O artigo da Reuters sobre Snowden
Quando se dão muitas entrevistas em diferentes países e se diz
essencialmente a mesma coisa repetidas vezes, como eu, os veículos quase
sempre se dedicam a reembalar aquela mesma coisa, para que a entrevista que
publicam dê a impressão de conter novidades, mesmo que não
traga novidade alguma. É o caso do artigo da Reuters, hoje,
[1]
que pretende resumir minha entrevista ao jornal argentino
La Nación.
[2]
Como tudo que tenha a ver com os vazamentos da Agência de
Segurança Nacional dos EUA, essa entrevista também está
sendo ferozmente distorcida, para desviar a atenção das
revelações propriamente ditas. Tudo é reescrito para
atacar Edward Snowden e, secundariamente, para me atacar pessoalmente, por
estarmos, supostamente, "chantageando" e "ameaçando"
o governo dos EUA. Absurdo.
Que Snowden criou uma espécie de "conexão do homem
morto" para que documentos sejam divulgados no caso de ele ser
assassinado pelo governo dos EUA já havia sido noticiado
há várias semanas
[3]
e o próprio Snowden já várias vezes sugeriu fortemente
que fizera, sim, exatamente isso. Não significa que ele pense que os EUA
estejam tentando assassiná-lo e não pensa , apenas
que tomou precauções contra inúmeras eventualidades,
inclusive essa (afinal, é perfeitamente razoável preparar-se para
essa eventualidade, se se está enfrentando não qualquer inimigo
mas, precisamente, o governo que passou a última década
invadindo, bombardeando, torturando, 'entregando' prisioneiros a torturadores
em prisões estrangeiras, sequestrando, encarcerando sem
acusação formalizada, assassinando 'à distância'
com
drones,
apoiando e financiando os piores ditadores e assassinos, e matando seus
próprios cidadãos em golpes de assassinato pré-definidos).
Eis o que eu disse na entrevista ao jornal
La Nacion
afirmações verdadeiras e nenhuma das quais, nem
remotamente, teria algo a ver com ameaçar alguém:
1) O argumento sempre repetido de que Snowden teria a intenção de
ferir os EUA é absolutamente desmentido pelo fato de que ele tem, sim,
todos os tipos de documentos que mais rapidamente e mais seriamente podem hoje
causar dano aos EUA, se divulgados.
E não publicou nenhum desses documentos.
Quando nos entregou os documentos que entregou, Snowden várias vezes
repetiu que aplicássemos a eles o nosso mais rigoroso critério de
avaliação jornalística, para decidirmos que documentos
deveriam ser publicados, com vistas a atender ao interesse público; e
quais deveriam ser escondidos, sob o argumento de que o dano gerado pela
publicação ultrapassaria o valor público que tivessem.
Se Snowden visasse a causar dano aos EUA, poderia já ter vendido todos
os documentos, por quantia astronômica de dinheiro, ou já os teria
divulgado indiscriminadamente, ou os teria entregado a inimigo estrangeiro. E
não fez nada disso.
Snowden examinou cuidadosamente cada um dos documentos que nos entregou e
ainda, depois disso, pediu que só se publicassem os que pudessem ser
publicados sem causar nenhum dano desnecessário a quem quer que fosse: o
mesmo critério que todos os veículos de imprensa comercial e
whistleblowers
usam sempre. A ampla maioria das revelações já feitas
é um sinal de alerta, um 'apitar de consciência', para alertar
contra a vigilância secreta e total, sobre todos nós, que o
governo dos EUA estruturou e mantém em operação.
O meu argumento sobre isso, naquela entrevista, era claro, e o repeti
várias e várias vezes: se Snowden quisesse agredir o governo dos
EUA, poderia tê-lo feito facilmente, mas não o fez, o que
está bem comprovado como eu disse na entrevista pelo fato
de que tem, mas não divulgou, documentos que, sim, poderiam causar grave
dano a inúmeros programas mantidos pelo EUA.
Snowden não tem qualquer desejo de prejudicar os EUA. O que ele quer
é lançar luz sobre os programas de vigilância, para que o
problema possa ser democraticamente debatido. Por isso, nenhuma das
revelações já publicadas pode ser apresentada, nem de
longe, como danosa à segurança nacional dos EUA ou à
reputação e credibilidade de funcionários dos EUA que
fizeram aquelas coisas e, na sequência, mentiram sobre elas.
2) O governo dos EUA está agindo sob o ímpeto da mais feroz
irracionalidade.
A crítica mais recente é que Snowden está na
Rússia, não em outro país 'neutro'. Mas Snowden não
está na Rússia porque tenha escolhido o país. Só
está lá porque os EUA o impediram de sair: primeiro, lhe
caçaram o passaporte (sem qualquer devido processo legal ou
sentença); depois, pressionaram países aliados para que lhe
negassem direito de voar em espaço aéreo territorial daqueles
países (chegando ao cúmulo de forçar o pouso de
avião presidencial no qual viajava presidente democraticamente o eleito
de um estado soberano, apenas porque havia a suspeita de que Snowden estivesse
a bordo); depois, forçaram pequenos países a impedir que o
avião pousasse para reabastecer.
Dada a quantidade extraordinária de documentos que Snowden carrega com
ele e a gravidade de muitos daqueles documentos, eu disse, naquela entrevista,
que me parecia inacreditavelmente ridículo que o governo dos EUA tivesse
praticamente obrigado Snowden a permanecer na Rússia o que faz
sentido zero, se se pensa nos documentos que Snowden carrega.
3) Perguntaram-se se eu imaginava que o governo dos EUA empreenderia algum tipo
de ataque físico contra Snowden, caso tentasse viajar para a
América Latina, ou, mesmo, que os EUA chegariam ao ponto de derrubar o
avião em que ele viajasse. Foi quando eu disse que nada seria tão
completamente contraproducente, uma vez que como vários jornais e
blogs já haviam noticiado qualquer ataque desse tipo
imediatamente dispararia uma avalanche de revelações, porque nos
libertaria, a nós, jornalistas, de ter de examinar cada documento e
decidir responsavelmente, como sempre fizemos até agora.
E eu disse também, naquela entrevista, que o governo dos EUA deveria,
isso sim, rezar e pedir a Deus pela segurança de Snowden, em vez de se
por a ameaçá-lo ou tentar agredi-lo ou feri-lo.
Nada disso tem qualquer coisa a ver comigo: não tenho acesso aos
documentos do "seguro" de Snowden e não tenho papel algum no
plano que ele construiu para se proteger. Reporto os documentos que ele diz que
tem as precauções que disse que tomou para se proteger contra a
ameaça que ele pressente contra seu bem-estar. Isso não implica
qualquer ameaça. São fatos. Lamento se não agradam a
todos, mas nem por isso deixam de ser fatos.
Antes de a identidade de Snowden ser revelada como 'apitador de
consciência' [orig.
whistleblower
], escrevi:
"Desde que o governo Nixon invadiu o consultório do psicanalista de
Daniel Ellsberg, a tática do governo dos EUA sempre tem sido atacar e
demonizar os 'apitadores de consciência', como artifício para
distrair a atenção do que eles expunham de malfeitorias do
próprio governo, e para destruir a credibilidade do mensageiro, para que
as pessoas deixassem de dar atenção à mensagem. O que se
vê hoje, no caso de Snowden é, só, repetição
da mesma tática."
[4]
E é o que é: mais um esforço para distrair a
atenção, para que ninguém se atenha à
substância das revelações. (Hoje, Melissa Harris-Parry,
âncora do noticiário matinal na rede MSNBC, culpou Snowden pelo
fato de a mídia estar dando mais atenção a ele do que
às revelações sobre a Agência de Segurança
Nacional dos EUA:
[5]
como se ela não tivesse programa seu, que vai ao ar duas vezes por
semana, no qual poderia falar o quanto quisesse sobre as
revelações que diz considerar tão importantes.
Compare-se (a) a atenção que tem sido dada ao drama do asilo de
Snowden e a alegados traços do seu caráter, e (b) a
atenção dada à substância das
revelações sobre espionagem em massa, indiscriminada, pela
Agência de Segurança Nacional dos EUA.
Ou comparem-se (a) as repetidas manifestações em
órgãos da imprensa norte-americana, no sentido de que Snowden (e
outros que estão trabalhando para denunciar a espionagem em massa na
Agência de Segurança Nacional) sejam tratados como criminosos, e
(b) a virtualmente nenhuma manifestação, na mídia dos EUA,
no sentido de que o diretor da Inteligência Nacional, James Clapper, seja
tratado como criminoso por mentir ao Congresso.
A invenção de alguma nova "ameaça" é,
só, mais um esforço para falar de qualquer coisa, exceto as
revelações de que o governo dos EUA mente ao Congresso e de que a
Agência de Segurança Nacional dos EUA, apoiada em premissas muito
duvidosas do ponto de vista da legalidade, espiona todos os cidadãos
norte-americanos (além de espionar o resto do mundo).
Ontem era outra coisa, amanhã inventarão uma terceira ou quarta
coisa. Como já disse nessa entrevista a Falguni Sheth publicada hoje em
Salon,
[6]
é atitude típica dos EUA: no resto do mundo mídia e
analistas focam-se no conteúdo das revelações; nos EUA, os
jornalistas e especialistas midiáticos mantêm-se obcecadamente a
falar de qualquer coisa, exceto do conteúdo das revelações.
Haveria inúmeras vias acessíveis para que Snowden divulgasse os
documentos que decidira divulgar. Ele escolheu a que lhe pareceu mais
responsável: procurar jornais e jornalistas nos quais confiava e cobrar
que a divulgação fosse feita com responsabilidade. O
esforço para desmoralizá-lo e apresentá-lo como uma
espécie de traidor não encontra nenhuma confirmação
nos fatos. Toda a entrevista tratou desse aspecto.
Quem queira saber quem, de fato, teve comportamento criminoso e causou dano
grave aos EUA, não terá dificuldades para descobrir
[7]
[8]
[9]
e fará trabalho mais produtivo que o de demonizar quem tanto se
arriscou para tocar o apito e alertar as pessoas contra, precisamente, aqueles
crimes. Mas, como já disse, e aqui repito, nada disso nos
impedirá, nem por um momento, de continuar a informar sobre os muitos
casos de espionagem e vigilância interna pela Agência de
Segurança Nacional dos EUA que ainda não vieram a público.
13/Julho/2013
[1]
www.reuters.com/...
[2] A entrevista está em
www.lanacion.com.ar/...
(castelhano)
[3]
www.thedailybeast.com/...
[4]
www.guardian.co.uk/...
[5]
tv.msnbc.com/2013/07/13/edward-snowden-come-on-home/
[6]
www.salon.com/...
[7]
www.salon.com/2013/07/01/this_man_is_still_lying_to_america/
[8]
www.nytimes.com/2013/06/28/opinion/the-criminal-nsa.html?pagewanted=all&_r=2&
[9]
www.ibtimes.com/...
Ver também:
Prémio Nobel da Paz para Snowden
, petição
Uma decisão moral
, Edward Snowden
A NSA e os seus prestativos ajudantes
, Edward Snowden
Um apelo às armas da codificação
, Julian Assange
The NSA Is Building the Country's Biggest Spy Center
, James Bamford
[*]
Jornalista.
O original encontra-se em
www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/jul/13/reuters-article-dead-man-s-switch
Tradução de Vila Vudu.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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