1.
O regime representativo e os corpos armados
2.
Controle político e controle econômico dos meios de informação
3.
O pároco, o jornal, o partido
4.
Jornais, partidos organizados e classes subalternas
5.
Partidos, sindicatos e individualismo repressivo
1. O regime representativo e os corpos armados
No final do século XIX, Engels traça repetidamente o
balanço do período histórico iniciado com a
Revolução Francesa: passou a época das barricadas e dos
golpes de mão populares que tinham desempenhado um papel importante
até a Comuna de Paris; grande demais se tornou a precisão e a
potência das armas de fogo; e insuperável é a
desproporção de forças em favor do Estado e dos corpos
armados de que ele dispõe. Engels, às vezes, parece atribuir esta
mudança radical de situação sobretudo ao desenvolvimento
da tecnologia militar: "Até 1848, podia-se fabricar sozinho, com
pólvora e chumbo, a munição necessária";
agora, isto não é mais possível ou se mostra bastante
problemático e, de todo modo, as eventuais, rudimentares armas
populares, "até numa luta a pequena distância, não
sustentam absolutamente o confronto com os fuzis de repetição do
Exército", cuja capacidade de impacto pode varrer qualquer
obstáculo e qualquer barricada (Marx e Engels, 1955, v. 7, p. 522). O
monopólio estatal da força armada é um fato consumado: um
resultado a que não é estranha a ação
política da burguesia, cujo "primeiro objetivo", na
França subseqüente à Revolução de Fevereiro,
"foi desarmar os operários" (Marx e Engels, 1955, v. 22, p.
190).
Mas talvez esta última observação possa ser radicalizada.
Raramente se prestou atenção ao fato de que a história do
regime representativo tem como uma etapa fundamental a restrição
da esfera eleitoral que, por um certo período, também abrangeu a
formação dos corpos armados e dos seus grupos dirigentes. Um dos
primeiros atos da burguesia revolucionária francesa consiste na
contraposição à tropa régia, controlada pelo alto e
por um corpo oficial composto exclusivamente de nobres, de uma Guarda Nacional,
cujos oficiais são eleitos, mas em cujo âmbito vigora a mesma
discriminação censitária que vale para a vida
política no seu todo. No período de radicalização
máxima da revolução, o princípio eletivo, e
além do mais sem a exclusão anterior dos "cidadãos
passivos", também se afirma dentro do Exército propriamente
dito (Soboul, 1966, p. 282 ss.; Fayard, 1989, p. 672 ss.), de modo que, neste
momento, o conjunto dos corpos armados está submetido a um controle
qualquer de baixo e o processo de formação dos dirigentes
militares da nação não difere, em princípio,
daquele dos dirigentes políticos.
É uma situação cheia de perigos para a burguesia, cuja
ação sucessiva é inspirada pela preocupação
de assegurar para si o monopólio da força armada. O problema em
questão está bem presente na América para os delegados
à Convenção da Filadélfia, que, num quadro
institucional bastante diferente, podem resolvê-lo com facilidade,
submetendo também à autoridade do presidente, em caso de crise,
as milícias de cada estado (cf. supra, cap. 3, § 2).
2. Controle político e controle econômico dos meios de
informação
Podemos nos perguntar se um processo análogo àquele que se
verificou no plano militar também não teve lugar, de modo
diferente e num tempo muito mais longo, em relação ao controle da
imprensa e dos meios de informação. Sabe-se do papel importante
de mobilização desempenhado pelos jornais no curso da
revolução na França: calcula-se que, entre 1789 e 1800,
foram publicados mais de 1.350 jornais (Fayard, 1989, p. 656); "na Paris
de 1789 e depois novamente em 1848, sempre em Paris, todos os políticos
de algum destaque fundam o próprio clube e, de cada dois
políticos, um dá vida a um jornal; somente entre fevereiro e maio
surgem 450 clubes e mais de 200 jornais". É um momento no qual
"até os menores grupos políticos" podem dispor, cada
qual, do próprio jornal (Habermas, 1977, p. 219). Dado o estágio
ainda artesanal da editoria e da imprensa e dados os custos relativamente
baixos de produção, muito fácil se apresenta o acesso das
classes populares a estes instrumentos de agitação e de
mobilização. Uma estabilização do poder e da ordem
social existente comporta a necessidade não só do desarmamento
das classes populares mas também de um controle mais acentuado da
riqueza sobre os meios de informação e de agitação
política. Se o Antigo Regime havia buscado controlar a imprensa mediante
a censura prévia, trata-se agora de recorrer a um instrumento diferente
que deriva do entrelaçamento de política e economia.
Já nos anos da Restauração, realiza-se o monopólio
proprietário da vida política quer mediante a
discriminação censitária, que exclui diretamente as massas
populares do exercício dos direitos políticos, quer mediante a
obrigação de depositar uma garantia no momento do registro de um
órgão de imprensa. É interessante observar que a lei de 9
de junho de 1819 determina o nível da garantia de acordo, não
só com a periodicidade, mas também com o lugar de
publicação do órgão de imprensa, impondo o
depósito de uma quantia mais alta aos jornais que publicam mais de
três números por semana e que vêm à luz em Paris e
nos três departamentos limítrofes (Marx e Engels, 1955, v. 7, p.
623 nota). Ou seja, trata-se de golpear e calar os órgãos
suscetíveis de "incitar" as massas populares e, sobretudo, as
massas populares parisienses, que desempenharam um papel tão importante
e tão radical no curso da Grande Revolução.
À medida que cai o controle diretamente político da imprensa e se
atenuam as restrições censitárias dos direitos
políticos, a instituição da garantia adquire
importância cada vez maior como instrumento de exclusão das massas
populares da vida política. A Revolução de Julho abole a
censura mas, como corretamente se observou, isto não significa que o
governo se torne "impotente diante dos jornalistas": Os jornais
políticos são "obrigados a depositar uma grande quantia de
dinheiro a título de garantia, para poder ser publicados" (Cobban,
1967, p. 350 ss.). Depois do atentado a Luís Filipe, em julho de 1835,
"as cruéis leis de setembro", além de atingir
penalmente a propaganda ou a incitação ao ódio contra a
ordem proprietária existente, oneram a imprensa periódica com
garantias ainda mais pesadas. (Marx e Engels, 1955, v. 17, p. 576, 706 nota
206, 323 e 510). Imediatamente depois da Revolução de 1848,
Blanqui traça o balanço da política seguida pelos
governos, primeiro, da Restauração e, depois, da Monarquia de
Julho:
Há trinta anos, é só a contra-revolução quem
fala à França. Amordaçada pelas leis fiscais, a imprensa
resta na superfície da sociedade. A educação das massas
é feita só pelo ensinamento oral [da Igreja], que sempre
pertenceu e ainda pertence aos inimigos da República. Sobretudo no
campo, só os notáveis das facções derrotadas [com a
Revolução de Fevereiro] é que atraem a
atenção do povo, enquanto ficam desconhecidos os homens devotados
à causa democrática. (Huard, 1991, p. 34 ss.)
Blanqui espera que, com o colapso da Monarquia de Julho, também tenha
fim, ao mesmo tempo, o monopólio da imprensa e da
informação que o bloco conservador conseguiu realizar
graças à asfixia dos jornais populares promovida mediante o
recurso às leis sobre a garantia. Mas tal instituição se
torna, na realidade, ainda mais importante na nova situação que,
pelo menos por um momento, sanciona o sufrágio universal masculino e,
seja como for, assinala uma ampliação considerável do gozo
dos direitos políticos. A burguesia no poder recorre a uma nova lei de
imprensa que não só agrava as garantias, mas busca atingir
"todos os textos publicados em fascículos semanais ou mensais
até um determinado número de páginas" e mesmo os
"folhetins", bem como todo produto jornalístico ou
literário suscetível de circular entre as massas populares e de
expressar, ainda que episodicamente, seus humores (Marx e Engels, 1955, v. 7,
p. 100).
Como garantia suplementar do monopólio proprietário dos meios de
informação, emanaram-se normas que, para cada
infração às leis de imprensa, previam
"sanções financeiras desmedidas". Deste modo,
desapareceu totalmente a imprensa revolucionária. Por muito tempo, ela
havia lutado contra a perseguição: semana após semana,
jornais e folhetos foram postos sob acusação, multados,
reprimidos. No banco dos jurados, sentava-se a burguesia, que aniquilou a
imprensa operária. (Marx e Engels, 1955, v. 7, p. 496)
Este último ponto merece uma reflexão adicional. Já na
época da Monarquia de Julho, "toda ofensa ao rei ou tentativa de
fomentar o desprezo ao governo podiam ser punidas com uma multa de mil francos,
além da detenção do diretor responsável". No
entanto, "embora os jurados fossem escolhidos apenas na classe mais rica
com direito de voto", eles tendiam a absolver os jornalistas acusados de
tais delitos (Cobban, 1967, p. 351).
Por que, depois de 1848, os tribunais se tornam nitidamente mais severos?
Não somente pelo fato de que o perigo da revolução social
e da derrubada das relações de propriedade existentes
pareça ter se tornado mais concreto e imediato. Há também
uma outra razão que se deve ter presente. Nos anos da Monarquia de
Julho, a burguesia, cujos setores mais radicais ainda estão empenhados
na luta contra a aristocracia fundiária e a nobreza feudal, permanece
internamente dividida, dado que uma parte continua a ser excluída do
gozo dos direitos políticos, cujo acesso é barrado por uma
barreira censitária bastante elevada. Ainda não se realizou a
unidade das classes proprietárias e as leis de imprensa, as garantias e
as multas ainda não atingem de modo unívoco os jornais populares,
como aconteceria depois de 1848: eis por que, nos anos da Monarquia de Julho,
os jurados podem mostrar indulgência em relação aos
acusados, com os quais às vezes estão ligados por
múltiplos laços de filiação social e de
solidariedade política.
Depois das jornadas de fevereiro, depois daquilo que Tocqueville define com
horror como uma revolução "socialista" (cf. supra, capo
I, § 11), a administração da justiça, pelo menos no
tocante aos delitos de imprensa, assume uma configuração clara e
univocamente classista. Ainda depois da queda de Napoleão III, o novo
governo dirigido por Thiers introduz um imposto "de dois centavos sobre
cada exemplar de qualquer publicação", o que leva Marx a
denunciar a infeliz continuidade com as leis de setembro de 1835 que já
tinham visto Thiers como protagonista (Marx e Engels, 1955, v. 17, p. 328 e
323). Que a instituição da garantia fosse um novo modo de
reintroduzir a discriminação censitária em regime de
sufrágio universal ou de sufrágio ampliado não escapa aos
observadores políticos mais atentos daqueles anos. Vimos Marx lamentar o
golpe mortal desferido contra a "imprensa operária". No lado
oposto, vemos um lúcido conservador alemão, Stahl, computar o
"censo para a representação" e a "garantia para a
imprensa" entre os "privilégios
político-jurídicos em favor dos ricos", a que a burguesia,
organizada no "partido liberal", recorre para "dominar a vida
pública [...], completar e consolidar a própria
satisfação material com a política", mantendo o
controle sobre "a classe daqueles que são destituídos de
propriedade" (Stahl, 1863, p. 72 ss.).
3. O pároco, o jornal, o partido
Neste ponto, pode ser útil fazer referência a um texto muito
célebre da
Ideologia alemã:
As idéias da classe dominante são, em cada época, as
idéias dominantes; isto é, a classe que é a potência
material dominante é ao mesmo tempo sua potência espiritual
dominante. Com isto, a classe que detém os meios da
produção material dispõe, ao mesmo tempo.dos meios da
produção intelectual, de modo que a ela, no conjunto,
estão submetidas as idéias daqueles a quem faltam os meios da
produção intelectual. (Marx e Engels, 1955, v. 3, p. 46)
No curso da revolução burguesa, à divisão das
classes proprietárias e da "potência material"
corresponde a divisão da "potência espiritual". Nesta
fase, o jornal desempenha um papel eminentemente subversivo; ele representa o
instrumento com que o terceiro estado, no seu todo, pode se contrapor ao Antigo
Regime, o qual pode contar com a organização e a influência
ideológica capilares da Igreja. É neste sentido que, às
vésperas de julho de 1830, isto é, do levante que derrubaria,
desta vez de modo definitivo, a monarquia bourbonista, depois de ter sublinhado
o "medo" que até mesmo a "proximidade dos jornais de
Paris" incute nos "tiranetes", Stendhal se pergunta:
"Será que o jornal poderá substituir o pároco?"
(Stendhal, 1980, p. 237 e 200). Neste mesmo sentido deve ser lido o aforismo de
Hegel, que remonta a mais de duas décadas antes: "A leitura do
jornal pela manhã é uma espécie de oração
matutina realista. Pode-se orientar o próprio comportamento no mundo
segundo Deus, ou segundo aquilo que existe no mundo. Ambos os modos dão
a mesma segurança, a de saber como se pode estar no mundo" (Hegel,
1969, v. 2, p. 547).
Neste momento, dois são os instrumentos de formação da
consciência e da opinião pública, e eles remetem a classes
e a blocos sociais diferentes e contrapostos. A última vez em que o
jornal e o pároco se enfrentam à frente de duas
formações contrapostas é por ocasião da
ascensão de Luís Napoleão à presidência e,
depois, ao posto de ditador; este pode se valer do apoio e da amplíssima
influência da Igreja para neutralizar a imprensa e liquidar a
frágil e pretensiosa resistência da burguesia liberal, a qual, de
resto, já tinha feito calar, por ocasião das jornadas de junho,
os jornais e os clubes das classes populares.
Com a estabilização liberal do Segundo Império e ainda
mais, em seguida, com a Terceira República, assiste-se à
unificação substancial das classes proprietárias, com a
convergência dos respectivos instrumentos de formação da
opinião pública para um objetivo comum, isto é, a
consolidação da ordem social existente. E, no entanto, as classes
proprietárias não chegam a conseguir um total monopólio
dos meios de informação: ainda que novamente limitada, uma
imprensa subversiva continua a fazer sentir sua presença. Deve-se ter
presente que, já durante a Grande Revolução, o jornal foi
certamente o instrumento do terceiro estado, mas de um terceiro estado
atravessado por agudas contradições e dentro do qual o peso das
camadas populares, por causa das formas concretas do processo de
produção material e espiritual e da conseqüente facilidade
de acesso aos meios de informação, revela-se excessivo e perigoso
para a burguesia. Compreende-se, então, a denúncia que, ainda
antes da Revolução de 1848, Comte faz dos "jornais"
como um dos maiores veículos de difusão do "contágio
metafísico" e revolucionário "entre as classes
inferiores" (Comte, 1985, p. 111).
A tese da
Ideologia alemã
incide, pois, no início do processo de concentração nas
mãos da burguesia dos meios de informação, ou seja,
é formulada num momento em que só parcialmente se mostra
verdadeira pelo fato de que o controle pleno da produção material
ainda não comporta, automaticamente, o controle pleno da
produção espiritual. Com efeito, são os anos nos quais a
burguesia é forçada a recorrer, como vimos, a instrumentos
políticos suplementares (imposição legal de taxas onerosas
e garantias para a publicação de órgãos de
imprensa), com o objetivo de reduzir ao máximo ou cancelar inteiramente
a influência ideológica das classes subalternas. Além
disso, neste caso como em outros análogos, ao enunciar uma
tendência fundamental da sociedade burguesa, Marx sugere os
comportamentos e os métodos com que as classes subalternas podem
contrariá-la, isto é, estimula o movimento histórico real
que tende a falsificar a tese por ele mesmo enunciada. Organizado e sustentado
pelo entusiasmo e pelo espírito de abnegação
próprios de camadas sociais que, deste modo, esperam conseguir a
própria emancipação, o partido político de base
social popular e operária compromete e coloca em discussão o
monopólio burguês e proprietário dos meios de
informação. Este partido político se configura como um
meio, e um meio poderoso, de produção espiritual, com seus
jornais, seus intelectuais e funcionários capazes de exercer uma capilar
influência ideológica e política. É por isto que
Engels, em 1882, tece o elogio dos operários socialdemocratas, que
"se
prepararam para ler mais copiosa e metodicamente os jornais" (Marx e
Engels, 1955, v. 19, p. 186). No lado oposto, Treitschke denuncia a
influência nefasta que, "mediante a exibição de
força dos seus jornais", consegue exercer sobre as massas a
socialdemocracia, cujos funcionários e cuja "burocracia"
só podem proliferar graças aos "proventos da venda dos
jornais"
(Zeitungseinnahme)
(Treitschke, 1878, p. 6 ss.). São os anos nos quais a
publicística conservadora acusa os adeptos da
"revolução social" de se servirem desabusadamente dos
"meios da cultura moderna" e dos "jornais" (Luthardt, 1967,
p. 157 ss.), os anos nos quais Bismarck chega a apontar os jornais como os
"instrumentos do Anticristo" (Croce, 1965, p. 219), presumivelmente
tomando como alvo, de modo particular, a imprensa socialdemocrata e de
oposição.
Neste período histórico, o filósofo e o poeta de tal
demonização da imprensa política e partidária
é Nietzsche, que lamenta o fato de que "o jornal substitui as
orações cotidianas" (Nietzsche, 1980, v. 13, p. 123, e v.
11, p. 68 ss.). Trata-se da mesma contraposição já vista
em Stendhal e em Hegel, mas que agora conhece uma inversão do
juízo de valor: num momento em que a pregação do
pároco também volta a ser mais útil do que nunca contra a
agitação operária e socialdemocrata, o filósofo do
Anticristo observa, desapontado, a dissolução da obtusa e
desvertebrada tranqüilidade das massas à sombra do
campanário e sua substituição pelo "jornal", com
o qual caminha
pari passu
o "fazer política" (Nietzsche, 1981 b, aforismo 239) ou
até mesmo o
furor politicus,
que é o resultado da leitura cotidiana dos jornais (Nietzsche, 1980, v.
1, p. 409). Talvez como pano de fundo também haja a vaga
lembrança da experiência da Revolução de 1848 (que
Nietzsche descreve em tons sombrios na sua autobiografia), quando cotidianos,
periódicos e boletins de partido nasciam como cogumelos até em
Naumburg (onde então se encontrava a família do filósofo),
para ser diariamente devorados por leitores tomados de paixão
política e desejosos de saber e influir sobre os acontecimentos
(Losurdo, 1986, p. 134).
O certo é que, depois da reviravolta representada por aquele ano
traumático para toda a cultura conservadora européia,
reencontramos na Itália o tema já visto num filósofo
tão radicalmente anticristão, como é Nietzsche, num autor
como Vincenzo Gioberti (1911-1912, v. 1, p. 116), que também expressa a
convicção de que "a imprensa e os jornais",
difundindo-se no "povo", contribuem poderosamente para "aumentar
o sentimento dos seus males e o desejo de se livrarem deles". Um ano antes
do filósofo católico liberal, a própria
Civiltà Cattolica
é que tinha invectivado, em 1850, contra o "jornalismo", e a
invectivar apontando o dedo acusador explicitamente contra a
"França revolucionária", o país dos tumultos
políticos incessantes, onde o jornalismo se revelou mais claramente do
que nunca o "instrumento de perpétua agitação entre
os povos" (Lerda, 1976, p. 233) e onde, por fim, também fez sua
aparição o espectro do socialismo.
Para Nietzsche, o jornal é o símbolo da
massificação do mundo moderno e de tudo o que o filósofo
da "inatualidade" condena no mundo moderno, mas, em primeiro lugar,
é o instrumento e a expressão da revolta das massas. A
condenação do jornal é a outra face da
celebração do torpor das camadas populares, da
celebração do caráter benéfico do ópio
ideológico. É uma coisa só, no filósofo
alemão, a polêmica contra o jornal, o movimento operário, o
sufrágio universal, o advento das massas ao cenário da
política e da história e a vulgarização do mundo.
Um fragmento póstumo aponta o "parlamentarismo" e a
"imprensa"
(Zeitungswesen)
como "os meios com os quais o animal do rebanho se torna senhor"
(Nietzsche, 1980, v. 11, p. 480), e um trecho de
Além do bem e do mal
(Nietzsche, 1981b, aforismo 208) evoca em tons sombrios um futuro no
âmbito do qual o despotismo da massa é evidenciado pela
"obrigação de cada qual ler o próprio jornal como
café da manhã". E resta o fato de que, também em
Nietzsche, o libelo contra o elemento de vulgaridade e de perigo representado
pela imprensa ocorre tendo presente, em primeiro lugar, o espectro do
socialismo, a temida tomada do poder por parte do "animal do rebanho".
4. Jornais, partidos organizados e classes subalternas
Por isto, a denúncia do jornal é acompanhada pela denúncia
do partido, uma instituição por si mesma marcada pelo
"caráter demagógico", pela "intenção
de agir sobre as massas" (Nietzsche, 1970, I, aforismo 438), com o
resultado objetivo ou conscientemente buscado de pôr em crise e em
discussão sua subalternidade e passividade tradicional. O partido aqui
posto no banco dos réus não é tanto o partido de
opinião da burguesia liberal, quanto, em primeiro lugar, o partido
socialdemocrata, que busca organizar as massas; não casualmente, o
filósofo adverte os operários para não dar ouvidos
"ao pífaro dos socialistas enganadores", ou seja, "ao
jornal" (Nietzsche, 1981 a, aforismo 206), que também é
condenado como parte integrante da "cultura da grande cidade"
(Nietzsche, 1980, v. 13, p. 93), onde mais evidente e espantoso se apresenta o
fenômeno da revolta das massas e do declínio das elites. No seu
lúcido ódio reacionário, Nietzsche identifica com clareza
o caráter socialmente, mais ainda do que politicamente, subversivo do
jornal e do partido operário, o qual, à medida que se organiza
autonomamente, representa o surgimento ameaçador de camadas sociais
até aquele momento incapazes de desempenhar um papel político
real. Na linguagem de Marx, servindo como centro autônomo de
produção intelectual e espiritual, um partido desse tipo
compromete ou rompe o monopólio proprietário de tal
produção.
Neste ponto, convém retornar ao balanço histórico
traçado por Engels: no período que vai até 1848 ou, no
máximo, até 1871, dada a relativa facilidade com que os civis e
as massas podem ter acesso às armas, um potencial dualismo de poderes,
no plano militar, caracteriza a relação entre Estado
burguês, por um lado, e classes subalternas, por outro. A
repressão das jornadas de junho, antes, e da Comuna, depois, liquida
esta situação de uma vez por todas. Para o partido
operário, é o momento de se despedir do romantismo das
barricadas, sem demora e mesmo sem lamento, ainda mais que, na nova
situação objetiva que veio a se criar, novos instrumentos de luta
apareceram, e não menos eficazes do que os antigos. Em primeiro lugar, o
sufrágio universal, do qual a socialdemocracia alemã - Engels
sublinha - sabe fazer um uso sábio, que bem pode ser tomado como modelo
pelos outros partidos operários. O partido que opera na Alemanha
é o "mais forte, o mais disciplinado"; sabe se empenhar num
paciente, "lento trabalho de propaganda" e de conquista das massas,
graças à sua "imprensa" e à
utilização como "tribuna" do próprio Parlamento
(Marx e Engels, 1955, v. 7, p. 519, 524 e 520).
Mas de que modo o sufrágio universal pode funcionar como instrumento de
emancipação e não de aclamação
plebiscitária de um governo bonapartista, como tinha ocorrido na
França de Luís Napoleão e como contava fazer, na Alemanha,
o próprio Bismarck, o qual, para a eleição do
Reichstag,
tinha introduzido o sufrágio universal como "único meio de
atrair as massas para seus planos" e de obter a ambicionada
legitimação cesarista? A questão é tocada apenas
incidentalmente e, no entanto, apesar de tal limite, Engels esclarece que a
socialdemocracia alemã pode neutralizar as manobras bonapartistas
à medida que consegue, graças também à sua
organização e à sua imprensa, "obrigar todos os
partidos a defender dos nossos ataques, diante de todo o povo, seu modo de ver
e de agir" (Marx e Engels, 1955, v. 7, p. 519 ss.). Isto é, numa
situação de dualismo ou pluralismo dos centros de
produção intelectual e espiritual, toda eleição se
transforma num grande debate político nacional, no qual, pela
ausência de um monopólio dos meios de informação, o
povo é posto em condições de julgar com conhecimento de
causa.
Existe, pois, um período histórico no qual, por assim dizer, os
sinos das camadas populares se contrapõem às trombetas da
burguesia e das classes proprietárias. O domínio da burguesia
não estará suficientemente sólido e garantido enquanto o
monopólio da força armada não estiver completado pelo
monopólio da produção espiritual, isto é, pela
supressão seja dos meios de informação, seja dos partidos
que, por causa da sua organização e da sua relação
com classes sociais antagônicas em relação às
dominantes, se configuram, ou são suscetíveis de se configurar,
em situações de crise, como uma alternativa de poder. Quanto ao
primeiro ponto, a burguesia é favorecida pela objetividade do
desenvolvimento econômico e industrial. Tocqueville descreve o
espetáculo fascinante da liberdade de imprensa na América, onde
"não há licenças para tipógrafos, carimbos ou
registros para jornais, e o princípio da garantia é
desconhecido". Mesmo esta contraposição à
prática de controles e tributos governamentais na velha Europa,
inclusive no país liberal originado da Monarquia de Julho, não
é destituída de elementos estereotipados: enquanto na
França o poder deve enfrentar uma viva e combativa imprensa
oposicionista popular e até operária, nascida no rastro da Grande
Revolução e, mais exatamente, de um processo
revolucionário que não dá sinais de exaustão, na
América o controle social e político das "classes
perigosas" está assegurado, em primeiro lugar, pela
instituição da escravidão. E não se deve esquecer
que, num momento de crise, como aquela de 1798, até mesmo do outro lado
do Atlântico o poder não tinha hesitado em intervir rudemente para
amordaçar a imprensa (cf. supra, capo 3, § 11). Mas Tocqueville
assim prossegue:
Daí deriva que a criação de um jornal é um
empreendimento simples e fácil; poucos assinantes bastam ao jornalista
para cobrir as despesas: assim, o número das publicações
periódicas ou semiperiódicas, nos Estados Unidos, ultrapassa
qualquer imaginação. Os americanos mais ilustres atribuem o
escasso poder da imprensa a esta incrível dispersão das suas
forças [...].
Nos Estados Unidos, portanto, os jornais não podem estabelecer as
grandes correntes de opinião, que erguem ou rompem as barreiras mais
poderosas. Este fracionamento das forças da imprensa ainda produz outros
efeitos não menos relevantes; como a criação de um jornal
é coisa fácil, todos podem se ocupar disto; por outro lado, a
concorrência faz com que um jornal não possa prometer grandes
lucros; o que impede que indivíduos de alta capacidade industrial se
interessem por este tipo de empreendimento. (Tocqueville, 1968, p. 221 ss.)
Basta dizer que este quadro não corresponde mais, de modo algum,
à realidade atual, caracterizada por um gigantesco processo de
concentração, que, de fato, assegura o monopólio da grande
burguesia sobre a imprensa e mais ainda sobre os
mass-media,
que requerem capitais e investimentos ainda mais elevados. Suprimindo ou
contribuindo para suprimir decisivamente a imprensa operária e popular,
o desenvolvimento econômico e tecnológico tornou obsoletos e
supérfluos os meios políticos suplementares de
coerção e condicionamento da liberdade de imprensa, que agora,
inclusive na Europa, em períodos de normalidade, deve ser considerada
completa no plano jurídico. No entanto, seria errado crer que a
situação atual, caracterizada pela dispersão dos sinos das
classes subalternas e pelo domínio incontrastado das cada vez mais
desmedidamente poderosas trombetas da classe que, para citar Marx, controla
"os meios de produção material", seja o resultado
exclusivo de um processo meramente econômico.
5. Partidos, sindicatos e individualismo repressivo
Na realidade, o desenvolvimento da imprensa operária e popular no
século XIX não pode ser separado da história do processo
de organização política e sindical das classes subalternas
nem da história da reação das classes dominantes a tal
processo. A evolução que se verifica nos Estados Unidos é
particularmente instrutiva a este respeito. Em 1885,
a imprensa operária
(labor press)
compreende 17 publicações mensais, 400 semanais e alguns jornais
diários (entre os quais, o socialista
Volkszeitung
e o
Irish World and American Industrial Liberator).
Malgrado as tentativas do patronato, que se esforça de todas as
maneiras, e sobretudo mediante a demissão dos operários
surpreendidos na sua leitura, para limitar sua influência, esta
não é desprezível. Ela se devia, em particular, às
bibliotecas e salas de leitura então abertas por sindicatos e movimentos
ou círculos políticos: os operários estão a par dos
debates contemporâneos. (Toinet, 1988, p. 290)
Mas, junto com as organizações políticas que a sustentam
ou das quais é a expressão, esta imprensa se torna o alvo e a
vítima da reação conservadora que se desenvolve no final
do século XIX e desemboca num processo de
dês-emancipação. E, assim, é uma precisa
ação política, e não só a objetividade do
processo econômico, que determina o desaparecimento dos jornais
partidários e sindicais, que permitem às classes subalternas
expressarem-se autonomamente, pelo menos numa certa medida, e agora, ao
contrário, são suplantados por uma imprensa que se jacta de ser
independente mas é controlada pela grande propriedade (Burnham, 1970, p.
76). São os anos em que, como sabemos, o princípio do
sufrágio universal é posto no banco dos réus, culpado de
escancarar os órgãos representativos às camadas
miseráveis e carentes de cultura, enterrando o "governo dos
melhores" e estabelecendo o domínio da plebe ignorante e, pior, dos
imigrados. E, como instrumento desta espécie de nova invasão
bárbara, são denunciados a imprensa de partido, à qual se
contrapõe aquela "independente", e os próprios
partidos, cuja supressão pura e simples alguns chegam a pedir (Testi,
1991, p. 59 e 62; Testi, 1984, p. 40 ss.).
Nos próprios autores europeus que, a partir da experiência dos
Estados Unidos, sistematizam a crítica conservadora ao sistema de
partidos, é possível perceber o eco da atitude, amplamente
difundida nas classes altas americanas, de hostilidade em relação
à extensão dos direitos políticos (fonte de desastres ou,
pelo menos, de "resultados infelizes") aos "negros do Sul"
ou aos "imigrados das grandes cidades" (Bryce, 1888, v. 3, p. 357 e
674). Mesmo quando não se chega até este ponto, é
significativo o fato de que, na denúncia dos partidos empenhados em
"manter e desenvolver a opressão do número"
(Ostrogorski, 1991, p. 621), ressurgem, em última análise, os
argumentos clássicos da polêmica contra o sufrágio
universal e a democracia.
Num período em que no Sul, mesmo antes da emanação de leis
que sancionam sua des-emancipação, os negros são privados
pelos brancos dos direitos políticos com "a força e a
fraude" (Bryce, 1888, v. 2, p. 364); num período em que as
associações sindicais são levadas, como veremos, à
ilegalidade ou às margens da legalidade, o Exército federal
intervém para suprimir as greves e os operários pegos a ler a
imprensa sindical e partidária correm o risco da demissão e, com
isto, de uma condenação definitiva ao desemprego e à
miséria mais negra, dado o uso das "listas negras" pelo
patronato para manter "distantes do trabalho muitos agitadores
(Nevins e Commager, 1960, p. 312); neste mesmo período, a
publicística conservadora, na América e na Europa, denuncia o
partido organizado como "escola de submissão servil" e
instrumento de intimidação que reprime e pisoteia o
"indivíduo" (Ostrogorski, 1991, p. 625 e 621); isto é,
de fato a publicística conservadora coloca indiscriminadamente no banco
dos réus as únicas possíveis forças capazes de opor
uma resistência organizada à violência das classes e do
poder dominante. A denúncia do partido como "máquina"
se concentra na figura odiosa do
boss
e, no entanto, a outra face da medalha surge objetiva e involuntariamente
quando se observa que os negros, forçados a sofrer os abusos dos
brancos, começam a se resignar à sua sorte até porque
"vão perdendo a confiança nos seus antigos
bosses",
os quais, com efeito, batem em retirada no Sul, deixando o campo livre para uma
sociedade civil e um poder que não necessitam de partidos para afirmar o
domínio incontrastado de uma "raça superior" (Bryce,
1888, v. 2, p. 450 ss. e 364).
Mesmo deixando de lado os negros, fica claro quem são efetivamente os
alvos concretos da campanha contra os partidos a partir do dedo acusador
apontado contra os militantes que "assistem, impassíveis, às
desordens na vida pública, porque estas desordens estão cobertas
pela bandeira do seu partido" (Ostrogorski, 1991, p. 617): são
visadas, claramente, as organizações políticas, sindicais,
sociais em sentido amplo, das classes subalternas, as quais, para poder opor um
mínimo de resistência a governo e patronato, são obrigadas
a apelar à coesão e também ao espírito de
solidariedade dos seus membros (aos quais, às vezes, fornecem
instrução e educação política) e, portanto,
são condenadas como uma espécie de "Igreja que provê a
todas as necessidades espirituais do homem" (Ostrogorski, 1991, p. 609).
Além disso, trata-se de uma Igreja que confunde perigosamente as
idéias dos seus fiéis:
A visão intelectual e a faculdade de atenção do homem
médio são muito limitadas, não lhe é
possível exercê-las num amplo horizonte ou numa perspectiva
pontilhada de múltiplos aspectos; ele pode seguir unicamente a
ação limitada a um campo restrito, como o do município, ou
mais amplo, mas que tenha sempre somente um único objetivo claro a todos
os olhares. Uma vez superados estes limites, sua visão se confunde, sua
atenção se dissipa e cansa, e, se ele continua a seguir a
direção indica da, o faz de maneira inteiramente passiva. Assim,
os membros de um grupo político que buscam objetivos múltiplos
são simples unidades justapostas (Ostrogorski, 1991, p. 611 ss.).
Surge aqui o tema clássico da multidão
"criança", que o partido organizado pretende elevar à
vida política consciente, mas deste modo transforma numa massa de
manobra e num exército de soldados habituados a uma obediência
cega. Neste sentido, um tal partido, baseado na "cooperação
passiva" e no "espírito de corpo", impede "a
emancipação do indivíduo" (Ostrogorski, 1991, p. 612
e 609).
É possível traçar uma história social da forma
partido. O partido político organizado nasce no rastro do movimento de
reivindicação de emancipação por parte das classes
subalternas. Estas é que têm necessidade de uma
organização o mais possível ramificada e capilar,
não as classes que têm à disposição o
aparelho estatal e governativo e a riqueza, além da influência
social que deriva imediatamente de tudo isto. Eis por que, durante todo um
período histórico, contrapõe-se o partido operário
ou popular
organizado
ao partido burguês
de opinião.
Vimos Bagehot refletir sobre as técnicas capazes de impedir a
organização em classe das "criaturas
miseráveis", satisfeitas com a própria sorte porque
induzidas a uma atitude de submissão filial pelo carisma de uma rainha
que só é rainha "pela graça de Deus" ou porque
seduzidas pelo "vago sonho de glória" agitado pelos
líderes chauvinistas (cf. supra, cap. 2, §§ 2 e 5). As classes
subalternas é que devem recorrer a esforços organizados e
prolongados para elaborar uma cultura e uma visão política
autônomas, para "constituir o próprio grupo de intelectuais
independentes" e para constituí-lo no curso de um processo que
freqüentemente é interrompido "pela iniciativa
[política e ideológica] dos grupos dominantes" (Gramsci,
1975, p. 1.858 e 2.283). Eis por que, durante todo um período
histórico, ao partido burguês, pelo menos aparentemente
desideologizado, contrapõe-se um partido operário ou popular, que
busca realizar internamente um grau mais ou menos alto de coesão,
inclusive ideológica. Um partido deste tipo constitui um forte centro de
autônoma produção espiritual. Em determinadas
circunstâncias, sobretudo em situações de crise aguda, as
classes dominantes também tentaram se colocar neste mesmo terreno,
superando a forma partido meramente de opinião. Mas é claro que,
do seu ponto de vista, a solução ideal consiste no
desaparecimento de partidos que se proponham como alternativa, no plano
organizativo e ideológico, ao seu sistema de poder.
Tais partidos representam o surgimento na cena política de classes
sociais anteriormente consideradas como um conjunto de "instrumentos de
trabalho" ou "máquinas bípedes", que agora
começam a reivindicar o reconhecimento da sua dignidade de homens e
indivíduos. E, no entanto, do ponto de vista de Ostrogorski, os partidos
que organizam estas classes subalternas cometem o erro de pisotear o
individualismo. Se olharmos bem, com argumentos não diferentes daqueles
depois usados pela publicística conservadora contra os partidos,
sobretudo operários, a Lei Le Chapelier vetava na França, em
1791, as coalizões operárias, que, com sua pretensão de
adotar uma estrutura organizativa para defender "supostos interesses
comuns", pisoteavam a liberdade de trabalho do indivíduo. E
é em nome deste individualismo repressivo que por longo tempo se golpeia
e reprime o nascente movimento sindical. Ainda depois da
Revolução de Julho, por ocasião de uma
agitação de protesto contra o trabalho por peça, as
autoridades da França liberal intimam: "Se os operários de
Paris querem apresentar reclamações fundamentadas, estas devem
ser apresentadas às autoridades individualmente e de forma
regular", sem afetar "o princípio da liberdade de
indústria" e da "liberdade de trabalho" (Sewell jr.,
1987, p. 336). E tal individualismo repressivo também está bem
vivo na América dos anos em que se desenvolve a campanha contra os
partidos organizados, dado que o
Sherman Anti-trust Act
(1890) é "aplicado, antes de mais nada e com muita eficácia,
contra os operários" (Nevins e Commager, 1960, p. 311), culpados,
evidentemente, de se reunirem em "monopólios" sindicais, pouco
respeitosos da iniciativa e da liberdade individual.
Adam Smith também era contrário às coalizões de
qualquer espécie sempre em nome do mercado e das razões do
indivíduo, mas ele, pelo menos, reconhecia honestamente que a
proibição, ainda que formulada em termos gerais, terminaria por
golpear numa só direção:
Os patrões, sendo em número menor, podem entrar em
coalizão mais facilmente [...]. Os patrões estão sempre e
por toda parte numa espécie de coalizão tácita voltada
para impedir o aumento dos salários acima do seu nível atual
[...] ou às vezes para abaixar ainda mais o nível dos
salários. (Smith, 1977, p. 62 e 67)
E, obviamente, a dissolução ou o drástico cerceamento dos
partidos políticos organizados também terminam por agir no mesmo
sentido da proibição das coalizões.
A campanha conservadora que se desenvolve na América e na Europa no fim
do século XIX formula, às vezes, a tese pela qual,
"eliminando os partidos rígidos, os partidos permanentes que
têm por fim o poder", permitir-se-ia que "as opiniões se
manifestassem com mais liberdade e se afirmassem com mais sinceridade"
(Ostrogorski, 1991, p. 632 e 634). Ocorre exatamente o contrário: o
enfraquecimento ou a dissolução dos partidos organizados
consagram o monopólio dos meios de produção espiritual nas
mãos de um pequeno círculo privilegiado que não encontra
mais nenhuma resistência organizada à sua obra de
manipulação. Às vezes, os críticos conservadores do
final do século XIX se declaram convencidos de que, enfraquecendo-se os
partidos, o nível do debate público se elevaria:
"Haverá uma tentação menor de usar aqueles
métodos sensacionais que apelam às emoções e aos
sentidos" (Ostrogorski, 1991, p. 634 ss.). Verifica-se, em vez disso, uma
assustadora queda no nível do debate político e a
atomização da massa cria os pressupostos do triunfo do
bonapartismo, baseado na relação, mais desigual do que nunca, que
vê, por um lado, o líder, que pode apelar aos meios de
comunicação mais poderosos e às técnicas mais
refinadas de persuasão oculta e de manipulação, e, por
outro, uma multidão agora verdadeiramente "criança",
porque cada vez mais destituída de toda e qualquer
organização e expressão autônoma.
A denúncia que Bryce e Ostrogorski fazem dos partidos e dos sindicatos
sufocadores da livre individualidade é contemporânea do libelo
dirigido por Le Bon contra "a era das multidões", que, afinal,
é a era dos sindicatos e dos partidos mais ou menos socialistas:
O poder da multidão nasceu, primeiramente, com a
propagação de certas idéias que se enraizavam lentamente
nos espíritos; em seguida, graças à
associação gradual dos indivíduos que permitiu a
realização de conceitos até então teóricos.
O fato de se associar permitiu às multidões ter uma idéia,
se não muito correta, pelo menos muito precisa dos próprios
interesses, e tomar consciência da própria força. As
multidões formam os sindicatos diante dos quais todos os poderes
capitulam, criam as câmaras do trabalho que, a despeito das leis
econômicas, tendem a regular as condições do emprego e do
salário. Enviam às assembleias de governo seus representantes
desprovidos de qualquer iniciativa, de qualquer independência, e
reduzidos, na maioria dos casos, somente à condição de
porta-vozes dos comitês que os elegeram. (Le Bon, 1980, p. 33 ss.)
Portanto, as multidões são as classes subalternas que se
organizam autonomamente em partidos e sindicatos, cuja força deve ser
suprimida para que os indivíduos assim atomizados sejam entregues ao
fascínio do César, que agora os pode subjugar mediante os
instrumentos fornecidos pela publicidade comercial (cf. supra, cap. 2, §
6).
[*]
Diretor do Instituto de Ciência Filosófica e Pedagógica da
Universidade de Urbino, Itália,
d.losurdo@uniurb.it
.
O presente texto constitui o capítulo 4 da sua obra
Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio
universal,
Editora UFRJ
/
Editora UNESP
, Rio de Janeiro, 2004, 276
pgs., ISBN 85-7139-565-9. O sumário do livro encontra-se em
http://www.editoraunesp.com.br/titulo_view.asp?IDT=225
.
Textos do mesmo autor em resistir.info:
As raízes norte-americanas do nazismo
Negacionismo e liberdade de investigação
.
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Gramsci : Du libéralisme au 'communisme critique'
Hegel et la catastrophe allemande
Fuir l'histoire? : Essai sur l'autophobie des communistes
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Démocratie ou bonapartisme : Triomphe et décadence du suffrage universel
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.