comércio ou o investimento direto
estrangeiro pelo abaixamento da legislação e das normas em
matéria de ambiente, trabalho ou saúde e segurança no
trabalho, ou pela flexibilização das normas fundamentais do
trabalho ou das políticas e legislações visando proteger e
promover e a diversidade cultural"
[5]
Trata-se enfim da "poeira para os olhos" necessária à
propaganda e alibis para as cedências da social-democracia e seus
sindicatos (como a UGT em Portugal). A flexibilização e o
abaixamento de legislação e normas não precisam ser
"encorajadas" elas são já a base das políticas
da concorrência "livre e não falseada" da UE, que se
agravarão com os desequilíbrios que o tratado irá provocar
em países já de si afetados por intermináveis crises.
Tudo isto não passa de letra morta, fraseologia ridícula e
hipócrita face às imposições de "captar
investimento" e de "cumprir os compromissos com os nossos
credores". O problema reside em que textos declarativos não
têm precedência sobre o que é normativo e estas "boas
intenções" quanto a direitos humanos e saúde
pública contradizem tudo o que tem sido promovido pela OMC, FMI e CE.
Como acreditar que "serão mantidos os serviços de interesse
geral" se para o neoliberalismo o "interesse geral" é
garantido de forma mais "eficiente" pelos privados como é
constantemente propagandeado, como justificação para desmantelar
serviços públicos. O problema é em que
condições, por quem e como.
Com todo o cinismo afirma-se: "A regulamentação nacional
pode continuar a aplicar-se desde que não comprometa as vantagens
decorrentes do acordo."
[5]
Esta frase assemelha-se a uma graçola de mau gosto, uma verdadeira
boçalidade, mais valia acrescentar: poderão aplicar-se mas com
todas as consequências decorrentes do tratado.
O significado de direitos sociais e laborais para os neoliberais foi
evidenciado pelo ministro Aguiar Branco ao dizer que o Estado Social existente
se assemelha a um totalitarismo.
Claro que é este "totalitarismo" que impede os procedimentos
de controlo, opressão e perseguição das multinacionais
sobre os trabalhadores, que os proprietários da Wall-Mart, a
família mais rica do planeta, praticam. Procedimentos que incluem
sistemas de vigilância, espionagem e repressão sobre atividades
políticas ou sindicais, contratando para o efeito gente especializada
nessas funções.
A quem interessa afinal este tratado? Em primeiro lugar, à grande
indústria alemã e às megaempresas do agroalimentar dos
EUA. O tratado vai ao encontro dos desejos e necessidade de expansão do
grande capital obtido a custo real zero na especulação e nos
bancos centrais ao seu serviço. As oligarquias anseiam por algo como
este tratado, que as ponha ao abrigo das incertezas e constrangimentos que a
democracia lhes pode trazer. Não se consideram cidadãos como os
outros. São o equivalente à nobreza do feudalismo.
Mas então com a teoria da "vantagem comparativa" não
ganham todos? Talvez, mas nunca quando são as multinacionais a definirem
o que se entende por "vantagem".
Há muito que a vida demonstrou que em termos de comércio livre
"a vantagem comparativa entre um país rico e bem equipado e um
país pobre e sem equipamento moderno conduz a uma
especialização desastrosa, pois o segundo perde toda a
possibilidade de se desenvolver ou mesmo manter a sua indústria"
. (História do Pensamento Económico, Henri Denis, Livros
Horizonte,
p. 583)
Mesmo o agro-alimentar francês fica em risco; indústrias como a
francesa ou italiana ficarão severamente constrangidas ao
desaparecimento ou a tornarem-se subsidiárias de megaempresas dos EUA.
O que acontecerá aos países mais vulneráveis da UE pode
ser avaliado pelo ocorrido na Colômbia e no México, respetivamente
com os tratados ALENA e NAFTA. Na Colômbia "Houve um aumento
desenfreado de importações e uma redução dos
investimentos e das produções nacionais. Levando à
ruína de camponeses, mineiros, camionistas e pequenos
empresários". Vastas extensões de terras foram entregues
às grandes empresas norte-americanas da agro-indústria sendo os
camponeses expulsos. A revolta, que a comunicação social
controlada ignorou, estendeu-se a 25 departamentos do país a incluindo a
capital.
[7]
Os EUA praticam o dumping através das subvenções à
sua produção (o que é proibido direta ou indiretamente aos
outros países), conduzindo a enormes aumentos das
exportações do Norte em detrimento da produção
nacional.
[7]
No México existem hoje estufas ultramodernas de tomateiros, uma grande
exportação para os EUA. Este "êxito" da
"eficiência" neoliberal traduziu-se em 2,3 milhões de
camponeses sem trabalho, obrigados a emigrar 500 a 600 mil por ano
até 2008, ano em que foram levantadas barreiras a esta
situação. De qualquer forma, em 2011 existiam 11 milhões
de emigrantes não legalizados nos EUA
[7]
em condições de trabalho de semi-escravatura. Acrescente-se que
o homem mais rico do mundo é um mexicano
4 O GOLPE DE ESTADO NEOLIBERAL
Os agentes do neoliberalismo preparam o seu do golpe de Estado neofascista. O
que os prossecutores desta verdadeira golpada pretendem é deitar abaixo
o que resta de democracia real, direitos dos trabalhadores,
funções sociais do Estado, tudo em nome, obviamente, da
"eficiência" das "vantagens comparativas". Se assim
não fosse nada estaria a ser feito longe e em segredo para os
cidadãos.
O grande mercado transatlântico é "uma NATO
económica", dizia a sra. Clinton, e como tal será colocado
sob tutela dos EUA.
[5]
Pelo tratado, no futuro acabarão por poder ser cultivadas apenas
"sementes certificadas", isto é, das multinacionais dos OGM
como a Monsanto ou a Sygenta. Todo o agricultor que guarde uma parte da sua
colheita para semear nos seus campos poderá então vir a ser
multado e em caso de reincidência objeto de processo judicial. A CE
antecipa esta situação com a proposta da "Lei das
Sementes", que obriga à certificação e registo das
sementes, forma expedita de liquidar pequenos agricultores. Uma proposta de
rejeição já foi apresentada pelos deputados do PCP no
Parlamento Europeu.
Os vândalos estão, pois de volta! Se os povos abrandarem a sua
resistência, um diretório de Estados dominantes irá gerir
os demais como protetorados, no interesse das suas multinacionais e
oligarquias. Como não poderá haver um tratamento mais
favorável para as empresas nacionais, um país não mais
poderá desenvolver a sua própria política
económica, ficando sujeito às pretensões das mais
poderosas multinacionais.
Segundo o tratado, as obrigações comprometem todos os
níveis de governo, incluindo autarquias e regiões. Nada escapa!
É o totalitarismo neoliberal. A realidade será afinal o pacto da
troika a tempo inteiro sobre a UE. A representação
democrática totalmente subvertida.
Milhões de trabalhadores já empobrecidos por uma crise
económica crónica. Vão ser colocados em concorrência
atroz. "Trabalhadores expostos ao dumping social, às
deslocalizações, à precariedade, à chantagem ou ao
desemprego sem que nenhum destes cidadãos possa usar o seu poder
eleitoral para influenciar as escolhas politicas, económicas,
sociais."
[6]
Face aos desastres económicos, sociais e ambientais os mesmos que
vão fazer a sua defesa e propaganda hão de mais tarde fazer-se de
vitimas e, como no caso do pacto da troika, dizer que foi "mal
desenhado", que "o problema é a
Constituição", etc.
Os critérios de repressão sobre os trabalhadores aplicados pela
Wall Mart podem ser o ideal para os srs. Soares dos Santos e outros oligarcas
que fogem com a riqueza criada em Portugal para paraísos fiscais.
Porém, não podem mudar a realidade, as suas
contradições, a sua dialética.
Não contam com isso. Não entendem que o fascismo, qualquer que
seja a máscara, os alibis, os colaboracionistas que encontre,
será derrotado, porque não pode, como se provou através da
História desde os tempos mais antigos, escapar à luta de classes
e travar o progresso.
O proletariado liberta-se suprimindo a concorrência, escreveu Engels. Por
isso da direita à social-democracia se vê uma tão grande
obstinação na competição económica (em lugar
de cooperação) à custa da exploração da
força de trabalho. Bem dizia Raul Proença que "o liberalismo
económico é uma das formas mais revoltantes do privilégio
e do despotismo". Mas o que esperar de uma ideologia que faz de
ganância a sua força motriz?
Notas
1- Obras Escojidas de C. Marx e F. Engels, Ed. Progresso, Moscovo, p. 85.
2- Para uma ação idealista no mundo real, em Seara Nova, dezembro
de 1971.
3- Le pacte transatlantique, le coup d'État néolibéral,
Marc Delepouve, sindicalista e universitário,
www.humanite.fr/tribunes/le-coup-d-etat-neoliberal-546985
; também
em
www.legrandsoir.info/le-pacte-transatlantique-le-coup-d-etat-neoliberal.html
4- TTIP-TAFTA der Ausverkauf unserer Demokratie, Susanne Suchuster,
tradutora, pensadora ativista, também em
www.legrandsoir.info/...
5- Le mandat UE de négociation du grand marché transatlantique
UE-USA, Raoul Marc Jennar
www.legrandsoir.info/...
oir.info/le-mandat-ue-de-negociation-du-grand-marche-transatlantique-ue-usa.html
6- Peut-on "inverser la courbe du chômage" en vendant la France
à l'OMC?, Samuel Moleaud,
www.legrandsoir.info/...
7- Colombie: Coup de gueule, Marie Monique Robin,
www.legrandsoir.info/colombie-coup-de-gueule.html
NOTA
Para além das referências que indicamos, não queremos
deixar de mencionar o texto "Tratado Transatlântico: Um tufão
que ameaça os europeus", inserido no
Le Monde Diplomatique,
ed. portuguesa, novembro/2013, de Lori Wallach, diretora da Public Citizen's
Global Trade Watch
[*]
Engenheiro.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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