Ser de esquerda
por Daniel Vaz de Carvalho
|
Um socialista é mais do que nunca um charlatão social que quer,
usando um conjunto de panaceias e todos os tipos de remendos, suprimir as
misérias sociais, sem fazer o menor dano ao capital e ao lucro.
Engels
|
1 - A demanda do "Graal" capitalista por certa "esquerda"
[1]
A veemência de Engels ganha maior relevo nos tempos atuais. Uma primeira
evidência é designar-se como "esquerda" ideias e
partidos que exibindo-se como "esquerda" não passam de
máscaras para o neoliberalismo e uma intransigente defesa do
sistema capitalista, em suma políticas de direita.
Segundo Engels, "os chamados socialistas dividem-se em três
categorias". Os reacionários, que, pese embora a fingida
compaixão pela miséria do proletariado, esforçam-se por
restabelecer os privilégios e o domínio da aristocracia
(atualmente financeira)
e os donos da grande indústria. Os comunistas lutarão sempre
contra esta categoria, pois não oferecem a menor perspectiva de
libertação dos trabalhadores. Mostram os seus verdadeiros
sentimentos cada vez que o proletariado se torna revolucionário,
aliando-se à burguesia contra o proletariado. A segunda categoria, os
socialistas burgueses, são partidários da sociedade atual. Para
suprimir os seus males propõem grandiosos planos de reformas mantendo
todas as bases dessa mesma sociedade. Trabalham de facto para os inimigos dos
comunistas. A terceira categoria os social-democráticos, propõem
em parte medidas comuns aos comunistas, não como forma de
transição para a sociedade comunista, mas apenas como meio que
seria suficiente para acabar com a miséria e males da sociedade atual.
Os comunistas entender-se-ão com eles nos momentos de ação
e no possível para ter uma política comum sempre que não
se coloquem ao serviço da burguesia.
[2]
Encontramos evidência das duas primeiras categorias no PS. A terceira
categoria corresponde, parece-nos, ao Bloco de Esquerda. A
social-democracia/socialismo reformista, intitula-se de esquerda, mas apenas
pretende gerir um modelo de capitalismo idealizado, sem antagonismos,
economicamente racional, moralmente humanitário, ignorando e querendo
que se ignore que a racionalidade capitalista reside exclusivamente na
maximização do lucro e a sua moral social esvai-se na
concorrência, na anarquia da produção, nas necessidades de
recapitalização originadas pelas crises provocadas pelo capital
monopolista e financeiro.
Efetivamente, o "capitalista pode ser um cidadão exemplar, mas
enquanto capitalista é capital personificado. A sua alma é a alma
do capital e tem um único impulso vital, o de se valorizar, de criar
mais-valia, de sugar a maior parte possível de sobretrabalho.
[3]
O PS é um partido democrático, porém a sua democracia
radica numa "idílica abstração dos antagonismos de
classe" (Marx,
A Luta de Classes em França
). O PS prossegue a miragem de um "bom capitalismo", uma tese que o
arrasta para toda a espécie de conservadorismos. As críticas ao
governo PSD-CDS limitam-se ao circunstancial, considerando-se capaz de fazer
funcionar melhor o capitalismo. Esquece que a sua miragem dos anos 60, foi o
resultado de duras lutas de classe, organizadas na base de sentimentos
revolucionários, após a derrota do nazi-fascismo e, claro,
também da exploração imperialista e neocolonial sobre os
países dependentes. O Syriza é o mais recente exemplo do fracasso
da social-democracia na demanda de um "bom capitalismo".
[4]
2 - A social-democracia esteio da política de direita
Se se chegou ao descalabro em que o país e a UE se encontram foi porque,
como Engels salientou, nos momentos decisivos da luta de classes a
social-democracia/socialismo reformista se colocou ao lado do capital e do
divisionismo das camadas trabalhadoras (como foi evidente no Portugal
pós-25 de Abril) até alinhar com o neoliberalismo, mascarando-o
de "socialismo do século XXI". Nuns casos preparou o caminho
para a direita, noutros prosseguiu e aprofundou essas políticas, como T.
Blair relativamente a Thatcher, Hollande relativamente a Sarkozy ou o PS
relativamente ao PSD-CDS.
Os partidos ditos socialistas, sociais em palavras, neoliberais na realidade,
aliaram-se à direita para entregar a soberania nacional aos ditames da
UE e apoiam esse verdadeiro golpe de estado que é a TTIP.
[5]
Para além das diatribes parlamentares, o PS alheia-se ou mesmo combate
as lutas populares. As suas cedências permitiram que a direita
avançasse para uma ofensiva fascizante, com que metodicamente procura
destruir a Constituição de Abril.
A austeridade foi a forma de colocar os povos a pagar as consequências de
um sistema em crise, com a arrogância antidemocrática de que
não há alternativa ao aumento das desigualdades e da pobreza,
à entrega da riqueza criada à especulação
financeira, aos monopólios, às privatizações, etc.
Uma moral que se limita a "espoliar a classe trabalhadora e dar alguma
coisa aos pobres" (Jane Rockfeller). O resto são remendos
orçamentais.
Para manter uma ficção de pluralismo a oligarquia precisa de um
partido que nas vésperas eleitorais se exiba como de esquerda. Na
realidade, a missão que lhe é confiada é a permanente
divisão das camadas trabalhadoras, de forma a impor uma política
de direita com o mínimo de sobressaltos. Foi assim que se estabeleceu o
conceito de "partidos do arco da governação", eufemismo
que designa o partido único neoliberal, prioritariamente ao
serviço da oligarquia, em conformidade com a ideologia do grupo de
Bildelberg, onde dirigentes e propagandistas do "arco da
governação" vão receber o "crisma" da
religião neoliberal.
3 - Romper com a política de direita
De forma simples, uma política de esquerda deve consistir em romper com
a política de direita no que ela tem de desigualdades,
privilégios ao capital monopolista e financeiro, leis antilaborais,
liquidação das funções sociais e económicas
do Estado, etc. No entanto, tudo isto é posto em prática por
partidos que se designam de socialistas e de "esquerda". Dizer que o
governo PSD-CDS tem um programa de fundamentalismo ideológico, é
apenas dizer que criticando o fundamentalismo mantêm a mesma ideologia.
O PS apresentou um "cenário macroeconómico". A palavra
"cenário" é adequada à farsa do "arco da
governação". Os partidos à esquerda do PS fizeram
consistentes análises que não cabe aqui reproduzir. Salientamos
contudo alguns aspetos.
Em primeiro lugar, as escolhas que passam por económicas na realidade
são políticas e ideológicas. A visão da sociedade,
os critérios políticos são os mesmos do PSD-CDS: a
aceitação acrítica dos dogmas da UE, do euro, do
neoliberalismo. Porém, aceitar os critérios da UE e pretender
crescimento económico e justiça social é querer escrever
direito por linhas tortas. Claro que a desregulação do mercado
financeiro, a recusa do planeamento e da soberania económica e
monetária impede que as previsões possam ter qualquer grau de
rigor.
O "cenário" do PS ignora completamente o chamado
triângulo das impossibilidades em política orçamental.
"O Estado português terá de escolher duas das três
seguintes opções: (1) cumprir o Tratado Orçamental; (2)
pagar a dívida pública nos termos atualmente previstos; (3)
preservar um Estado Social típico de uma sociedade desenvolvida."
[6]
A renegociação da dívida, a questão do euro como
moeda única, são tabu para o PS. A fiscalidade para o grande
capital permanece intocável, a austeridade mantém-se "sobre
os mesmos": o que dá agora, tira depois, o que é tirado
agora permanece. Declamando sobre a dignidade do trabalho, propõe-se
rever (novamente!) a lei laboral para facilitar os despedimentos
sempre em
nome do "crescimento e do emprego".
Não vai tão longe como o P-M francês que apela à
"unidade da esquerda", mas apresenta a lei Macron, em França a
lei mais reacionária desde há 70 anos, que sobrepõe a
negociação individual entre trabalhador e patronato à
contratação coletiva. É como que o reestabelecer da
famigerada Lei Chappelier, anulada em 1861 graças à abnegada luta
dos trabalhadores.
Os economistas ortodoxos que o "cenário" segue
veem o mundo como uma máquina complexa, mas que pode ser orientada
conforme pretendido atuando sobre uma ou outra alavanca, conduzindo a um
hipotético "equilíbrio geral".
[7]
Ora, o que cientificamente se sabe, é que a aplicação de
um determinado modelo em sistemas complexos mesmo semelhantes
pode dar origem a comportamentos muito diferentes, dependendo das
condições iniciais. Simplificações que ignoram
estes factos servem de argumento aos "incentivos ao capital",
à austeridade, às sucessivas revisões da
legislação laboral, a redução dos impostos ao
grande capital, etc.
A política de direita praticada pelo PS, PSD e CDS, é defendida
como "realismo". Ser "realista" é então
não questionar essa mesma realidade, um conformismo reacionário
para deixar intocáveis os privilégios da oligarquia.
Compreende-se esta atitude por parte de propagandistas e dos que se amesendam
em conselhos de administração e sociedades de advogados
consultoras, ora do governo ora de concessionárias, mas não de
quem se pretende de "esquerda".
4 Visão de uma política de esquerda
O neoliberalismo é uma aberração em termos intelectuais:
pretende aplicar critérios do liberalismo, estabelecidos para um
universo de MPME, a uma economia dominada por megaempresas e monopólios.
Para fazer passar a sua agenda ideológica os propagandistas do
neoliberalismo dizem que não faz sentido falar em "esquerda" e
"direita". Claro que se referem ao "arco da
governação"!
Não deixa também de ser curioso ver certos grupos que
argumentando com a "unidade da esquerda" se fragmentam, evidenciando
alguma retórica, mas pouca capacidade de organização. No
essencial, dão a ideia de querer converter o PS à "boa
nova" de um capitalismo minorado. Definem um conjunto de boas
intenções, mas não soluções para as suas
causas.
Frederic Lordon dá-nos uma visão de requisitos duma esquerda
consequente. Ser de esquerda, diz, é uma posição em
relação ao capital. Não permitir o domínio do
capital sobre a sociedade. É a relação com o capital que
assinala uma posição de esquerda, é portanto uma
posição política de poder, uma relação que
afirma a soberania de uma sociedade não capitalista. Não permitir
que um grupo social seja autorizado a converter o interesse geral no seu
próprio interesse existencial.
[8]
Ser de esquerda não é certamente fomentar a precariedade:
"uma massa desprotegida, em total impotência, oferecida ao
despotismo do capital como se isto representasse
"eficiência". Não é também, subordinar a
sociedade ao excessivo poder da finança de tal forma que a expõe
à alternativa de a salvar ou perecer com ela. Ser de esquerda é
portanto reconhecer e lutar pela necessidade imperiosa de mudar as estruturas
financeiras e passa inicialmente pelo controlo público da banca. O
escândalo não foi salvar os bancos, foi terem sido salvos sem a
menor contrapartida dando-lhes carta-branca para retomarem os seus
tráficos.
[8]
Não será política de esquerda defender a "democracia
liberal", que sempre consistiu na da repressão das classes
trabalhadoras e na desigualdade. Não será ser de esquerda,
destruir, pelas privatizações, a economia mista definida na
Constituição. Ser de esquerda, não é certamente
enfraquecer o Estado, tornar inútil ou ineficiente o controlo
público sobre as grandes empresas e a finança e dizer que isto
é democracia. Tal como não é chamar totalitarismo à
participação popular, ao combate às desigualdades,
á subordinação do poder económico ao poder
político.
Não será política de esquerda, considerar que as
contradições antagónicas do capitalismo podem ser
resolvidas por uma reforma fiscal. Hemingway dá-nos em
Por Quem os Sinos Dobram
uma clara imagem do falhanço do reformismo, quando um combatente
republicano responde a Jordan, internacionalista norte-americano: "
Esses impostos parecem-me revolucionários. Eles
(os grandes proprietários)
vão-se revoltar contra o governo quando se virem ameaçados,
exatamente como os fascistas fizeram aqui".
Eis a raiz do neoliberalismo.
O que pode distinguir uma esquerda consequente de meros palradores ou
oportunistas é a definição do papel do Estado: o que
controla, a favor de quem e de quê. É bater-se pela soberania como
forma de defender os interesses nacionais e populares. É defender o
planeamento democrático e a análise económica baseada na
avaliação de custos e benefícios sociais.
Pode-se ser de esquerda sem se assumir como marxista. O que não se pode,
na nossa opinião, é pretender ser-se de esquerda e
simultaneamente antimarxista. Sem o marxismo não é
possível entender cabalmente o funcionamento do capitalismo nem a
dinâmica das suas crises.
Ser de esquerda será também lutar pela unidade patriótica
e popular contra o neoliberalismo fascizante, impulsionado pelas estruturas da
UE. Será também, garantir a iniciativa popular dentro e fora do
parlamento, e lutar para que o socialismo seja uma realidade numa Republica
democrática.
Notas
[1] Na tradição medieval a procura do "Santo Graal"
cálice que teria recolhido sangue de Cristo representava a
tentativa de alcançar a perfeição cristã e devolver
a paz e a grandeza ao decadente reino do mítico rei Artur.
[2] Engels, Princípios do comunismo, Obras escogidas, Ed. Progreso,
Moscovo, 1973, p. 96-97
[3] Marx, O Capital, Livro 1, Tomo I, Ed. Avante, p. 265-266.
[4] Ver
Acerca de negociações: lições do caso Syriza
, Vaz de Carvalho
[5]
O tratado de comércio livre EUA-UE: a grande golpada
, Vaz de Carvalho,
[6] Ricardo Pais Mamede,
O triângulo das impossibilidades da política orçamental
,
[7] Paul Ormerod, The Death of Economics, Ed. Faber and Faber, London, p. 36 e
41
[8] Frederic Lordon, A esquerda não pode morrer,
Le Monde Diplomatique
(ed. portuguesa), setembro 2014.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|