O Pico de (quase) tudo

por Richard Heinberg

A encomenda do livro através deste link permitirá que resistir.info receba uma pequena comissão. A expressão Pico do Petróleo entrou recentemente no léxico global. Refere-se ao exacto momento em que o mundo atingirá o mais alto valor possível da extracção de petróleo; daí para a frente, por razões que se prendem principalmente com a geologia, a quantidade de petróleo disponível para a sociedade, numa base diária ou anual, começará a diminuir. Muitos dos analistas bem informados concordam em que isso irá acontecer durante as próximas duas ou três décadas; mas um número cada vez maior acha que isso já está a acontecer agora – que a produção convencional do petróleo atingiu o pico em 2005-2006 e que o fluxo de todos os hidrocarbonetos para o mercado, considerados no seu conjunto, começará a diminuir por volta de 2010. [1] As consequências, quando começarem a acumular-se, deverão ser graves: o mundo está totalmente dependente do petróleo para os transportes, a agricultura, os plásticos e os produtos químicos; portanto vai ser necessário um lento processo de adaptação. Segundo um estudo recente patrocinado pelo governo americano, se o pico ocorrer dentro em breve, é improvável que apareçam substitutos com a rapidez e em quantidade suficientes para evitar o que designa por impactos sociais, políticos e económicos "sem precedentes". [2]

Este livro não é uma introdução ao tema do Pico do Petróleo; há diversas obras que cumprem essa missão (incluindo o meu livro The Party's Over: Oil, War And The Fate Of Industrial Societies . [3] Em vez disso aborda o contexto social e histórico em que se situa este acontecimento, e explora a forma como podemos organizar as nossas ideias e a nossa acção em diversas áreas críticas de modo a navegar melhor neste tempo tempestuoso.

É necessário algum tempo e perspectiva para apreciar o nosso contexto socio-histórico. Quando se confrontam pela primeira vez com o Pico do Petróleo, a maior parte das pessoas tende a considerá-lo como um mero problema isolado para o qual só há uma solução – seja de natureza amiga-do-ambiente (mais energias renováveis) ou o inverso (mais carvão). Mas uma reflexão e estudo aprofundados tendem a esvaziar a viabilidade de tais "soluções"; para já, quando se observa como tão rapidamente o homem se tornou profundamente dependente da energia barata e concentrada do petróleo e de outros combustíveis fósseis, é difícil não deixar de concluir que caímos na ratoeira do Dilema Ecológico Universal, constituído pelos elementos interligados da pressão popular, do esgotamento dos recursos e da destruição do habitat – e a uma escala sem precedentes na história.

O petróleo não é o único recurso importante que está em vias de se esgotar. Os leitores já familiarizados com a literatura do Pico do Petróleo sabem que já foram atingidos os picos da produção regional do gás natural e que, a curto prazo, as consequências económicas das falhas de gás deverão ser bem piores para os europeus e norte-americanos do que as do petróleo. E embora se refira frequentemente que o carvão é um combustível fóssil abundante, com reservas suficientes para fornecer o mundo aos ritmos de utilização actuais durante mais duzentos anos, um estudo recente que actualiza as reservas globais e as previsões de produção chega à conclusão de que a produção global do carvão atingirá o pico e decairá dentro de dez a vinte anos. [4] Como os combustíveis fósseis representam cerca de 85 por cento da energia total mundial, os picos destes combustíveis garantem que, na prática, o fornecimento mundial de energia começará a reduzir-se dentro de poucos anos, independentemente dos esforços que se estão a fazer para arranjar outras fontes de energia.

E o problema não se limita ao gás natural e ao carvão. Se levantarmos os olhos do estreito caminho das actividades diárias de sobrevivência e começarmos a perscrutar o horizonte, aparece-nos uma assustadora série de picos. No decurso do presente século iremos assistir ao fim do crescimento e ao começo do declínio em todos estes parâmetros:

  • População
  • Produção de cereal (total e per capita)
  • Produção de urânio
  • Estabilidade do clima
  • Disponibilidade de água potável per capita
  • Terra arável para a produção agrícola
  • Pescas
  • Extracção anual de alguns metais e minerais (incluindo o cobre, a platina, a prata, o ouro e o zinco)

    O objectivo deste livro não é percorrer sistematicamente todos estes cenários de pico-declínio um por um, apresentando provas e assinalando as suas consequências – embora isso seja um exercício valioso. Alguns desses picos são mais especulativos do que outros: as pescas já estão em declínio, portanto este é pouco discutível; mas para projectar os picos da extracção e declínio de alguns metais é necessária uma extrapolação dos actuais ritmos crescentes de utilização para daqui a muitas décadas. [5] O problema do abastecimento de urânio para daqui a cinquenta anos está bem confirmado pelos estudos, mas o público não lhes prestou suficiente atenção. [6]

    Apesar disso, a imagem geral é evidente; é um dos exemplos mutuamente interactivos do consumo excessivo e da escassez que se avizinha.

    Então, o nosso ponto de partida é a tomada de consciência de que estamos a viver no fim do período de maior abundância material da história do homem – uma abundância baseada em recursos temporários de energia barata que tornou possível tudo o resto. Agora que os mais importantes desses recursos estão a chegar à sua fase inevitável do ocaso, estamos no início de um período de contracção geral da sociedade.

    Esta tomada de consciência é reforçada quando começamos a perceber que não é por acaso que estão a ocorrer tantos picos ao mesmo tempo. Estão todos relacionados de forma causal através da realidade histórica de que, nos últimos 200 anos, a energia abundante e barata dos combustíveis fósseis tornou possível invenções tecnológicas, aumentos no total e per capita da extracção de recursos e do consumo (incluindo a produção de alimentos) e o crescimento da população. Estamos encurralados num clássico círculo vicioso que se reforça a si mesmo:
    -->Extracção de combustíveis fósseis
    ---->mais energia disponível
    ------>aumento da extracção de outros recursos e da produção de alimentos e de outros bens
    -------->aumento da população
    ---------->aumento da procura de energia
    ------------>maior extracção de combustíveis fósseis (e por aí adiante)

    Na natureza ocorrem por vezes círculos viciosos que se reforçam a si mesmos (as explosões de população são sempre prova de um qualquer círculo vicioso que se reforça a si próprio), mas estes raramente continuam durante muito tempo. Normalmente levam a confrontos de populações e a mortes. O que é um facto é que o crescimento da população e o consumo não podem continuar infinitamente num planeta finito.

    Dado que a disponibilidade crescente de energia barata possibilitou um crescimento histórico sem precedentes nos valores de extracção de outros recursos, então a coincidência do Pico do Petróleo com o pico e o declínio de muitos outros recursos é completamente previsível.

    Além disso, quando a disponibilidade dos recursos energéticos atingir o seu pico, isso também afectará diversos parâmetros do bem-estar social:

  • Níveis de consumo per capita
  • Crescimento económico
  • Mobilidade fácil, barata e rápida
  • Mudanças tecnológicas e invenções
  • Estabilidade política

    Todos eles estão claramente relacionados com a disponibilidade de energia e de outros recursos críticos. Quando concordamos que a energia, a água potável, e os alimentos passarão a estar menos disponíveis nas próximas décadas, não podemos deixar de concluir que, enquanto que o século XX assistiu à maior e mais rápida expansão da quantidade, espaço e complexidade das sociedades humanas na história, o século XXI assistirá à sua contracção e simplificação. Assim, a única questão real é se as sociedades se irão contrair e simplificar de forma inteligente ou de uma forma descontrolada e caótica.

    Boas notícias? Más notícias?

    Nada disto é fácil de encarar. Nem estas informações são fáceis de discutir com gente de cerimónia:    sugerir que já estamos dentro ou perto do pico dos níveis de população e do consumo para todo o sempre da história humana e de que a partir de agora é sempre a decrescer, certamente que não ganha votos, nem nos arranja um emprego melhor, nem sequer constitui uma conversa agradável para o jantar. A maior parte das pessoas desliga ou muda de assunto quando a conversa se encaminha para isso; os publicitários e as agências noticiosas registam e agem em conformidade. Resultado: um padrão social geral de negação.

    Onde é que podemos encontrar alguma luz no meio de toda esta obscuridade? Bom, podemos argumentar que neste século também irão atingir o seu pico algumas coisas que não são tão boas:

  • Desigualdade económica
  • Destruição ambiental
  • Emissão de gases com efeito de estufa [NR]

    Desigualdade económica, como? O grande filósofo social já falecido, Ivan Illich, argumentava no seu livro de 1974 'Energy and Equality' que numa sociedade a desigualdade aumenta com o fluxo da energia. "Só um tecto no uso da energia", escreveu, "pode conduzir a relações sociais que sejam caracterizadas por um alto nível de justiça". [7] Os caçadores e os recolectores, que sobreviviam com fluxos de energia mínima, também viviam em sociedades praticamente isentas de desigualdade económica. Embora algumas sociedades nómadas estivessem em melhores condições que outras porque viviam em ecossistemas mais abundantes, os membros de um grupo tendiam a partilhar de forma igual tudo o que estivesse disponível. Tinham uma economia de dádiva – em oposição às economias de troca, de mercado e de dinheiro que nos são mais familiares. Com a agricultura e a divisão do trabalho a tempo inteiro apareceram valores mais altos do fluxo de energia assim como uma disparidade económica cada vez maior entre reis, seus vassalos e camponeses. No século XX, com valores de fluxo de energia per capita que atingiram os maiores valores da história, alguns seres humanos também desfrutaram uma abundância material sem precedentes, tão grande que pensaram que a pobreza podia ser eliminada de uma vez por todas, bastando para isso que houvesse vontade política. Com efeito, nos meados do século parecia que estavam a ser feitos progressos nessa direcção. No entanto, considerando o século no seu conjunto, a desigualdade acabou por aumentar. O índice Gini, inventado em 1912 como medida da desigualdade económica nas sociedades, subiu substancialmente nos últimos trinta anos em muitos países (incluindo os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a Índia e a China), e em todo o mundo no seu conjunto. [8] Nas últimas décadas anteriores ao século XX, o rendimento médio no país mais rico do mundo era cerca de dez vezes maior do que o dos países pobres; agora é mais de quarenta e cinco vezes maior. Segundo um estudo publicado em Dezembro de 2006 ("The World Distribution of Household Wealth"), um por cento das pessoas mais ricas controla hoje 40 por cento da riqueza mundial, enquanto que dois por cento dos mais ricos controlam toda uma metade. [9] Se se mantiver esta correlação entre os valores do fluxo de energia, parece provável que, quando a energia disponível diminuir durante o século XXI, possamos assistir a uma regressão a níveis mais baixos de desigualdade. Não quero dizer que no final do século estejamos todos a viver num paraíso socialista igualitário, mas simplesmente que os níveis de desigualdade que temos hoje se tornaram insuportáveis.

    Do mesmo modo, parece provável que os níveis de destruição ambiental provocada pelo homem atingirão um pico e começarão a decair nas próximas décadas. À medida que a energia disponível diminuir, a nossa capacidade para alterar o ambiente também diminuirá. No entanto, se não fizermos uma tentativa deliberada para controlar o nosso impacto sobre a biosfera, o pico será muito alto e teremos provocado muitos prejuízos até lá chegar. Em alternativa, podemos esforçarmo-nos de forma deliberada e inteligente para minimizar os impactos ambientais e, nesse caso, o pico será atingido a um nível mais baixo. Especialmente na primeira hipótese, este pico situar-se-á provavelmente depois dos outros já referidos, já que muitos dos danos ambientais envolvem círculos viciosos que se reforçam a si mesmos, e o mesmo acontecerá com os impactos retardados e acumulados que continuarão a repercutir-se durante décadas depois de os níveis de população e de consumo terem começado a diminuir. Um exemplo básico: as emissões de gases com efeito de estufa [NR] sem dúvida que atingirão o pico este século – seja em resultado de reduções voluntárias no consumo do combustível fóssil, do esgotamento da base de recursos, ou de um colapso social. No entanto, o clima global pode não estabilizar senão muitas décadas depois, até que se esgotem os diversos círculos viciosos auto-reforçantes (tais como a fusão da calota do pólo norte, que produzirá água negra que por sua vez absorverá mais calor, exacerbando assim o efeito de aquecimento e a fusão da tundra e do permafrost [NT] , que libertarão o metano armazenado que, por sua vez, provocará provavelmente um grande aumento do aquecimento), círculos viciosos esses que foram postos em marcha. Na verdade, o clima pode levar séculos até regressar a uma fase de relativo equilíbrio.

    Bem, se o objectivo dos parágrafos anteriores era contrabalançar os picos de más notícias com outros mais alegres, parece que até agora essa tentativa está longe de ser bem sucedida. De certeza que é possível fazer melhor. Será que há algumas coisas boas que ainda estão muito longe dos seus picos históricos? Lembro-me de alguns.

  • Comunidade
  • Autonomia pessoal
  • Satisfação pelo trabalho honesto bem executado
  • Solidariedade entre gerações
  • Cooperação
  • Tempos livrem
  • Felicidade
  • Engenho
  • Talento artístico
  • Beleza da envolvente construída

    Claro que alguns destes itens são difíceis de quantificar. Mas há alguns que se podem medir e as tentativas para o fazer revelam por vezes resultados surpreendentes. Vamos considerar dois deles que foram objecto de estudo quantitativo.

    Os tempos livres são provavelmente o elemento desta lista que se presta mais facilmente a ser medido. As sociedades com mais tempos livres foram sem dúvida as dos recolectores-caçadores, que trabalhavam cerca de 1000 horas por ano, embora essas sociedades raras vezes, ou nenhuma, tenham pensado em separar "tempo de trabalho" de "tempo livre", já que todas as actividades eram de certa forma consideradas agradáveis. Para os empregados americanos, as horas de trabalho atingiram o pico no princípio do período industrial, por volta de 1850, com cerca de 3500 horas por ano. [10] Muito superior às 1620 horas trabalhadas anualmente pelo camponês medieval típico. Mas as duas situações não são comparáveis directamente: um dia de trabalho medieval típico arrastava-se de estrelas a estrelas, (dezasseis horas no verão, oito no Inverno), mas o trabalho era intermitente, com pausas para o desjejum, uma merenda a meio da manhã, o almoço, uma tradicional sesta à tarde, uma merenda a meio da tarde e o jantar; além disso, havia dezenas de feriados e de dias santos espalhados por todo o ano. Hoje o trabalhador americano médio passa cerca de 2000 horas a trabalhar, um número um pouco mais alto do que acontecia há alguns anos (em 1985 andava mais perto das 1850 horas). No entanto, uma perspectiva histórica alongada sugere que a intensidade do tempo do trabalho humano parece atingir o seu pico na fase inicial da industrialização, e que uma simplificação da economia moderna poderá resultar num retorno às normas pré-industriais, mais antigas.

    Nos últimos anos floresceu a área da investigação da felicidade, com a publicação de montes de estudos e de diversos livros dedicados à análise estatística do que é que dá às pessoas uma sensação de satisfação geral nas suas vidas. Estudos internacionais de depoimentos sobre níveis de felicidade mostram que, depois de satisfeitas as necessidades básicas de sobrevivência, há pouca correlação entre a felicidade e os valores per capita do consumo de combustíveis fósseis. Segundo alguns inquéritos, as pessoas no México, que utilizam um quinto dos combustíveis fósseis utilizados pelos cidadãos norte-americanos, são igualmente felizes.

    A possibilidade de continuar a gozar dos actuais (ou elevados) níveis de felicidade e de reduzir horas de trabalho pode parecer uma fraca compensação à luz de todos os enormes desafios sociais e económicos implícitos nos picos atrás descritos. Mas vale a pena lembrar que a lista acima refere coisas que são muito importantes para a maior parte das pessoas em termos da sua experiência vivida, real. O sentido de comunidade e a experiência da solidariedade entre gerações não têm preço, literalmente, ou seja não há dinheiro que possa comprá-los; além disso, a vida sem eles é de facto gélida – principalmente durante épocas de tensão social. E há muitas razões para pensar que estes dois factores decaíram significativamente durante as últimas décadas de urbanização acelerada e de crescimento económico.

    Em contraste com estes índices de bem-estar pessoal e social, o Produto Interno Bruto (PIB) per capita é facilmente mensurável e mostra uma tendência mundial fortemente ascendente nos últimos dois séculos. Mas toma em consideração apenas um conjunto limitado de dados – o valor de mercado de todos os bens e serviços acabados produzidos num país durante um certo período de tempo. O crescimento do PIB diz-nos que nos devíamos sentir melhor com nós próprios e com o nosso mundo – mas não tem em consideração uma ampla gama de outros factores, incluindo os danos para o ambiente, as guerras, as taxas de crime e de prisão, e as tendências na educação. Por causa disso, muitos economistas e organizações não governamentais têm criticado a confiança governamental no PIB, e têm proposto como alternativa a utilização de um Indicador Genuíno de Progresso (IGP), que tenha em consideração esses factores. Enquanto que uma comparação histórica do PIB nos Estados Unidos mostra um crescimento geral progressivo até ao presente (o PIB correlaciona-se estreitamente com o consumo de energia), os cálculos do IGP mostram um pico por volta de 1980 seguido por um lento declínio. [11] Se nós, enquanto sociedade, nos quisermos ajustar sem problemas a valores de fluxo de energia mais baixos – e a menos viagens e transportes – com uma rotura social mínima, temos que começar a dar mais atenção aos bens da vida aparentemente intangíveis e menos atenção ao PIB e aos aparentes benefícios do desperdício do uso de energia.

    Não há nenhum paliativo. O tratamento dos problemas económicos, sociais e políticos decorrentes dos diversos picos que se aproximam exigirá um esforço colectivo enorme. Se quisermos ser bem sucedidos, esse esforço tem que ser coordenado, presumivelmente pelo governo, e as pessoas recrutadas para esse esforço têm que ser educadas e motivadas numa quantidade e a uma velocidade nunca vistas desde a II Guerra Mundial. Parte dessa motivação tem que surgir de uma visão positiva de um futuro que valha esse empenho. Será necessário que as pessoas sintam que haverá uma possível recompensa para o que equivalerá a muitos anos de pesado sacrifício. A realidade é que nos estamos a aproximar de uma época de contracção económica e que terão agora que ser refreados os apetites consumistas que foram acicatados durante décadas por anúncios incessantes prometendo "mais, mais depressa e maior". As pessoas não vão aceitar de boa vontade a nova mensagem de "menos, mais devagar e mais pequeno", a não ser que tenham novas metas a atingir. Têm que sentir que os seus esforços vão conduzir a um mundo melhor e a melhorias tangíveis na vida para si próprias e para as suas famílias. As indispensáveis campanhas maciças de educação pública terão que ser credíveis, e serão pois muito mais bem sucedidas se derem às pessoas um sentido de investimento e de envolvimento na formulação dessas metas. Há uma palavra muito usada e abusada que descreve o procedimento necessário – democracia.

    Uma outra forma de mitigar o nosso horror paralisante perante a visão do futuro da nossa sociedade como um mundo de declínio em tantos aspectos, é perguntar: declínio até onde? Estamos perante uma total desintegração de tudo o que consideramos precioso, ou apenas perante um retorno a níveis mais baixos de população, de complexidade e de consumo? Claro que a resposta ainda não é conhecida neste momento. Podemos estar mesmo à beira do pior colapso da história. Basta uma única referência a este respeito: o Millennium Ecosystem Assessment, uma análise de quatro anos dos ecossistemas mundiais publicada em 2006, em que participaram 1300 cientistas, chegou à conclusão de que, dos 24 ecossistemas identificados como essenciais para a vida humana, 15 estão "a ser empurrados para além dos seus limites sustentáveis" para uma situação de colapso que pode ser "abrupto e potencialmente irreversível". [12] Os sinais não são benéficos.

    Apesar disso, o declínio da população, da complexidade e do consumo pode, pelo menos teoricamente, dar lugar a uma sociedade estável com características que muita gente considerará serem bastante desejáveis. O regresso ao padrão normal da existência humana, baseado na vida do campo, em famílias alargadas, e na produção para consumo local – principalmente se for apoiada por alguns dos adereços do final do período industrial, como as comunicações globais – pode proporcionar às gerações futuras o tipo de existência com que muita gente urbana sonha com saudade.

    Portanto a mensagem geral deste livro não é necessariamente lúgubre – mas é a da inevitável mudança e do necessário empenhamento deliberado no processo de mudança a uma dimensão e rapidez para além de qualquer outro na história do homem. Indispensável: Temos que nos concentrar e utilizar os intangíveis que não estão a atingir o pico (como o engenho e a cooperação) para tratar dos problemas que derivam do uso exagerado das substâncias que existem.

    A nossa única grande tarefa: A transição energética

    Conforme já vimos, bastaram alguns vectores chave para levar muitos outros a provocar os problemas globais que enfrentamos hoje, e esses vectores chave (incluindo o crescimento da população e o aumento dos valores de consumo) gravitam em torno da utilização sempre florescente dos combustíveis fósseis. Portanto, surge por si só uma conclusão de uma franqueza impressionante. A nossa tarefa central de sobrevivência para as décadas futuras, enquanto indivíduos e enquanto espécie, tem que ser a de fazer a transição para a fase da não utilização de combustíveis fósseis – e fazê-lo de forma tão pacífica, tão justa e tão inteligente quanto possível.

    À primeira vista, isto pode parecer uma absurda simplificação grosseira da situação humana. Afinal de contas, o mundo está cheio de crises que exigem a nossa atenção – desde as guerras à poluição, à subnutrição, às minas terrestres, aos abusos contra os direitos humanos e ao aumento das taxas do cancro. Um monomaníaco que se concentra apenas nos combustíveis fósseis não estará a pôr de lado tantas coisas importantes?

    Em defesa das minhas afirmações, apresento dois pontos:

    Primeiro, há alguns problemas mais críticos que outros. Um paciente pode ter simultaneamente uma rotura de um vaso sanguíneo no cérebro e uma perna partida. Um médico não vai ignorar o segundo problema mas, como o primeiro ameaça a vida de imediato, dá precedência ao seu tratamento. Globalmente, há dois problemas cujas consequências possíveis excedem largamente as dos outros: a mudança climática e o esgotamento dos recursos energéticos. Se nada fizermos para reduzir drasticamente e em pouco tempo as emissões de gases com efeitos de estufa [NR] , há fortes probabilidades de pormos em marcha os dois círculos viciosos anteriormente referidos – a fusão da calota do pólo norte e a fusão da tundra e do permafrost [NT] que libertarão o metano armazenado. Se isso acontecer, gerar-se-á um aquecimento global calculado, não em mais um ou dois graus, mas possivelmente em seis ou mais graus durante o resto do século. E isto, por seu turno, tornará inabitável a maior parte do mundo e tornará impraticável a agricultura em muitos locais, ou mesmo na sua maioria, e pode resultar na extinção de milhares ou milhões de outras espécies para além da morte de centenas ou milhares de milhões de seres humanos.

    O declínio pós pico quanto à disponibilidade do petróleo, do gás natural e do carvão – se se mantiver a nossa dependência destes combustíveis – pode dar origem ao colapso económico, à fome e à guerra geral pelos recursos sobrantes. Embora seja certamente possível imaginar estratégias de sobrevivência para a fase de transição para a falta dos combustíveis fósseis, que envolvam esforços proactivos no desenvolvimento de fontes alternativas de energia a uma escala maciça e para criar políticas que imponham a racionalização do uso da energia, também numa escala maciça, o mundo está actualmente tão confiante nos hidrocarbonetos como o está na água, na luz do sol, e no solo. Sem petróleo para transportes e para a agricultura; sem gás para aquecimento, produtos químicos e fertilizantes, e sem carvão para gerar energia, a economia global chispará até parar. Embora ninguém preveja que estes combustíveis vão desaparecer de um momento para o outro, podemos evitar o pior cenário da desintegração económica global – com toda a tragédia humana que isso implica – reduzindo proactivamente a nossa dependência do petróleo, do gás e do carvão antes do seu esgotamento e escassez. Por outras palavras, tudo o que é necessário para que o pior cenário se materialize é que os dirigentes mundiais continuem com a política actual.

    Estes dois problemas são potencialmente letais; são doenças de alta prioridade. Se os resolvermos, seremos depois capazes de dedicar a nossa atenção a outros dilemas humanos, muitos dos quais estão presentes há milénios – guerra, doença, injustiça, e por aí fora. Se não resolvermos estes dois problemas, então dentro de algumas décadas a nossa espécie poderá não estar em posição de fazer qualquer progresso seja em que frente for; na verdade, provavelmente estará envolvida numa luta pela sua própria sobrevivência. Estaremos literal e metaforicamente a queimar a mobília como combustível e a lutar por causa de migalhas.

    A minha segunda razão para insistir que a transição dos combustíveis fósseis deve ter precedência sobre outras preocupações também pode ser enquadrada numa metáfora médica: Frequentemente uma única causa pode provocar uma constelação de sintomas aparentemente muito diferentes. Um paciente pode apresentar sintomas de perda de audição, dores de estômago, dores de cabeça e irritabilidade. Um médico incompetente pode tratar cada um destes sintomas em separado sem tentar correlacioná-los. Mas se a causa for envenenamento por chumbo (que pode provocar todos estes sinais e mais ainda), um tratamento sintomático não servirá para nada.

    Desmontemos a metáfora. Não só as duas grandes crises acima referidas estão estreitamente relacionadas (o pico do petróleo e a mudança do clima surgem da nossa dependência dos combustíveis fósseis), mas – conforme já assinalei – muitas das nossas outras crises modernas, ou mesmo a sua maioria, também gravitam em torno dos combustíveis fósseis. Até os problemas antigos e permanentes como a desigualdade económica foram exacerbados pelos altos valores de fluxo energético.

    Passa-se o mesmo com a poluição. Nós, seres humanos, andamos a poluir o nosso ambiente de diversas maneiras há muito tempo; actividades como a mineração do chumbo e do estanho provocaram uma devastação localizada que permanecerá durante séculos. No entanto, o problema da poluição química que está espalhada um pouco por todo o ambiente é relativamente novo e tem vindo a piorar durante as últimas décadas. Acontece que os poluentes mais perigosos são os derivados dos combustíveis fósseis (pesticidas, plásticos e outros químicos que imitam hormonas) ou subprodutos da queima do carvão ou do petróleo (óxidos de nitrogénio e de outros que contribuem para a chuva ácida).

    A guerra pode parecer à primeira vista como um problema totalmente independente da nossa moderna avidez por fontes de energia fóssil. Mas, segundo o analista de segurança Michael Klare sublinhou no seu livro Blood and Oil , [13] a maior parte das guerras recentes rebentou por causa da competição para o controlo do petróleo; à medida que o petróleo se tornar mais escasso no ambiente pós pico, mais provável será haver outras guerras e conflitos civis por causa do ouro negro. Além disso, o uso de combustíveis fósseis no prosseguimento da guerra tornou muito mais mortais as mutilações autorizadas-pelo-estado. A maioria dos explosivos modernos é feita a partir de combustíveis fósseis e até a bomba atómica – que depende mais da fissão ou fusão nuclear do que dos hidrocarbonetos para o seu terrível poder – depende de combustível para os sistemas de envio.

    Podíamos continuar. Em resumo: Utilizámos a energia abundante e barata dos combustíveis fósseis de forma previsível para aumentar o nosso poder sobre a natureza e uns sobre os outros. Esta acção provocou um rol de problemas ambientais e sociais. Tentamos resolvê-los um a um, mas os nossos esforços serão muito mais eficazes se forem direccionados para a sua raiz comum – ou seja, se acabarmos com a nossa dependência dos combustíveis fósseis.

    E voltamos à minha tese: Decerto que há muitos problemas que merecem atenção, mas o problema da nossa dependência dos combustíveis fósseis é fulcral para a sobrevivência humana e portanto, enquanto essa dependência continuar em qualquer dimensão significativa, temos que fazer da sua redução a peça central de todos os nossos esforços colectivos – sejam esforços para nos alimentarmos, para resolvermos conflitos ou para mantermos uma economia a funcionar.

    Mas podemos formulá-lo de uma outra forma, mais encorajadora: Se concentrarmos todos os nossos esforços colectivos na tarefa central da transição energética, podemos vir a contribuir para a solução de um amplo leque de problemas que seriam muito mais difíceis de resolver se confrontados cada um por si só isoladamente. Através de uma redução coordenada e voluntária do consumo de combustíveis fósseis, podemos assistir a uma evolução substancial na redução de muitas formas de poluição ambiental. A descentralização da actividade económica, que é fatal acontecer quando os combustíveis para transportes se tornarem mais escassos, pode conduzir a mais empregos locais e a ocupações mais gratificantes, e a economias locais mais sólidas. Uma contracção controlada no comércio global do petróleo pode levar a uma redução das tensões políticas internacionais. Uma conversão planeada da agricultura para métodos com combustíveis não fósseis pode significar um declínio na devastação ambiental provocada pela agricultura e em oportunidades económicas para milhões de novos agricultores. Entretanto, todos estes esforços em conjunto podem aumentar a justiça, o envolvimento comunitário, a solidariedade entre gerações e outros bens intangíveis listados anteriormente.

    Decerto que é um futuro para que vale a pena trabalhar.

    O despertar (para uma triste realidade)

    O subtítulo deste livro, Acordar para o século dos declínios (Waking Up to the Century of Declines) reflecte a minha sensação de que mesmo aqueles que têm andado a pensar no esgotamento dos recursos há muitos anos ainda estão a despertar para as suas totais consequências. E se é verdade que estamos todos em várias fases do acordar para este problema, também é verdade que estamos a acordar do êxtase cultural de negação em que todos estamos mergulhados. [14]

    Este despertar é multi-dimensional. Não se trata apenas de ficar convencido, intelectual e desapaixonadamente, da realidade e da gravidade da alteração climática, do pico do petróleo, ou de qualquer outro problema específico. Pelo contrário, obriga a uma catarse emocional, cultural e política. A metáfora bíblica das escamas que caem dos olhos é tão adequada como a concepção da cultura pop de tomar a pílula vermelha e de ver o mundo através do Matrix: em ambos os casos, o despertar implica chegar à convicção de que o verdadeiro tecido da vida moderna é um tecido de ilusões – na verdade, de milhares de ilusões.

    Para que esse tecido se mantenha coeso, é necessária uma ilusão mestra, que é a noção de que, não se sabe bem como, o que hoje vemos à nossa volta é normal. Claro que, num certo sentido, é normal:   a experiência da vida diária de milhões de pessoas é normal por definição. A realidade dos automóveis, da televisão e da fast-food é assumida tranquilamente como garantida; se a vida sempre foi assim desde há décadas, porque é que não há-de continuar indefinidamente, com grandes mudanças de desenvolvimento? Mas como esta vida "normal" numa típica cidade moderna é profundamente diferente da vida das anteriores gerações dos seres humanos! E o facto de estar alicerçada nos caboucos dos combustíveis fósseis baratos significa que as gerações futuras terão que viver e irão viver de forma diferente.

    Mais uma vez, o despertar que descrevo é uma reavaliação progressiva, visceral e intelectual, de todas as facetas da vida – alimentação, trabalho, lazeres, viagens, política, economia e muito mais ainda. A experiência é tão abrangente que desafia uma descrição linear. E no entanto temos que tentar descrevê-la e exprimi-la; temos que transformar a nossa experiência multi-dimensional numa narrativa, porque é assim que nós humanos funcionamos e partilhamos as nossas experiências do mundo.

    A grande transição do século XXI exigirá enormes ajustamentos por parte de todos os indivíduos, famílias e comunidades, e para que esses ajustamentos sejam feitos com êxito, é preciso um planeamento racional. Terão que ser exploradas implicações e estratégias em quase todas as áreas de interesse humano – agricultura, transportes, guerra global e paz, saúde pública, gestão de recursos, e por aí fora. Serão necessários livros, estudos de investigação, documentários televisivos, outra qualquer forma imaginável de meios de informação de transferência para canalizar as informações necessárias em cada uma destas áreas. Além disso, são necessárias mais coisas para além dos materiais explicativos; precisamos de organizações de cidadãos que possam transformar a política em acção, e de artistas que criem expressões culturais que possam ajudar a incendiar a imaginação colectiva. No meio deste turbilhão de análise, ajustamento, criatividade e transformação, talvez haja necessidade e espaço para um livro que tenta simplesmente captar o espírito geral do tempo para que nos dirigimos, que relacione os diversos aparecimentos de mudança cultural com a ciência do aquecimento global e do pico do petróleo duma forma extraordinariamente surpreendente e divertida e que comece a abordar a dimensão psicológica da nossa transição global do crescimento industrial para a contracção e a sustentabilidade.

    Não podemos evitar a maior parte dos picos que enfrentamos, mas há muitas coisas que podemos fazer para navegar por entre eles de modo a reforçar o equilíbrio mental humano, a sua segurança e felicidade. Façamos essas coisas. Trabalhemos para construir um mundo futuro onde, a partir desse ponto de vantagem, daqui a décadas, possamos olhar para trás para estas premonições e considerá-las como demasiado sombrias.

    Notas
    [1] No OPEC Bulletin, Nov-Dec, 2006: "De modo geral, parece que a maioria concorda que o pico da produção do petróleo não está muito afastado de nós. Pode ocorrer a qualquer momento na próxima década, o que significa que já não há muito tempo para uma economia mundial alimentada sobretudo pelo petróleo". Entretanto, Claude Mandil, director executivo da International Energy Agency, falando no IEA World Energy Outlook 2006, actualizou isto: "O WEO-2006 revela que o futuro energético que enfrentamos hoje, baseado em projecções das tendências actuais, é sujo, inseguro e caro". www.energybulletin.net/22042.html
    [2] Robert Hirsch and al., Peaking of World Oil Production: Impacts, Mitigation, And Risk Management (2005), www.projectcensored.org/newsflash/the_hirsch_report.pdf
    [3] Ver também: Kenneth S. Deffeyes, "Beyond Oil: The View from Hubbert's Peak" ; (Hill and Wang, 2005), e Roger D. Blanchard, "The Future of Global Oil Production: Facts, Figures, Trends and Projections, da Region (McFarland, 2005).
    [4] Energy Watch Group, "Coal: Resources and Future Production," www.energywatchgroup.org/files/Coalreport.pdf. Ver também Richard Heinberg, "Burning the Furniture,"
    globalpublicmedia.com/richard_heinbergs_museletter_179_burning_the_furniture
    [5] http://kontentkonsult.com/blog/2006/01/peak_metals.html
    [6] Energy Watch Group, "Uranium Resources and Nuclear Energy," Dec., 2006 www.energiekrise.de/news/docs/specials2006/REO-Uranium_5-12-2006.pdf
    [7] Ivan Illich, Energy and Equity (Calder & Boyars, 1974), p. 17.
    [8] Ver http://en.wikipedia.org/wiki/Gini_coefficient
    [9] www.wider.unu.edu/
    [10] Os dados para este parágrafo foram retirados de "The Overworked American: The Unexpected Decline of Leisure" de Juliet B. Schor (Basic Books, 1993); ver também www.swiss.ai.mit.edu/~rauch/worktime/hours_workweek.html
    [11] GPI, www.socialfunds.com/news/article.cgi/117.html
    [12] Ver www.maweb.org/en/index.aspx , http://article.wn.com/view/2007/01/04/Global_warming_is_here_now_what/
    [13] Michael Klare, Blood And Oil: The Dangers And Consequences of America's Growing Dependency on Imported Petroleum (Metropolitan Books, 2004).
    [14] Agradeço à minha amiga Chellis Glendinning o seu livro intitulado "Waking Up in the Nuclear Age" (1987), que me inspirou de diversas maneiras.

    [NT] Permafrost é o solo (incluindo rocha, matéria orgânica e a água no solo) que permanece a temperaturas inferiores a 0º C por períodos superiores a 2 anos.
    [NR] Trata-se de um falso problema. Ver Aquecimento global: uma impostura científica , do Prof. Marcel Leroux.

    Este artigo é uma versão modificada da Introdução do livro "Peak Everything: Waking Up to the Century of Declines".

    Textos do mesmo autor em português:

  • Cinco axiomas da sustentabilidade
  • Como evitar guerras petrolíferas, terrorismo e colapso económico
  • Uma carta do futuro
  • O começo do fim da civilização industrial
  • Utensílios com vida própria
  • Protocolo do esgotamento petrolífero

    O original encontra-se em http://www.richardheinberg.com/museletter/185 . Tradução de Margarida Ferreira.

    Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
  • 17/Set/07