As raízes norte-americanas do nazismo
A invasão do Iraque, em Março de 2003, foi acompanhada por uma
curiosa campanha mediática contra os movimentos de
oposição à guerra, acusados então de
anti-americanismo.
É muito significativo que neste clima ideológico e
político os acusadores não recordassem o terror exercido pelo Ku
Klux Klan em nome do "americanismo puro", ou do "americanismo
cem por cento", face aos negros e aos brancos que se opunham à
supremacia branca. Tão pouco recordavam a caça às bruxas
de McCarthy contra os defensores de ideias ou sentimentos "não
americanos".
Em 1924,
Correspondance Internationale
(a versão francesa do órgão da Internacional Comunista)
publicava um artigo escrito por um jovem indochinês
imigrante nos Estados Unidos, no qual afirmava sentir grande
admiração pelo desenvolvimento norte-americano, ao mesmo tempo
que se horrorizava com a prática do linchamento de negros no Sul. Um
desses espectáculos de massas é descrito cruamente nesse texto:
"O negro é cozido, flamejado e queimado, pois deve morrer duas
vezes em lugar de uma só. É depois enforcado, ou mais
exactamente, o que resta do seu corpo é pendurado... Quando já
todos estão saciados, o cadáver é descido. A corda
é então cortada em pequenos pedaços, cada um dos quais
será vendido por três a cinco dólares". No entanto, a
denúncia do sistema de supremacia branca, não implicava uma
condenação global dos Estados Unidos: o Ku Klux Klan tinha toda
"a brutalidade do fascismo", mas seria derrotado, não
só pelos negros, judeus e católicos (todos vítimas em
diferentes graus), como por "todos os americanos decentes".
[1]
UM MARAVILHOSO PAÍS DO FUTURO
Foi um indochinês que comparou o Ku Klux Klan com o fascismo, mas as
semelhanças de ambos os movimentos eram também evidentes para os
autores norte-americanos da época. Os homens vestidos de branco do Sul
dos Estados Unidos eram frequentemente comparados aos
camisas negras
italianos e aos
camisas castanhas
alemães. Após assinalar as semelhanças entre o Ku Klux
Klan e o movimento nazi, um académico norte-americano da época
chegava à seguinte conclusão: "Se a Depressão
não tivesse atingido a Alemanha tão duramente, o
nacional-socialismo poderia ser hoje considerado como o é às
vezes o Klan: uma curiosidade histórica predestinada ao fracasso".
[2]
Por outras palavras, o que explica, tanto o fracasso do Ku Klux Klan nos
Estados Unidos, como o ascenso do Terceiro Reich na Alemanha, mais que as
distâncias na história ideológica e política,
são os diferentes contextos económicos. Mas deve também
ser considerado o importante papel desempenhado pelos movimentos
reaccionários e racistas norte-americanos como inspiradores da
agitação que conduziu Hitler ao poder na Alemanha.
Já nos anos vinte se tinham constituído as
relações, o intercâmbio e a colaboração entre
o Ku Klux Klan e a extrema direita alemã, para promover o racismo contra
judeus, negros e outras pessoas não brancas. Em 1937, o
ideólogo nazi Alfred Rosenberg exaltava os Estados Unidos como um
"maravilhoso país do futuro", que detinha o mérito de
ter formulado a brilhante "ideia de um Estado racial", uma ideia que
devia ser posta em prática, "com um poder jovem"
através da expulsão e deportação de "negros e
amarelos".
[3]
Basta analisar as leis publicadas imediatamente após a chegada dos
nazis ao poder para comprovar as semelhanças com a
situação que então se vivia no sul dos Estados Unidos. A
posição dos alemães de origem judia na Alemanha
correspondia obviamente à dos afro-norte-americanos no sul
estadunidense. Hitler distinguia claramente, inclusive no âmbito
jurídico, a posição dos arianos relativamente aos judeus e
aos poucos mulatos que viviam na Alemanha. "A questão negra",
escrevia Rosenberg, "é o mais urgente de todos os assuntos
decisivos nos Estados Unidos"; e uma vez que a noção de
igualdade deixava de ser aplicada aos negros, também deixava de haver
motivo para que não se extraíssem "as consequências
necessárias para amarelos e judeus".
[4]
Nada disto pode surpreender. Desde que o fundamento do projecto nazi era a
construção de um Estado racial, que outro modelo possível
existia nessa época? Rosenberg mencionava a África do Sul, que
devia permanecer solidamente em "mãos nórdicas e
brancas", e servia como um "sólido baluarte" diante da
ameaça representada pelo "despertar negro". Sem dúvida
que, até certo ponto, Rosenberg sabia que a política
segregacionista sul-africana era amplamente inspirada pelo sistema de
supremacia branca surgido nos Estados Unidos.
Por outro lado, o objectivo de Hitler não consistia num expansionismo
colonial tradicional, mas sim num império continental criado com a
anexação e germanização de territórios
vizinhos do Leste. A Alemanha era chamada a expandir-se para a Europa de Leste
como se se tratasse do longínquo Oeste americano, tratando os
"nativos" da mesma forma que os índios norte-americanos tinham
sido tratados, sem perder de vista o modelo estadunidense, que o Führer
exaltava pela sua "força interior sem precedentes".
[6]
Imediatamente após a invasão, Hitler procedeu ao desmembramento
da Polónia: uma parte, da qual foram expulsos os polacos, foi
directamente incorporada no Grande Reich; o resto foi transformado em
"Governo Geral" dentro do qual os polacos viviam "numa
espécie de reserva", como declara o Governador Geral Hans Frank,
[6]
o modelo norte-americano de liquidação da
população originária foi seguido quase literalmente.
O ESTADO RACIAL NA ALEMANHA E NOS ESTADOS UNIDOS
O modelo norte-americano deixou uma profunda marca inclusive no âmbito
das categorias e linguístico. O termo
Untermensch
(sub-homem), que desempenhou um papel tão central como destruidor na
teoria e prática do Terceiro Reich, não era mais que uma
tradução de
Under Man.
O nazi Rosenberg estava bem consciente desse facto e expressou a sua
admiração pelo autor americano Lothrop Stoddard, inventor do
termo, que aparece como subtítulo --
The Menace of the Under Man
(A ameaça do sub-homem) de um livro publicado pela primeira vez em Nova
York em 1922 e traduzido para o alemão
(Die Drohung das Untermenschen)
três anos mais tarde. Relativamente ao seu significado, Stoddard afirmava
que servia para designar a massa de
"selvagens e bárbaros
essencialmente incivilizáveis e incorrigivelmente hostis à
civilização", que deviam ser tratados de modo radical para
evitar o colapso desta. Já antes de ser elogiado por Rosenberg, Stoddard
havia sido recomendado por dois presidentes norte-americanos (Harding y
Hoover). Mais tarde foi recebido com honrarias em Berlim, onde se avistou com
as mais altas autoridades do regime, incluindo Hitler, que já havia
começado a sua campanha para dizimar e dominar os
Untermenschen,
os "nativos" da Europa de Leste.
Nos Estados Unidos da supremacia branca, assim como na Alemanha em poder do
movimento nazi, o programa para restabelecer a hierarquia racial estava
estreitamente vinculado a projectos de incentivo aos
melhores
para que procriassem, evitando assim o risco de "suicídio
racial"
(Rassenselbstmord)
que pesava supostamente sobre os brancos. Em 1918 Oswald Spengler dava a
voz de alarme,
citando o presidente estadunidense Theodore Roosevelt.
[7]
Decerto que a advertência de Roosevelt contra o espectro do
"suicídio racial" ou a "humilhação
racial" era acompanhada peIa denúncia da
"diminuição da taxa de nascimentos nas raças
superiores", ou seja, "o antigo
stock
de norte-americanos nativos" ou seja os WASP (Brancos Anglo-saxões
e Protestantes). Também aqui as descobertas da
investigação histórica são surpreendentes.
Erbgesundheitslehre
(educação para a saúde hereditária) ou
Rassenhygiene
(higiene racial), outra palavra-chave da ideologia nazi, não são
mais que as traduções para alemão do termo
eugenics
(eugenia) a nova
ciência
consagrada ao aperfeiçoamento racial, inventada em Inglaterra durante a
segunda metade do século XIX por Francis Galton. Não é por
acaso que esta nova ciência foi recebida tão favoravelmente nos
Estados Unidos. Em vésperas da Primeira Guerra Mundial, muito antes da
chegada de Hitler ao poder, publicou-se em Munique um livro intitulado
Die Rassenhygiene in den Vereinigten Staaten von Nordamerika
(A higiene racial nos Estados Unidos da América do Norte), que no
próprio título assinala já os Estados Unidos como um
modelo de "higiene racial". O autor, Géza von Hoffmann,
vice-cônsul do lmpério Austro-Húngaro em Chicago, exaltava
a América do Norte peIa "lucidez" e "pura razão
prática" demonstrada, ao afrontar com a
energia necessária,
um problema muito importante frequentemente ignorado: nos Estados
Unidos
violar as leis que proíbem as relações sexuais e o
matrimónio inter-racial podia ser punido com dez anos de prisão.
Não só podiam ser perseguidos e condenados os responsáveis
por esses actos como também os seus cúmplices.
[8]
Já depois do acesso dos nazis ao poder, os ideólogos e
"cientistas" da raça continuavam insistindo: "A Alemanha
tem muito que aprender com as medidas adoptadas pelos norte-americanos: eles
fazem o que deve ser feito".
[9]
Merece destaque o facto de ter aparecido nos Estados Unidos, muito antes do que
na Alemanha, a noção de "solução final" a
respeito da questão negra num livro publicado em Boston em 1913.
[10]
Ievada mais tarde a cabo pelos nazis, empregando o mesmo termo
(EndIösung)
para
resolver
a "questão judaica".
O NAZISMO COMO PROJECTO MUNDIAL DE SUPREMACIA BRANCA
No decurso da sua história, os Estados Unidos tiveram de enfrentar
directamente os problemas resultantes do contacto entre diferentes
"raças" e o afluxo de numerosos imigrantes procedentes de todo
o mundo. Por outro lado, o violento movimento racista, que aí surgiu no
final do século XIX, constituiu uma resposta à Guerra Civil e ao
período de reconstrução que se lhe seguiu.
Durante os séculos XIX e XX, o Ku Klux Klan e os teóricos da
"supremacia branca" acusavam os Estados Unidos posteriores à
escravatura (com a sua maciça entrada de imigrantes procedentes dos
países europeus menos desenvolvidos e do Oriente) de ser uma
"civilização mestiça" ou um "gentio de
cloaca". De forma análoga, Hitler descrevia no
Mein Kampf
a sua Áustria natal como um caótico "conglomerado de
povos", uma "Babilónia de gente", um "reino
babilónico" dilacerado pelo "conflito racial". Segundo
Hitler, a
catástrofe
era iminente na Áustria: a "eslavização" e a
"desaparição do elemento germânico" progrediam, e
o ocaso da raça superior que tinha colonizado e civilizado o Oriente
estava próximo. A Alemanha, para onde Hitler (que era austríaco)
foi viver, havia presenciado uma convulsão sem precedentes desde o final
da Primeira Guerra Mundial, uma comoção comparável
à que percorreu o Sul dos Estados Unidos depois da Guerra Civil.
Segundo a visão racista, mais grave ainda que a perda das suas
colónias, era que a Alemanha se via obrigada a suportar a
ocupação militar de tropas multirraciais das potências
vencedoras e que parecia ter sido transformada numa "misturada
racial". Este fantasma da proximidade do fim da civilização
era reforçado pelo surgimento da Revolução de Outubro,
apelando à rebelião dos povos colonizados. Esta
revolução estalou e afirmou-se numa área habitada por
povos tradicionalmente considerados à margem da
civilização.
Assim como os partidários da abolição da escravatura foram
assinalados no sul dos Estados Unidos como "amantes dos negros" e
traidores à sua própria raça, os social-democratas e
especialmente os comunistas eram considerados por Hitler como traidores
à raça germânica e ocidental. Em suma, o Terceiro Reich
apresentava-se como uma tentativa para impedir, sob condições de
guerra total e de guerra civil internacional, o suposto fim da
civilização,
o suicídio do Ocidente e da
raça superior
criando um regime de supremacia branca à escala mundial e sob hegemonia
alemã.
DE FORD A HITLER
Alguém se lembra do elogio do Ku Klux Klan ao "genuíno
americanismo de Henry Ford"? Amplamente admirado, o magnata
automobilístico condenava a Revolução Bolchevique
acusando-a de ser, em primeiro lugar, o produto de uma
conspiração judaica. Fundou até uma revista, o
Oearborn Independent,
cujos artigos publicados foram reunidos em 1920 num único volume
intitulado
O Judeu Internacional.
O livro transformou-se imediatamente numa referência básica do
anti-semitismo internacional, foi traduzido para alemão e adquiriu
grande popularidade. Nazis destacados, como Von Schirach e mesmo Himmler vieram
mais tarde a reconhecer terem sido inspirados ou motivados por Ford. Segundo
Himmler, o livro de Ford desempenhou um papel "decisivo"
(ausschlaggebend)
não só na sua formação pessoal, como também
na do Führer.
Também aqui se evidencia o carácter inconsistente de qualquer
comparação esquemática entre a Europa e os Estados Unidos,
como se a praga do anti-semitismo não afectasse ambos. Em 1933 Spengler
considerava necessário esclarecer este ponto: a fobia anti-judaica que
confessava abertamente, não devia confundir-se com o racismo
"materialista" típico "dos anti-semitas na Europa e na
América".
[11]
O anti-semitismo biológico que se agitava impetuosamente no outro
lado do Atlântico era considerado excessivo mesmo por um autor como
Spengler, que se expressava sem qualquer pudor nos seus escritos, contra a
cultura e a história judaicas. Por esta razão, entre outras,
Spengler foi considerado tímido e inconsequente pelos nazis, cujas
preferências se situavam noutro lado:
O Judeu Internacional
continuou a ser publicado com todas as vénias no Terceiro Reich, e com
editoriais que enfatizavam o singular mérito histórico do seu
autor (por haver trazido à luz a "questão judaica"),
estabelecendo uma linha de continuidade entre Henry Ford e Adolfo Hitler.
O OCIDENTE E A "DEMOCRACIA DO POVO DOMINANTE"
É oportuno destacar o paradoxo que caracterizou os Estados Unidos desde
a sua fundação, sintetizada no século XVIII pelo escritor
britânico Samuel Jonson:
"
Como poderemos suportar os estridentes gritos de liberdade dos
proprietários
de escravos?"
[12]
A
democracia
desenvolveu-se na América do Norte no seio da comunidade branca
simultaneamente com a escravização dos negros e a
deportação dos índios. Em 22 dos primeiros 36 anos como
nação independente, a presidência esteve nas mãos de
proprietários de escravos. Também eram proprietários de
escravos os que redigiram a Declaração de Independência e a
Constituição. Sem escravatura (mais a correspondente
segregação racial) não se pode entender a "liberdade
americana": as duas estavam vinculadas, sustentando-se uma à
outra. Enquanto a escravatura assegurava o firme controlo sobre as classes
"perigosas" no âmbito da produção, a
expansão para o Oeste servia para desactivar o conflito social,
transformando o proletariado potencial numa classe de proprietários
agrícolas, ainda que a expensas dos povos originários, que seriam
expulsos ou aniquilados.
Depois da Guerra da Independência, a democracia norte-americana
experimenta novos desenvolvimentos durante a presidência de Jackson na
década de 1830: a extensão do sufrágio e a
eliminação, em grande parte, das restrições
relacionadas com a propriedade na comunidade branca, eram concomitantes com a
rigorosa deportação dos índios norte-americanos e com o
crescente ressentimento e violência contra os negros. O mesmo se pode
dizer do período compreendido entre o final do século XIX e a
metade da segunda década do século XX, onde se combinaram
reformas como a instauração da eleição directa dos
membros do Senado, o voto secreto, a introdução de
eleições primárias e de instituições de
referendo, etc". com factos sobremaneira trágicos para a
população negra (alvo dos esquadrões do terror do Ku Klux
Klan) e a expulsão dos índios norte-americanos dos seus
últimos territórios e a sua submissão a uma brutal
aculturação, com a intenção de os despojar
inclusive da sua identidade cultural.
Relativamente a este paradoxo, numerosos intelectuais norte-americanos se
referiram a uma
Herrenvolk democracy,
ou seja uma democracia apenas para "Senhores" (para usar uma
expressão do tipo das que Hitler apreciava).
Na realidade, a categoria "democracia do povo dominante" pode ser
útil para explicar a história do Ocidente como um todo. Desde o
final do século XIX e nos princípios do século XX, a
extensão do sufrágio na Europa marcha a par com a
colonização e a imposição de relações
laborais de servidão e semi-servidão aos povos submetidos. O
governo democrático na Europa estava fortemente entrelaçado com o
poder da burocracia e com a violência policial, e o estado de
sítio nas colónias. Em última análise, trata-se do
mesmo fenómeno que ocorrida nos Estados Unidos, com a diferença
que na Europa era menos evidente porque os povos colonizados viviam do outro
lado do oceano.
MISSÃO IMPERIAL E FUNDAMENTALISMO CRISTÃO
Em 1899, a revista
Christian Oracle
explicava assim a decisão de mudar o seu título para
Christian Century:
"Cremos que o próximo século será testemunha de
triunfos do cristianismo jamais vistos, e que será mais verdadeiramente
cristão que qualquer dos precedentes".
Mais adiante o presidente McKinley explicava que a decisão de anexar as
Filipinas procedia da inspiração do "Todo poderoso"
que, depois de escutar as incessantes preces do presidente, numa noite de
insónia, o tinha por fim, libertado de toda a dúvida e
indecisão. Não teria sido adequado deixar a colónia nas
mãos da Espanha, ou entregá-la "à França ou
à Alemanha, nossos rivais no comércio do Oriente". Nem,
peIa mesma razão, teria sido correcto deixar as Filipinas aos
próprios filipinos, que eram "incapazes de se autogovernar", o
que teria Ievado o país a um estado de "anarquia e desgoverno"
ainda pior que o resultante da dominação espanhola:
"Não temos outra alternativa senão tomarmos tudo a nosso
cargo, e educar os filipinos, civilizá-los e cristianizá-los, e,
peia graça de Deus, fazer o mais que pudermos por eles, como
companheiros nossos por quem Cristo também morreu. Voltei então
para a cama e dormi profundamente".
[13]
Hoje conhecemos os horrores perpetrados durante a repressão do movimento
independentista nas Filipinas: a guerrilha desenvolvida pelos filipinos foi
enfrentada com a destruição sistemática de campos e gados,
pelo confinamento maciço da população em campos de
concentração, onde pereciam vítimas da fome e da
doença, e inclusive em alguns casos, do assassinato de todos os
varões maiores de dez anos.
Sem dúvida que, apesar das dimensões dos "danos
colaterais", a marcha da ideologia imperial-religiosa da guerra se
reactivou triunfalmente durante a Primeira Guerra Mundial, quando o presidente
Wilson a eIa se referia como se se tratasse de uma cruzada real, de uma
"guerra santa, a mais sagrada em toda a história", destinada a
impor a democracia e os valores cristãos em todo o mundo.
A mesma plataforma ideológica foi aplicada a outros conflitos no
século XX, sendo a Guerra Fria particularmente exemplar neste aspecto.
John Foster Dulles, era definido por Churchill como "um severo
puritano".
Dulles orgulhava-se de que "ninguém no Departamento de Estado
conhece a Bíblia como eu". O seu fervor religioso não era de
modo
nenhum um assunto privado: "Estou convencido que aqui temos a necessidade
de fazer que os nossos pensamentos e práticas políticas reflictam
com a maior fidelidade a convicção religiosa
de que o homem tem a sua origem e destino em Deus".
[14]
A esta fé, associavam-se outras categorias teológicas
fundamentais na luta política internacional: os países neutrais
que recusavam tomar parte na cruzada contra a União Soviética
estavam em "pecado", enquanto que os Estados Unidos, à
cabeça dessa cruzada, representavam o "povo moral" por
definição.
Em 1983, Ronald Reagan, quando a Guerra Fria atingia o seu clímax,
apontou a necessidade de derrotar o inimigo ateu (a URSS), com claros acentos
teológicos: "Há no mundo pecado e maldade, e as Escrituras e
Jesus nosso senhor ordenaram-nos que nos oponhamos a isso com todo o nosso
poder".
[15]
Alinhando-se com esta tradição e radicalizando-a ainda mais,
George W. Bush conduziu a sua campanha eleitoral sob um autêntico dogma:
"A nossa nação é a eleita de Deus e foi escolhida
peIa História como um modelo de justiça para o mundo".
A história dos Estados Unidos está marcada peIa
tendência a transformar a tradição judaico-cristã
numa espécie de religião nacional que consagra o
excepcionalismo
do povo norte-americano e a missão sagrada
que lhe foi confiada. Não é este entrelaçamento de
religião e política sinónimo de fundamentalismo?
Não foi por acaso que o termo
fundamentalismo
foi utilizado pela primeira vez no âmbito do protestantismo
norte-americano.
Certamente que qualquer administração norte-americana terá
os seus hipócritas, os seus intriguistas e os seus cínicos; mas
não há motivos para duvidar da sinceridade de Wilson ou,
actualmente, de Bush Jr. Não devemos esquecer o facto de que os Estados
Unidos não são uma verdadeira sociedade secular, a arraigada
convicção de representar uma
causa
sagrada e divina facilita não só a constituição de
uma frente unida em tempos de crise, mas também a repressão e
banalização das páginas mais obscuras da história
estadunidense. Durante a Guerra Fria, Washington patrocinou sangrentos golpes
de Estado na América Latina e colocou no poder brutais ditadores
militares; em 1965, promoveu na Indonésia o massacre de centenas de
milhares de comunistas ou seus simpatizantes. No entanto, por mais
desagradáveis que possam ser, esses
detalhes
não alteram a santidade da causa personificada pelo
"Império do Bem".
Max Weber costumava referir-se à "moralina"
(farisaísmo) norte-americana. "Moralina" não significa
mentira, nem hipocrisia consciente. É tão só a hipocrisia
dos que são capazes de mentir a si mesmos, o que se assemelha à
falsa consciência
assinalada por Engels. De todo o modo, não é fácil
compreender totalmente essa mescla de fervor religioso e moral, por um lado, e
a clara e aberta tentativa de domínio político, económico
e militar do mundo, por outra. É sem dúvida, esta
amálgama (combinação explosiva), este peculiar
fundamentalismo, que constitui actualmente a grande ameaça à paz
mundial. O fundamentalismo norte-americano intoxica um país que,
designado e autorizado por Deus,
considera irrelevantes a ordem internacional actual e as regras
humanitárias. É neste quadro que devemos situar a
deslegitimação das Nações Unidas, o desprezo peIa
Convenção de Genebra, e as ameaças proferidas não
só contra os seus inimigos, como também contra os seus
"aliados" na OTAN.
O DESPOTISMO IMPERIAL
Além de combater o "mal" e defender os valores cristãos
e norte-americanos, a guerra contra o Iraque (não contando com outras
guerras em perspectiva) pretende expandir a
democracia
por todo o mundo. Retomemos por um momento o jovem indochinês que em 1924
denunciava o linchamento de negros. Mais tarde regressou ao seu país e
aí adoptou o nome pelo qual seria mundialmente conhecido: Ho Chi Minh.
Durante os incessantes bombardeamentos norte-americanos no Vietnam, terá
o dirigente vietnamita recordado os horrores perpetrados contra os negros pelos
defensores da supremacia branca? Por outras palavras, a
emancipação dos afro-norte-americanos e sua conquista dos
direitos civis marcaram realmente uma mudança, ou continuam os Estados
Unidos a ser uma
Herrenvolk democracy,
uma democracia de "Senhores", com a diferença de que agora os
excluídos já não são os que estão dentro da
mãe pátria, mas antes os que estão fora, como aconteceu no
caso da "democracia" europeia?
Podemos examinar a questão numa perspectiva diferente, considerando a
reflexão de Kant: "Oue é um monarca absoluto? É
aquele que quando decide que deve haver guerra, há guerra". Kant
não se referia aos Estados do Antigo Regime, mas sim à
Inglaterra, no limiar do seu século de desenvolvimento liberal.
[16]
De acordo com a posição kantiana, o actual presidente dos
Estados Unidos deveria ser considerado um déspota por dois motivos.
Primeiro, devido ao surgimento, na última década, de uma
"presidência imperial" que, quando embarca em
acções militares, as apresenta frequentemente ao Congresso como
um
facto consumado.
Mas estamos ainda mais interessados no segundo aspecto: é a Casa Branca
que soberanamente determina quando as resoluções das
Nações Unidas são vinculativas ou não; é a
Casa Branca que soberanamente decide que países são "Estados
delinquentes" e se é legal submete-los a embargos que irão
causar o sofrimento de toda uma população, ou ao fogo infernal de
bombas de fragmentação ou de urânio empobrecido. A Casa
Branca decide soberanamente a ocupação militar desses
países, pelo tempo que considerar necessário, condenando os seus
dirigentes e os seus "cúmplices" a prolongadas penas de
prisão. Contra estes e contra os "terroristas", chega a ser
legitimado o "assassinato selectivo", ou melhor, um assassinato que
é tudo menos selectivo, como o bombardeamento de um restaurante porque
se pensava que Saddam Hussein podia estar lá. As garantias legais
não se aplicam de todo aos "bárbaros" .
A tudo isto se junta a crescente intolerância que Washington manifesta
para com os seus "aliados" ocidentais. Também a eles exige
que sigam com humildade a vontade da nação eleita por Deus, cujo
presidente se comporta como se fosse um soberano mundial, sem o controle de
qualquer organismo internacional.
NOTAS
1. Wade, Wyn Craig. 1997.
The Rery Cross: The Ku Klux Klan in America.
New York and Oxford: Oxford University Press.
2. MacLean, Nancy. 1994.
Behind the Mask 01 Chivalry: The Making of the Second Ku Klux Klan.
New York and Oxford: Oxford University Press.
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Der Mythus des 20. Jahrhunderts.
Munich: Hoheneichen. Publicado pela primeira vez em 1930.
4. lbid.
5. Hitler, Adolf. 1939.
Mein Kampf.
Munich: Zentralverlag der NSDAP. Publicado pela primeira vez em 1925.
6. Ruge, Wolfgang, and Wolfgang Schumann (eds.). 1977.
Dokumentezurdeutschen Geschichte.
1939-1942. Frankfurt a. M.: Radelberg.
7. Spengler, Oswald. 1933.
Jahre der Entsche idung.
Munich: Beck. 1980.
Der Untergang des Abendlandes.
Munich: Beck. Original 1918-23.
8. Hoffrnann, Géza voo. 1913.
Die Rassenhygiene in den Vel'9inigt9n Staaten von Nordamerika.
Munich: Lehmanns.
9. Günther, Hans S. R. 1934.
Rassenkunde des deutschen Volkes.
Munich: Lehmanns. Publicado pela primeira vez em 1922.
10. Fredrickson, George M. J.
The Black Image in the White Mind: The Debate on Afro-American Character and
Destiny,
1817-1914. Hanover, N.H.: Wesleyan University Press. Publicado pela primeira
vez em 1971.
11. Spengler,
op.cit.
12. Foner, Erich. 1998.
The History of American Freedom.
London: Picador.
13. McAllister Uno, Brian. 1989.
The U. S. Army and Counterinsurgency in the Philippine War, 1899-1902.
Chapel HiII and London: University of North Carolina Press.
14. Kissinger, Henry. 1994.
Diplomacy.
New York: Simon and Schuster.
15. Draper, Theodore. 1994. "Mission Impossible".
New York Review of Books
(6 October).
16. Kant, Immanuel. 1900. "Der Streit der Fakultaten". In
Gesammelte Schriften.
vai. 7. Berlin and Leipzig: Akademie-Ausgabe. Publicado pela primeira vez em
1798.
[*]
Investigador do Istituto di Science Filosofiche e Pedagogiche, Urbino,
Itália.
O original encontra-se em na revista argentina
Enfoques alternativos
, nº 27, Out-Nov/2004.
Tradução de Carlos Coutinho.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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