Como se constroem as lendas negras
Os "Protocolos dos Sábios do Islã
Para justificar o apartheid na Palestina e a guerra israelense contra o povo
palestino, a imprensa norte-americana recorre à técnica
clássica das lendas negras. Por força de repetição
mentirosa se forma a idéia de que existiria um complô
islâmico mundial dispondo de um plano global que se poderia chamar de
"Os Protocolos dos Sábios do Islã", em referência
a "Os Protocolos dos Sábios de Sião", manifesto
falsamente atribuído aos judeus, e difundido pela polícia
czarista
[1]
. O filósofo e historiador italiano, Domenico Losurdo, analisa aqui este
ardil propagandístico à luz de algumas referências
históricas.
Ao sondar na Internet as reações ao meu último livro,
Stalin, Storia e critica di una leggenda nera
(Stalin, História e crítica de uma lenda negra)
[2]
, pude perceber que, ao lado de comentários largamente positivos,
aparecem alguns sinais de incredulidade: é então possível
que as infâmias atribuídas a Stalin e acreditadas por um consenso
geral sejam no mais das vezes resultantes de distorções ou mesmo
de verdadeiras falsificações históricas?
É a estes leitores em particular que eu gostaria de sugerir uma
reflexão a partir dos eventos atuais. Todos temos diante dos olhos a
tragédia do povo palestino em Gaza, primeiramente privado de alimentos
pelo bloqueio, e agora invadido e massacrado pela terrível
máquina de guerra israelense. Vejamos como reagem os grandes meios de
"informação". No jornal
Corriere della Sera
de 29 de dezembro, o editorial de Piero Ostellino sentencia: "O artigo 7
da Carta do Hamas não defende somente a destruição de
Israel, mas a exterminação dos judeus, como afirma o presidente
iraniano Ahmadinejad". Notar-se-á que, embora faça uma
afirmação extremamente grave, o jornalista não apresenta
nenhuma citação textual: ele exige que suas palavras, e somente
elas, bastem para que se acredite naquilo que diz.
[3]
No mesmo jornal, alguns dias depois (3 de janeiro), Ernesto Galli della Logia
reincide nesta interpretação. Na verdade, este não mais se
refere a Ahmadinejad. Talvez ele se tenha apercebido do equívoco de seu
colega. Após Israel, o Irã é o país do Oriente
Próximo que mais abriga judeus (20 mil), e estes não parecem
sofrer perseguições. Em todo caso, os palestinos dos
territórios ocupados não poderiam senão invejar a sorte
dos judeus que vivem no Irã, os quais não somente não
foram exterminados, como também não precisam enfrentar a
ameaça de "transferência" que os sionistas mais radicais
fazem cair sobre os árabes israelenses.
Evidentemente, Galli della Loggia examina tais questões de modo muito
superficial. Se é bem verdade que o articulista não faz
menção a Ahmadinejad, por outro lado, ele chega a ir mais longe
que Ostellino nas acusações ao Hamas. Segundo suas palavras, o
Hamas não se limita a exigir a "exterminação dos
judeus" israelenses, como afirmou seu colega. É preciso não
parar a meio-caminho na denunciação dos planos malévolos
destes bárbaros: "o Hamas deseja a eliminação de
todos os judeus da face da terra" (
Corriere della Sera,
3 de janeiro). Também neste caso, a afirmação carece
inteiramente de provas: o rigor científico é a última
preocupação de Galli della Loggia, de quem é preciso, por
outro lado, reconhecer a coragem de desafiar o ridículo: segundo suas
análises, os "terrorristas" palestinos se propõem
não somente a liquidar a máquina de guerra de Israel, mas
também a dos Estados Unidos, para por fim chegarmos à mais grave
das infâmias das quais o editorialista do
Corriere della Sera
denuncia a amplitude planetária. Aliás, aqueles que são
capazes de infligir uma derrota decisiva à superpotência mundial,
podem, mais do que de Israel, aspirar à dominação do
mundo. Enfim, é como se Galli trouxesse finalmente à luz "Os
Protocolos dos Sábios do Islã".
Deste modo, "Os Protocolos dos Sábios do Islã", assim
como, em sua época, "Os Protocolos dos Sábios de
Sião", adquirem a partir de então valor de verdade
comprovada, e não necessitam nenhuma demonstração. Em
La Stampa
de 5 de janeiro, Enzo Bettiza determina imediatamente o significado dos
bombardeios massivos de Israel, lançados por céu, mar e terra,
com recursos aliás a armas interditas pelas convenções
internacionais, contra uma população substancialmente sem
defesas: "É uma operação de autodefesa
drástica e muito violenta, e a qual recorre um país
ameaçado de exterminação por uma seita que jurou
extirpá-lo da face da terra".
Esta tese, repetida à obsessão, se inscreve no quadro de uma
tradição bem precisa. Entre os séculos XVIII e XIX, padre
Gregório, um clérigo moderado, lutava pela abolição
da escravidão nas colônias francesas: ele foi então taxado
de liderar os "brancófagos", esses negros bárbaros e
ávidos de se alimentar da carne dos homens brancos. Alguns
decênios mais tarde, algo similar se passou nos Estados Unidos da
América: os abolicionistas, em sua maioria de fé cristã e
orientação não-violenta, exigiam "a
destruição completa do sistema escravocrata", e foram
prontamente acusados de querer exterminar a raça branca. Ainda na metade
do século XIX, na África do Sul, os defensores do apartheid
negaram direitos políticos aos negros, com o argumento de que um
eventual governo negro significaria a exterminação
sistemática dos colonos brancos e dos brancos em sua totalidade.
A lenda negra em voga nos nossos dias é particularmente ridícula:
o Hamas, por várias vezes, apontou para a possibilidade de haver um
acordo, caso Israel aceitasse um retorno às fronteiras de 67. Como todos
sabem ou deveriam saber, o que torna mais e mais problemática a
possibilidade de uma solução para os dois Estados, e talvez a
partir de agora impossível, é a expansão ininterrupta das
colônias israelenses nos territórios ocupados. Entretanto, a
substituição do atual Estado de Israel enquanto "Estado dos
judeus" por um Estado binacional que, ao garantir igualdade a todos, seja
ao mesmo tempo dos judeus e dos palestinos, não significaria de modo
algum a exterminação dos judeus, da mesma forma como a
destruição do Estado racial branco, no sul dos Estados Unidos e
posteriormente na África do Sul, decerto não resultou na
aniquilação dos brancos. Na realidade, aqueles que desfraldam, de
uma maneira ou de outra, "Os Protocolos dos Sábios do
Islã" querem transformar as vítimas em algozes e os algozes
em vítimas.
Não menos grotescas e não menos tendenciosas são hoje as
mitologias em voga sobre Stalin e o movimento comunista em sua totalidade.
Exemplo disso é a tese segundo a qual a União Soviética
teria imposto um "holocausto da fome" ou "fome terrorista"
ao povo ucraniano nos anos 30. Em sustento desta tese não existe e nunca
foi aduzida nenhuma prova.
[4]
Porém, o que há de mais essencial nisso tudo é uma outra
questão. A lenda negra difundida de modo planificado sobretudo na
época de Reagan e durante a Guerra Fria serve para esconder o fato de
que a "fome terrorista" pela qual se censura Stalin, foi desde
séculos levada a termo pelo Ocidente liberal e, particularmente, contra
os povos já colonizados ou contra aqueles que se queria reduzir a
condições coloniais ou semi-coloniais.
Tentei demonstrar tais fatos no meu livro. Imediatamente após a grande
Revolução negra que, no fim do século XVIII em São
Domingos/Haiti, rompeu ao mesmo tempo os grilhões da
dominação colonial e aqueles do sistema escravocrata, a resposta
dos Estados Unidos veio em conformidade com as declarações de
Thomas Jefferson, segundo as quais dever-se-ia reduzir à fome (
starvation
) o país que havia tido a impudência de abolir a
escravidão. O mesmo comportamento foi adotado no século XIX. E,
após Outubro de 1917, Herbert Hoover, na época alto representante
da administração Wilson, então presidente dos Estados
Unidos, levantava de modo explícito a ameaça de "fome
absoluta" e "morte por inanição" não
somente contra a Rússia soviética, mas contra todos os povos que
se deixassem contaminar pela Revolução bolchevique. No
começo dos anos 60, um colaborador da administração
Kennedy, Walt W. Rostow, se vangloriava do fato de que os Estados Unidos haviam
chegado a retardar por "dezenas de anos" o desenvolvimento
econômico da República Popular da China!
Tal política ainda hoje permanece: todos sabem que o imperialismo tenta
estrangular economicamente Cuba, e, se possível, reduzi-la à
condição de Gaza, onde os opressores, antes mesmo dos bombardeios
terroristas, já podiam exercer seu poder de vida e morte através
do controle dos recursos vitais.
Feitas estas considerações, podemos então voltar à
Palestina. Antes de sofrer o horror que sofre hoje, o povo de Gaza foi
combatido por uma política prolongada que tentava privá-los de
medicamentos e luz elétrica, reduzi-los à fome e à sede,
e, por fim, ao esgotamento e ao desespero. Apesar da "trégua"
que havia sido estabelecida, o governo de Tel Aviv, como de hábito,
arrogou-se o direito de proceder às execuções
extrajudiciais de seus inimigos. Cumpre ressaltar que, antes mesmo de ser
invadida por um exército que mais parece um pelotão de
execução gigantesco e experiente, Gaza já era objeto de
uma política de agressão e de guerra. Ao mesmo tempo, a
mídia, sobretudo no Ocidente, esforça-se por aniquilar toda
resistência crítica à tese falsa e mentirosa segundo a qual
Israel estaria engajado em uma operação de autodefesa: que
ninguém ouse duvidar da autenticidade dos "Protocolos dos
Sábios do Islã"!
Eis então como se constroem as lendas negras: esta de hoje sela a
tragédia do povo palestino (o povo mártir, por excelência,
de nossa época), assim como aquelas que, ao retratar Stalin como um
monstro e reduzir ao estatuto de crime o processo que começou com a
Revolução de Outubro, pretendem privar os povos oprimidos de toda
esperança e perspectiva de emancipação.
08/Janeiro/2009
[1] Os "Protocolos dos Sábios de Sião" foi um falso
manifesto em que os judeus conspirariam para a dominação mundial,
forjado pela polícia czarista como estratégia política. O
Czar Nicolau II, sentindo-se ameaçado pelo Manifesto Comunista, de Marx
e Engels, de 1848, aproveitou-se do fato de que Marx era judeu, para fazer com
que o comunismo fosse encarado como uma tentativa de dominação
mundial. Entretanto, como se sabe, Marx renegava o judaísmo e todas as
outras religiões, reputando-as alienantes.
[2] "Stalin. Storia e critica di una leggenda nera", Domenico
Losurno, com um ensaio de Luciano Canfora,
Ed. Carocci
, 2008, 384 pp.
[3] Sobre a posição real do Hamas, leia-se a entrevista que seu
porta-voz Moshir al-Masri nos concedeu:
"Quel est le programme politique du Hamas aujourd'hui?"
, conversa transcrita por Silvia Cattori, Réseau Voltaire, 20 de janeiro
de 2006.
Sobre a posição real do presidente Ahmadinejad, leia-se:
"Comment Reuters a participé à une campagne de propagande contre l'Iran"
, Réseau Voltaire, 14 de novembro de 2005. Para aprofundar esta
questão, leia-se o capítulo "Diaboliser l'Iran", da
obra
"L'Effroyable imposture 2, Manipulations et désinformations"
, de Thierry Meyssan, Ed. Jean-Paul Bertrand, 2008,
398 pp.
[4] Sobre a lenda negra do "holocausto da fome na Ucrânia",
leia-se o artigo de referência
"La Famine en Ukraine en 1933: une campagne allemande, polonaise et vaticane"
, de Annie Lacroiz-Riz, 2004.
Textos de Domenico Losurdo em resistir.info:
As raízes norte-americanas do nazismo
Negacionismo e liberdade de investigação
A suposta "não violência" do Dalai Lama é desmentida pela CIA
Acerca do liberalismo
Boicotar os Jogos Olímpicos de Pequim?
[*]
Filósofo e historiador, professor da
Università di Urbino,
Itália.
O original encontra-se em
http://domenicolosurdo.blogspot.com/
. A versão em francês em
http://www.voltairenet.org/article158941.html
. Tradução: Fernanda Correia de Oliveira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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