Acerca de negociações: lições do caso Syriza
por Daniel Vaz de Carvalho
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Quando se abre a caixa de Pandora da finança liberalizada é
impossível fecha-la pela metade.
Cédric Durand,
Le capital fictif
, Ed. Les prairies ordinaires, 2014.
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1 Negociações não antagónicas
Um governo progressista em Portugal será confrontado com as
imposições da UE. As negociações do Syriza,
representando uma indisfarçável capitulação,
encerram lições sobre o que deve ser feito na defesa dos
interesses nacionais.
Dizem os psicólogos que tudo na vida é negociação.
Os sexólogos confirmam. Questão de bom senso. Há no
entanto negociações antagónicas e não
antagónicas. Vamos primeiro tratar destas sem as quais não se
entendem plenamente as outras.
Nas negociações não antagónicas, é
possível estabelecer situações de ganho mútuo,
ditas
"win-win",
em que os oponentes se podem considerar parceiros. De qualquer forma, em
qualquer negociação há sempre uma parte mais fraca e uma
mais forte. A parte mais fraca deve colocar-se na posição de
poder desencadear a negociação e apresentar o que pretende.
Em que se pode basear a parte mais fraca? Basicamente, em cumprir as regras
preestabelecidas, mostrando que a outra parte não as cumpre ou
não as cumpriu. Num contrato entre empresas, a parte mais fraca (o
fornecedor, o empreiteiro) terá de argumentar baseada no clausulado
contratual que cumpriu ou se não cumpriu tal foi devido a
circunstâncias que não podia controlar, ou por
alteração das circunstâncias contratualmente previstas, ou
por incumprimento da outra parte.
Há aqui a considerar dois pontos fundamentais: o momento em que é
desencadeada a negociação e a aceitação dos
interlocutores. O momento em que é desencadeada a
negociação tem de ser escolhido numa altura crítica para o
sucesso do contrato, no qual a outra parte está obviamente interessada,
até por razões pessoais, e que por isso também depende da
ação da parte mais fraca.
A típica situação
"win-win"
estabelece-se no reconhecimento que num possível litígio, a
parte mais forte teria mais a perder do que aquilo que a parte mais fraca
solicita ou está disposta a aceitar.
Quanto aos interlocutores é evidente que não há
negociação possível com técnicos ou burocratas sem
poder de decisão, devendo exigir-se à partida elementos com
procuração suficiente para comprometer as entidades que
representam. O facto da negociação poder ser conduzida para
arbitragem em moldes mutuamente aceites não a torna antagónica.
Note-se que muitos contratos consistem em clausulados preestabelecidos aos
quais não são admissíveis alterações.
Compete à parte mais fraca descobrir os pontos que constituem
obrigações da outra parte e focar-se nesses pontos na
realização do contrato. Se o contrato não contiver estes
pontos então pode dizer-se de carácter leonino, ilegítimo
e terá de ser recusado, pois não estabelece
condições aceitáveis para a sua
concretização.
Estas condições poderão ser contudo incluídas no
planeamento, definindo circunstâncias limitativas das responsabilidades
da parte mais fraca e a sua precedência sobre outro clausulado. A
gestão de um contrato deve desde o primeiro momento ser feita de forma a
um eventual litígio poder ser ganho. É a melhor maneira de o
evitar.
2 Negociações antagónicas
Nas negociações antagónicas pode acontecer que não
haja um contrato mutuamente acordado ou que uma das partes deixe de o
reconhecer ou aplicá-lo. É o caso de uma agressão ou da
violação de tratados internacionais ou do contrato social
preexistente. Neste caso, não existem parceiros, mas sim
adversários.
O ponto de partida terá de ser a parte mais fraca a mostrar à
mais forte que ela pode perder mais do que a mais fraca está disposta a
suportar se não se chegar a acordo. É uma situação
de
"I loose you loose".
As negociações antagónicas ocorrem por
incompetência, falta de honestidade ou má-fé de uma ou
ambas as partes, mas são sempre o resultado de relações
antagónicas irresolúveis.
O objetivo da parte mais fraca é chegar à
negociação, o da mais forte que não exista
negociação, que a parte mais fraca se conforme com as suas
decisões e critérios. Valem as relações de
força, poder, ameaças, diversas formas de chantagem,
agressão psicológica.
Nas relações entre Estados o típico destas
situações é a agressão, que pode não ser
militar. A parte agredida, tem de se colocar numa posição de
força para motivar negociações. A posição de
força passa por estabelecer uma estratégia para mostrar que
controlo ou domínio da outra parte se tornou irrealizável. Como
exemplos deste tipo de situações podemos mencionar o fim da
guerra do Vietname, as lutas de libertação nacional, a
resistência do povo cubano perante os EUA, as negociações
das FARC com o governo colombiano. Escusado será dizer que a
resolução de relações antagónicas, implica
esforços, determinação, sacrifícios.
Refiram-se ainda as questões laborais. Se a lei protege a parte mais
fraca os trabalhadores, o movimento sindical as
negociações podem ser do tipo não antagónico,
apesar do desenvolvimento de greves. Caso a lei consagre a "flexibilidade
laboral" então as relações laborais são sempre
de natureza antagónica. Os trabalhadores terão de considerar como
seu objetivo estratégico a derrube do sistema que origina tais
relações.
3 O "memorando de entendimento" em Portugal
[1]
Existem contratos em que são definidos objetivos a atingir, mas a
escolha e gestão dos processos são da responsabilidade do
contratado. Noutros a gestão e procedimentos são da
responsabilidade do contratante, competindo ao contratado apenas o seu
cumprimento com qualidade e diligência, embora os objetivos a atingir
não sejam de sua responsabilidade.
O que se passou com a troika foi que estes definiram os procedimentos, um
calendário de ações e os objetivos a atingir. Em termos
contratuais isto é simplesmente inconcebível: ser
responsável por atingir determinados resultados, ser penalizado se tal
não for conseguido, mas não ser livre de decidir sobre os
procedimentos para lá chegar. Numa empresa, havia razões para os
responsáveis por tal situação serem alvo de um processo
disciplinar.
Em Portugal estas posições foram qualificadas de
"ajuda" dos "nossos amigos". Propagandistas esmeraram-se em
elogiar a troika e a nossa perda de soberania, roçando a
boçalidade fascizante: "se não fosse a troika
deitávamo-nos à sombra e não fazíamos nada" ou
"felizmente que estamos sob intervenção da troika". De
facto, o colonizado torna-se desprezível quando elogia e se coloca do
lado do colonizador.
O "memorando" representa na realidade um pacto de agressão e
ocupação do país e, como a ministra das Finanças
não se cansa de lembrar, continua em vigor. O vice-ministro Portas diz o
contrário, no papel de tartufo político. Marcelo, comentador
funâmbulo, elogia-o. Porém, excetuando 1580 e 1890 nunca houve um
ataque tão grave à soberania nacional como este.
O PSD e CDS mostraram o que pretendiam ao exigirem em apoio da finança a
vinda troika, participando com o PS na aceitação do chamado
"memorando". Ao tornarem-se governo foram "para além da
troika" nas medidas antipopulares, mas não no que dizia respeito
às rendas do sector energético e PPP. Um secretário de
Estado foi levado à demissão ao dizer que havia mais de 3 000
M de rendas energéticas.
O governo PSD-CDS governou à margem da lei e da
Constituição, oferecendo aos oligarcas um exército de
reserva do trabalho no limite da subsistência. Um PR digno desse nome
deveria ter desde logo convocado novas eleições face ao
não cumprimento das promessas eleitorais e à fraude
implícita no "memorando".
Um governo patriótico teria de imediato denunciado o
"memorando" evidenciando que os objetivos exigidos não eram
alcançáveis com as medidas impostas. E para a troika não
dizer que havia incumprimento da parte portuguesa tratar de imediato de
resolver a questão das rendas energéticas e nas PPP. Esta
posição levar-nos-ia de imediato á mesa das
negociações, de acordo com o que atrás dissemos,
obviamente antagónicas.
4 As negociações do Syriza
As propostas eleitorais do Syriza configuravam um partido da social-democracia
tradicional com laivos nacionalistas. Só a deformação
ideológica prevalecente na UE podia considera-lo de extrema-esquerda. O
PS, inicialmente nervoso, embrulhava-se em contradições
ridículas como: "apoiamos as negociações da
Grécia, devendo ser encontrada uma solução dentro das
regras europeias" (A. Costa). Como se causa maior dos problemas da
Grécia (e de Portugal
) não fossem as "regras da
UE".
O facto de o Syriza querer negociar com as entidades da troika não era
em si mesmo criticável. Não vamos aqui detalhar o acordo com o
Eurogrupo, dado este site disponibilizar relevante informação. O
Syriza cedeu em toda a linha, passando de inimigo público dos oligarcas,
a ser tolerado e mesmo elogiado pela direita, apesar desta o olhar com
desprezo, saboreando a humilhação infligida e a vitória do
neoliberalismo.
A imprensa alemã deu o tom com a arrogância de se considerarem
"herren volk". A seguir às negociações do dia 20
de fevereiro, o
Bild Zeitung
falava em êxito de Schauble: "os gregos cedem, esperemos que desta
vez cumpram. Há o perigo de Tsipras burlar com novos truques as
decisões de Bruxelas". O
Frankfurter Allgemeine
dizia "é necessário verificar se os planos de reformas se
tornam realidade ou ficam no papel". O
Süddeutshe Zeitung,
insistia. "a linha dura é importante, pois não se trata
só de dinheiro, mas de luta entre as forças populistas e as
forças moderadas da Europa".
Por "forças moderadas", devem certamente incluir os
nazi-fascistas de Kiev que promoveram e apoiam. O FMI e a CE alinham no tom da
imprensa alemã acima referida. Ora, a direita que respira aliviada,
mostra o seu revanchismo e acaba por desmascarar o Syriza e as ilusões
dos "europeístas".
No entanto, antes de se iniciarem as negociações, Varoufakis
punha a hipótese de sair do euro e tinham sido encetadas
conversações em Moscovo, alegadamente para serem consideradas
fontes de financiamento alternativas. Rapidamente, Varoufakis desdisse-se e o
Syriza não passa hoje de um Pasok recauchutado. Obviamente, a
última palavra pertence ao povo grego.
Do ponto de vista de negociação, vejamos alguns erros do governo
grego. Primeiro, não querer ver que negociações com a
troika as "instituições" serão
sempre de natureza antagónica. Logo no início o Syriza falou em
"parceiros". Iludia-se e iludia o povo grego iniciando a
negociação com uma estratégia totalmente errada nas
circunstâncias prevalecentes.
Segundo, apesar de serem públicas as ameaças e a chantagem sobre
a Grécia, o governo grego sentou-se à mesa sem nenhum plano
alternativo, foi pedir esmola. Estava derrotado à partida, restava-lhe
fazer como os partidos do sistema e tentar ir enganando o povo grego.
5 Algumas conclusões
A Alemanha assume-se como gendarme político, económico e social
na UE. Uma negociação sobre austeridade com a UE é uma
negociação antagónica. Falar em parceiros e ajuda
evidencia-se, face ao que ocorre, como uma desprezível mentira.
Não se pode iniciar uma negociação deste tipo sem um plano
alternativo para enfrentar o confronto, designadamente: a saída do euro,
o não pagamento da dívida até acordo sobre a sua
renegociação, a obtenção de financiamento
alternativo através do sistema financeiro criado pelos BRICS e a SCO
(Shanghai Cooperation Organization).
[2]
O Syriza "esqueceu-se" de uma medida fundamental, evidenciando o seu
carácter social-democrata, como o controlo público da banca
implicando o fim da livre transferência de capitais. A
contravenção à lei, posta em prática de imediato,
implicaria a penhora de bens e um processo de pagamento de juros.
[3]
Deveria também ser prevista a instauração de processos
contra atos anteriores à posse do governo que configurassem ilegalidades
ou sabotagem económica.
A capitulação do Syriza levou a que a CE insistisse na ofensiva
contra os povos. O comissário dos assuntos económicos deu uma
conferência de imprensa para denunciar (é o termo) cinco
países França, Itália, Bélgica,
Bulgária, Croácia, Portugal em situação de
défice excessivo "que requer ações políticas
decisivas e monitorização específica".
A UE tem os povos presos nas grilhetas do endividamento e do euro. Esta
situação só será alterada pela resistência
popular. O caso grego mostrou que esta resistência amadureceu na
consciência dos povos. Quando o governo grego parecia querer afrontar a
troika o seu apoio subiu para mais de 70%, e realizaram-se grandes
manifestações de apoio ao governo. Face às pressões
da troika, governo grego teria de imediato efetuar um referendo sobre as suas
propostas eleitorais e a eventual saída do euro.
Por último, é importante verificar que partidos ou movimentos
políticos sem referências ideológicas anticapitalistas
expressas e evidenciadas na prática resvalam para o oportunismo
rendendo-se ao neoliberalismo. Não queremos com isto dizer que para se
defender a soberania nacional e políticas progressistas é
necessário ser marxista. O que não se pode é ser
antimarxista e não procurar a unidade com estes sectores.
Notas
[1] Ver "Representantes do Império em inspeção a
uma Província: "IMF Country Report Nº 12/77",
www.odiario.info/?p=2458
[2] Trata-se do Novo Banco de Desenvolvimento que desafia o domínio do
BM e do FMI, com um capital inicial de 100 mil milhões de
dólares. Seria curioso saber que percentagem de cidadãos da UE
tem conhecimento desta realidade.
[3] Note-se que penalizações deste tipo são aplicadas
em Portugal ao não pagamento de portagens nas ex-SCUT, transformando
dívidas de alguns euros em centenas e múltiplos processos. O
dinheiro obtido vai quase integralmente para os privados. Um escândalo.
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