Tecnocracia e ilusão tecnológica
por Daniel Vaz de Carvalho
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O pior dos analfabetos é o analfabeto político. O
analfabeto político é tão estúpido que se orgulha e
enche o peito para dizer que detesta a política. Ele não
sabe, o imbecil, que é a sua ignorância política que produz
(
) o político desonesto, mentiroso e corrupto que lambe os
pés das empresas nacionais e multinacionais.
Bertolt Brecht
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1 A ilusão tecnológica, uma forma de
alienação
A ilusão tecnológica manifesta-se de duas maneiras: mais
tecnologia representa mais progresso; a tecnologia há de resolver todos
os problemas, isto é, não temos que nos preocupar nem com os
outros, nem com a própria sociedade a que se pertence, nem com resto do
mundo.
Na realidade, as mudanças tecnológicas têm servido em
primeiro lugar para evitar a baixa tendencial da taxa de lucro e não
como factor de libertação da Humanidade. A técnica
não é por si a salvadora da Humanidade. O ambiente natural e o
tecido social, têm sido destruídos mesmo com técnicas muito
evoluídas, através de doutrinas económicas que potenciam
aquelas crises. Muita da informática foi usada para aumentar
burocracias, quando era suposto ser o contrário. Os aumentos de
produtividade levaram a massivos despedimentos, reduções de
salários, degradação das condições de
trabalho.
Não nos devemos iludir com as proezas tecnológicas, pois elas
próprias estão ao serviço de ideologias, e desta forma que
também servem também para acelerar e ampliar erros. Uma mega
estrutura bancária, o banco Lehmon Brothers que faliu fraudulentamente
em 2008, utilizava três mil programas informáticos e 25 mil
servidores. O mesmo se passou com muitos outros que tiveram o mesmo destino ou
se encontraram dependentes das ajudas estatais.
Além disto, note-se que há características que pessoas
experientes conseguem realizar em segundos e que os mais potentes computadores
mesmo de grande capacidade só o fariam ao longo de muito tempo. Falamos
por exemplo de características visuais, olfativas, paladar, etc.
Um caso característico ocorre na astronomia. Os computadores conseguem
dizer com precisão a cor da galáxia, uma ideia da sua
dimensão, da forma e do seu tipo, mas não conseguem reconhecer
detalhes como o cérebro humano. A classificação das
imagens de milhares de galáxias obtidas através do Hubble
está a ser feita por técnicos experientes: são precisos
alguns segundos para algo que atualmente demoraria semanas e seria
necessário uma grande capacidade computacional.
A palração à volta das "novas tecnologias" e da
"modernidade" que tudo resolveria foi e é uma forma de
alienação. Os quadros técnicos e investigadores que se
deixam seduzir pelos avanços tecnológicos acabam por assumir os
valores da direita num processo de alienação da sua
posição social e produtiva, que os coloca demasiadas vezes
mesmo que inconscientemente do lado do capital contra os outros
trabalhadores. Contudo são depois lançados na precariedade, no
desemprego, na emigração numa vida sem perspetivas.
Trata-se do agravamento da condição proletária dos quadros
técnicos apanhados na ilusão apolítica do progresso pela
técnica.
De facto, o trabalho qualificado está sujeito às mesmas regras
que determinam o trabalho no capitalismo. Isto foi o que ocorreu a partir de
1986, com o neoliberalismo e o ataque selvagem aos salários.
[1]
A ilusão tecnológica desempenha parte importante no
condicionamento das consciências. Nos conceitos capitalistas a tecnologia
é apresentada como o fator fundamental das transformações
sociais, da evolução da sociedade, que substituiria a luta de
classes. Não passa de uma falsificação do processo
histórico, evidente desde a revolução industrial.
A tecnologia por si não predetermina os objetivos da sua
utilização. As técnicas são apenas meios de atingir
objetivos estabelecidos pela política, pela ideologia, pela sociedade e
sua direção.
2 Tecnocracia
A tecnocracia é uma das armas do arsenal ideológico da
política de direita para captar determinadas camadas, designadamente
quadros técnicos e juventude. A tecnocracia representa uma falsa
racionalidade antidialética como argumento para a
menorização e mesmo menosprezo dos aspetos sociais. O otimismo
tecnocrático exibe a convicção que as questões
sociais são resolvidas no campo da técnica sendo os problemas que
ocorrem originados por comportamentos individuais irracionais.
A tecnocracia exibe a prostração intelectual perante a propaganda
(comercial e ideológica) dos países dominantes e que a
aplicação das tecnologias não depende do regime social.
O mais grave na tecnocracia é a sua ignorância sobre os processos
históricos e sociais. Ignorância que no entanto se assume com a
arrogância do desprezo pelas formas mais abrangentes da cultura
outra característica de empréstimo ao fascismo.
A oligarquia serve-se de pseudo-elites desligadas dos problemas sociais para a
gestão política e económica, com apelos à
"competência" profissional, sendo que a avaliação
dessa competência é feita pelos critérios aprovados pela
oligarquia. Uma falsa modernidade com réstias das teses fascistas revive
por via do neoliberalismo e das suas formas de austeridade e
"competitividade".
Nas ilusões tecnocráticas de alguns epígonos da direita e
do seu governo não é difícil encontrar o desígnio
de "pôr ordem no país". Um país que no fundo
desprezam, que consideram infectado pelo "vírus" do 25 de
ABRIL e para cuja "cura" pretendem que se submeta às
técnicas neoliberais.
Segundo Ortega e Gasset [o especialista] não é um sábio
porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade, mas
também não é um ignorante (...) Em política, em
arte, nas outras ciências tomará posições de
primitivo, de ignorantíssimo, mas tomá-las-á com a energia
e suficiência de um sábio, sem admitir e isto é
paradoxal especialistas destas coisas. Ao especializado a
civilização fê-lo hermético e satisfeito dentro das
suas limitações".
[2]
Acrescenta O. Gasset: "Poderão dizer que criticando a
especialização limita-se a criatividade. Não, defendemos a
criatividade, mas não a dos especialistas. Os especialistas são a
contra cultura. A cultura tem de ser generalista, ou melhor, abrangente por
natureza, englobando obviamente as disciplinas humanísticas".
"O especialista representa afinal a desarticulação do
saber".
Em "Galileu Galilei", escreveu Brecht: "Com o tempo vós
podeis descobrir tudo o que há para descobrir e no entanto o vosso
progresso afastar-vos-á cada vez mais da Humanidade. O abismo entre ela
e vós pode tornar-se um dia, tal que ao vosso grito de alegria perante
alguma nova conquista científica responderá um grito de horror
universal."
Face à tecnocracia e ao "especialismo", o marxismo, exprime
"contra a unilateralidade, uma perspectiva totalizante e dialética.
O concreto não se confunde com a mera amálgama de
determinações", "pelo contrário remete-nos para
investigar a realidade na sua textura e interações".
[3]
3 Tecnocracia, tecnologia e progresso social
Tecnologia não é por si só progresso, é
especialização. Estes especialistas recheados de títulos
académicos, formatados no "pensamento único"
"o grau zero do pensamento" (J. Saramago) são
alcandorados ao poder dos grandes interesses dominantes criam uma estrutura
tecnoburocrática irresponsável perante os povos e inimiga da
democracia em tudo o que contrarie os seus dogmas.
Cecilia Malmstrom, comissária europeia do comércio internacional
liderava as negociações da UE no TTIP, ao ser questionada por um
jornalista pelo prosseguimento das negociações perante uma
maciça oposição pública respondeu: "Eu
não devo o meu mandato ao povo europeu.
[4]
Eis uma resposta que define o pensamento da clique burocrática a mando
dos "novos senhores do mundo" na expressão de Jean
Ziegler que dirige de facto os povos com a imposição de
regras, diretivas, resoluções, que apenas servem o interesse de
uma mais que restrita camada de bilionários. Mas quem são estes
burocratas?
Foram óptimos alunos em escolas de prestígio, apreenderam
acriticamente o que lhes foi leccionado, preencheram os curricula com
pós-graduações, seguiram ciclos de formação
dados por enaltecidos gurus das mesmas escolas. Todos eles longe da economia
real e muito mais da vida do trabalhador comum.
Fazer depender a evolução humana do progresso técnico
é a ilusão da eficiência quando a primeira devia subordinar
a segunda, tornando-se complementares. Apesar dos impressionantes avanço
científico-técnicos, que fracasso para a Humanidade, com as suas
proezas espaciais e cibernéticas, não ser capaz de proporcionar a
cada ser humano vida livre e feliz. Que escândalo tanta tecnologia
avançada quando milhões morrem de fome, de doença ou sob o
mais sofisticado armamento. Alguém se pergunta se as
inovações na tecnologia militar trouxeram mais dias de paz ao
mundo, trouxeram, sim, aos oligarcas milhares de milhões de
dólares confiscados aos povos oprimidos.
O primeiro objetivo do desenvolvimento tecnológico (DT) em capitalismo
é impedir a queda da taxa de lucro. Porém, a "taxa de lucro
cai devido à natureza específica das inovações
tecnológicas". Nos EUA a produtividade aumentou de 28
milhões de dólares por trabalhador em 1947 para 231
milhões em 2010, ao passo que os trabalhadores por meio de
produção se reduziram de 75 em 1947 para 6 em 2010. A taxa
média de lucro no período 1950-1960 foi de 15%, no período
2000-2010 caiu para cerca de metade. Nos países do G7 desde meados dos
anos 60 a taxa de lucro reduziu-se 20%. (
) O sistema é cada vez
menos capaz de produzir mais-valia por unidade de capital investido, um facto
oculto por uma taxa de exploração crescente.
[1]
A tecnologia não levou nem leva à redução das
contradições do capitalismo nem reduz o domínio dos
mercados pelas grandes transnacionais. A ilusão de progresso pela
inovação e as "novas tecnologias" em nome da
competitividade, são um lugar-comum que ignorando o social apenas serve
para mascarar o aumento da exploração e a acrescida instabilidade.
O desenvolvimento científico-técnico pode contribuir para a
melhoria da condição das camadas trabalhadoras e dos povos, mas
uma possibilidade não é uma realidade. Depende das
políticas e dos objetivos sociais, depende da economia-política
seguida.
O DT em capitalismo acentua a corrida ao lucro, à anarquia da
produção e consequentemente às crises, às
desigualdades sociais e entre países, à degradação
ambiental, pois o objetivo fundamental é a maximização da
taxa de lucro. O que se pode ver desde há dois séculos é
que as tecnologias não alteram as características fundamentais do
capitalismo, tudo o que foi conseguido a favor dos trabalhadores foi-o
através de abnegadas lutas. E isto são apenas factos
Nenhuma "revolução tecnológica" salvou ou salva
o capitalismo das suas contradições e crises. O capitalismo
mostrou-se incapaz de dominar as consequências negativas da
revolução científico-técnica. E se propagandistas e
devotos do capital sonham com os "anos de ouro" dos países
capitalistas mais ricos, fazem por ignorar as duras lutas populares que
ocorreram nesses países, os fenómenos de neocolonialismo, as
guerras coloniais e imperialistas.
Políticas visando um DT equilibrado, planeado, com vistas ao
desenvolvimento da produção nacional, foram consideradas
"ideias do passado" face às ilusões à volta das
"novas tecnologias" entregando aquelas funções ao
capital transnacional que se encarregaria da "especialização
produtiva".
A principal tarefa da Humanidade é conseguir dotar-se de um sistema
económico e social cuja tarefa prioritária dos cientistas e
técnicos seja justamente reduzir o impacte ambiental e social do
desenvolvimento e a erradicação da fome e da miséria na
Terra, terminar com o ciclo de intermináveis crises, desigualdades,
estagnação económica e pobreza com que o capitalismo
confronta a Humanidade.
Tal só é possível lutando pela paz e pelo socialismo,
única saída para a sobrevivência e o progresso da
Humanidade.
Ver também sobre este tema:
Tecnologia: uma questão política central
A digitalização da indústria e dos serviços
Novas formas de produção ou um novo modo de produção
[1]
O esgotamento da atual fase histórica do capitalismo
, Guglielmo
Carchedi
[2] A Rebelião das Massas, Ortega e Gasset, p. 114
[3] Totalidade e Contradição. Acerca da Dialética,
José Barata Moura, Ed. Avante, p. 286 e 291.
[4]
The Rise of the Corporatocracy
, Graham Vanbergen
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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