Boicotar os Jogos Olímpicos de Pequim?
Asor Rosa e a ideologia da guerra
Quando me chegaram as primeiras informações acerca do convite de
Alberto Asor Rosa
[**]
para boicotar os Jogos Olímpicos, pensei que fossem os Jogos de Londres
de 2012 que estivessem na mira. Com efeito, o seu apelo é também
atribuível a um país que se distingue há vários
anos pela violação da Carta da ONU e que acabour por se
tornar responsável, ao lado dos Estados Unidos, pela agressão ao
Iraque. A catástrofe que daí resultou está à vista
de todos: as vítimas civis contam-se às dezenas ou centenas de
milhares, os refugiados aos milhões; repugnante é o insulto aos
direitos do Homem que está em curso em Abu Ghraib; há
décadas discriminado, o país arrisca agora o desmembramento.
Os Jogos Olímpicos de Pequim e os de Londres
E isto não acaba aqui. Ainda no Oriente, a sombra ameaçadora de
invasão ou de bombardeamentos paira agora sobre a Síria e o
Irão, enquanto o espectro de uma "terceira guerra mundial",
com recurso a armamento nuclear mais ou menos "táctico": tudo
graças à política não apenas de Washington mas
também de Londres. Será mesmo necessário recompensar com
um convite à realização dos Jogos, que deveriam ser
sinónimos de convivência pacífica entre
nações, uma capital que se distingue pela sua arrogância
imperial e a sua política de guerra?
De seguida, li o artigo publicado em
La Repubblica
de 16 de Outubro: não, Asor Rosa volta-se apenas contra os Jogos de
Pequim, e ameaça o seu boicote repetindo todos os lugares comuns da
ideologia dominante. O extraordinário esforço de um país,
que num curto espaço de tempo assegurou o direito à vida a
centenas de milhões de homens, é desdenhosamente liquidado como a
"máquina do desenvolvimento e da exploração
económica" posta em marcha pela sua "estrutura centralista e
autoritária". Sem se aperceber, Asor Rosa torna-se apologista
enfático do sistema político que ele pensa no entanto condenar:
seria difícil legitimar a "estrutura centralista e
autoritária", se esta fosse suficiente por si só para salvar
a massa imensa de homens que ainda sofrem de fome e morrem, no Terceiro Mundo.
Na verdade, as coisas são bem diferentes. A "estrutura centralista
e autoritária" não está certamente ausente de um
país como o Egipto, que, no entanto, continua a esperar e a depender da
farinha americana: para a obter, Murabak tem de se submeter à
política de guerra e de opressão que os Estados Unidos e Israel
conduzem no Médio Oriente. O caso da China é bem diferente pois,
ao sair do subdesenvolvimento, leva simultaneamente a bom termo o plano
económico e a independência política obtida no seguimento
de uma luta de libertação nacional épica.
É por essa razão que está em curso uma espécie de
cruzada contra o grande país asiático, cruzada à qual se
associa também Asor Rosa. Ei-lo listando uma série de
"valores absolutos" e de "direitos universais" (liberdade
de expressão, de culto, de associação, etc.), todos, ao
que parece, sistematicamente violados por Pequim.
Os sindicatos na China
As "liberdades sindicais" também seriam reprimidas. E a
desenvoltura que caracteriza o artigo no seu todo torna-se aqui mais evidente
do que nunca. Foi justamente na China que o líder mundial da grande
distribuição (Walt Mart) foi obrigado a reconhecer aos seus
assalariados o direito à associação sindical que ele
continua a recusar no mundo inteiro e nos Estados Unidos em primeiro lugar.
Sim, objectar-se-á, mas nas lojas chinesas apenas o sindicato oficial
é tolerado e geralmente é acusado de pouco actuar na luta por
aumentos salariais. Mas será esta acusação convincente?
No grande país asiático, todos os anos, entre 10 e 15
milhões de habitantes abandonam o campo (superpovoado e ainda atrasado)
para se instalarem na cidade (incluindo essas novas cidades que emergem do
nada): nessas condições, mesmo a CGIL (a maior central sindical
italiana) do grande Di Vittorio teria posto a tónica nos postos de
trabalho e, consequentemente, na expansão da economia. E no entanto
lamenta-se o
Wall Street Journal-Europe
de 6 de Junho de 2007 "desde há vários anos que os
salários chineses aumentam sem interrupção a um ritmo
anual de 10%". A taxa de crescimento conheceria uma
aceleração ulterior: também por causa da melhoria das
condições de vida nos campos, os emigrados, actualmente,
"aspiram a salários 16% mais elevados do que no ano anterior"
e exigem e conseguem arrancar também alguns benefícios e
melhorias ulteriores.
Mais impressionantes ainda são os dados publicados pelo semanário
alemão
Die Zeit
de 18 de Outubro, num artigo de Georg Blume: "Neste momento, os
salários mais baixos aumentam 30% por ano, enquanto a receita
média progride para 14%, logo, mais rapidamente que uma economia que no
entanto se desenvolve de maneira muito dinâmica". É verdade,
o custo do trabalho aumenta mais lentamente, mas apenas por causa do
desenvolvimento rápido da produtividade. Bem vistas as coisas, apesar de
todos os seus limites e atrasos, o sindicato oficial chinês revela-se
claramente mais maduro que os seus críticos (inclusive os de
"esquerda"): ele apela à classe trabalhadora para que
não se feche dentro de um corporativismo estreito, para ser, ao
contrário, a protagonista do processo de industrialização
e de modernização do gigantesco país asiático na
sua totalidade; protagonista da luta nacional para a aquisição
das tecnologias mais avançadas, de modo a não reforçar
apenas a independência da China mas também a romper com o
monopólio detido até agora nesse domínio pelo Ocidente.
É igualmente graças à deterioração desse
monopólio e à possibilidade de aceder a produtos cada vez mais
sofisticados e à tecnologia em rápido desenvolvimento da
República Popular da China, que países como Cuba e a Venezuela
conseguem resistir à política de estrangulamento económico
posta em marcha por Washington. Eles sabem bem disso, os círculos
imperialistas largamente implicados na política de isolamento do gigante
asiático: é através desse isolamento que passa a
reafirmação da doutrina Monroe na América Latina e a
imposição da hegemonia estado-unidense no mundo.
Uma estranha ideia de democracia
Asor Rosa sobrevoa tudo isto de muito alto. Entre os "valores
absolutos" e os "direitos universais" que ele enumera,
não figuram nem o direito à paz nem o direito de as
nações beneficiarem da democracia nas relações
internacionais e não terem de se sujeitar à lei do mais forte.
São assim ignorados ou afastados os "valores absolutos" e os
"direitos universais" apagados pelos aspirantes a patrões do
mundo, os quais, graças precisamente a esse apagamento, podem
atribuir-se a missão de exportar a democracia para o mundo inteiro,
tendo recurso a todos os meios, incluindo embargos económicos,
ameaças de todo o tipo e agressões militares reais.
Despreocupado com tudo isso, Asor Rosa convida a Itália (e
indirectamente o "Ocidente democrata capitalista") a lançar um
ultimato: se no dia da abertura dos Jogos, "todos os órgãos
da imprensa e televisão chineses" não tornarem
público "um documento a favor dos direitos universais de
expressão e de associação", os Jogos Olímpicos
de Pequim serão boicotados. Uma visão singular da democracia
torna-se clara aqui: não apenas os dirigentes do Comité
Olímpico internacional, mas também o secretário-geral da
ONU, eleito pelos representantes dos países do mundo inteiro, se
pronunciaram repetidamente e com força contra a ideia do boicote. Asor
Rosa, ao contrário, atribui em última análise às
ex-potências o direito soberano de julgar e punir um país outrora
por eles atingido, através de agressões militares repetidas e
infames. É uma atitude ainda mais assombrosa que esse mesmo Asor Rosa
reconheça que na China apenas uma "minoria da
população" pense como ele; e, no entanto, em nome do
"valor absoluto" da democracia, a maioria dos habitantes do
país mais populoso do mundo é chamada a inclinar-se perante a
vontade das grandes potências ocidentais (e do grande intelectual romano)!
Mas concentremo-nos nos "direitos universais de expressão e de
associação", em nome dos quais é lançado o
ultimato. Por um lado, Asor Rosa ignora os notáveis progressos
realizados pela China, em condições difíceis, nesse
domínio. Nos anos 70 do século XX, Deng Xiaoping sublinhava a
importância do governo da lei; ao contrário, a "nova
esquerda" italiana e ocidental continuava a celebrar a
Revolução Cultural que, neste aspecto, juntamente com o
socialismo realista, olhava as liberdades e garantias "formais" com
um desprezo soberano. Entretanto, a tutela dos direitos do Homem foi inserida
na Constituição chinesa. Não se trata de um gesto
"formal" ou de um caso isolado: no país está em curso
a tradução sistemática dos grandes textos da cultura
ocidental, inclusive os comprometidos em larga medida com a
teorização dos direitos do Homem, problemática que tende a
adquirir a dignidade de disciplina universitária. De forma cada vez
mais geral, vê-se crescer rapidamente o número de
organizações não governamentais, de jornais, de
universidades, de estudantes e diplomados que estudam no Ocidente, e de
professores ocidentais chamados a ensinar nas universidades chinesas. Claro que
o caminho a percorrer ainda é longo, e o grande país
asiático não se quer abrir imediatamente à
"democracia" da mesma forma que o fizeram a Jugoslávia e a
Rússia: países que sofreram uma catástrofe
económica, social, nacional e humanitária, com um Ocidente sem
escrúpulos pronto a tirar lucros a fim de alargar a sua esfera de
influência e de domínio.
Mas enquanto ignora, por um lado, os progressos feitos pela China mesmo no
âmbito dos "direitos universais de expressão e de
associação", por outro lado Asor Rosa embeleza o
comportamento da Itália e do Ocidente "democrático e
capitalista". Mas quem é que, na Primavera de 1999, assassinou com
bombardeamentos aéreos os jornalistas jugoslavos culpados de não
partilhar da opinião das cimeiras e dos ideólogos da NATO e de se
obstinar a condenar a agressão sofrida pelo seu país? E quantos
jornalistas foram "acidentalmente" mortos pelas forças de
ocupação no Iraque ou na Palestina? Será que os habitantes
de Gaza beneficiam dos "direitos universais de expressão e de
associação", os quais, depois de terem votado no Hamas no
decurso de eleições livres, se vêem agora condenados ao
boicote, ao estrangulamento económico e ao embargo? Para terminar: os
árabes e os muçulmanos que nos Estados Unidos ousem contribuir
com uma subscrição a favor da população da Gaza e
do Hamas arriscam-se a ser perseguidos e condenados como
"terroristas".
Clinton, ao pronunciar o discurso que inaugurava o seu primeiro mandato
presidencial, exaltava os Estados Unidos como sendo a mais antiga democracia do
mundo e portanto como o país chamado a "conduzir o mundo" na
via da liberdade, no quadro de uma missão "sem prazo",
Naturalmente, o presidente estado-unidense não fazia referência
nem ao aniquilamento dos peles vermelhas, nem ao regime de escravatura e de
opressão racial infligida durante séculos aos negros, nem
à repressão impiedosa e às práticas de
genocídio postas em prática pelos Estados Unidos nas suas
verdadeiras colónias (Filipinas) e nas suas semi-colónias na
América Latina. Asor Rosa argumenta da mesma maneira. Quando ele
propõe, em matéria de "direitos universais de
expressão e de associação" erigir um tribunal, no
âmbito do qual a China é acusada e a Itália e o Ocidente
"democrático e capitalista" são os juízes, ele
suprime do quadro as infâmias antidemocráticas que ainda hoje
mancham o Ocidente quando se trata de dobrar a resistência dos
países e dos povos que ele entende poder submeter ao seu domínio.
É um traço característico da falsa consciência do
Ocidente abstrair-se da sorte reservada às suas vítimas para se
poder autocelebrar como lugar de liberdade; e é a partir dessa falsa
consciência que o Ocidente pode fazer passar as suas guerras de
contrabando como uma contribuição para a difusão da
democracia. Asor Rosa faria bem em reflectir sobre tudo isto. Seria triste ver
um prestigiado intelectual de esquerda enveredar pelo caminho da
tradição cultural pró-colonialista e
pró-imperialista, e tornar-se um ideólogo da guerra (quer seja
fria ou quente)!
12/Dezembro/2007
[*]
Domenico Losurdo
: filósofo e historiador em Urbino, autor de numerosas obras.
[**]
Alberto Asor Rosa
: professor de literatura na La Sapienza, em Roma, é escritor e
crítico literário.
O original encontra-se em
"L'Ernesto. Rivista comunista"
, número de Setembro/Outubro de 2007, pp. 59-61. A
tradução em francês encontra-se em
http://www.legrandsoir.info/article.php3?id_article=5807
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Tradução do francês para português de RM.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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