A digitalização da indústria e dos serviços
por Daniel Vaz de Carvalho
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"A guerra industrial (de uns capitalistas contra os outros) apresenta a
particularidade de que nela as batalhas são ganhas não tanto
arregimentando exércitos de trabalhadores como licenciando-os"
Marx, Trabalho Assalariado e Capital
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1 Genericamente, em que consiste
O desenvolvimento tecnológico no século XXI baseia-se no conceito
de digitalização dos processos na indústria e nos
serviços, utilizando a robótica, as mais avançadas
tecnologias da informação, comunicação e
localização (TICL), etc. Comunicações internet de
alta velocidade tornam possível o controlo em tempo real de
operações localizadas em pontos muito distantes.
A partir da recolha de dados em tempo real por sensores e processados
centralmente por computadores de alta capacidade e mesmo capazes de
"autoaprendizagem" considera-se que haverá
fábricas "inteligentes", as "smart factories", tal
como smart cities, smart energy, smart health, smart living, etc., enfim tudo
"smart".
Na UE foi definido como prioridade o desenvolvimento destas tecnologias para
que a "UE possa beneficiar dos efeitos da produtividade e
inovação". Associadas a este processo de
digitalização estão tecnologias avançadas como as
KET (key enabling tecnologies) designadamente, as nanotecnologias; micro e
nanoelectrónica, biotecnologia industrial, novos materiais,
fotónica; tecnologias de fabrico avançadas e robótica.
Assim, a concepção, a produção, controlo de
qualidade, armazenamento, expedição, gestão, enfim as mais
diversas operações, podem ser realizadas através da
ligação de redes informáticas, em diferentes partes ou
países por subcontratantes ou tarefeiros "altamente
qualificados" e "com um mínimo de intervenção
humana". É um processo em que indústrias e serviços
podem estar dispersos. Por exemplo, uma fábrica estar na Ásia ou
em África por razões de matérias-primas, financeiras, etc,
e ser gerida, comandada, controlada de Berlim.
Estamos perante a "economia digital", a
"digitalização da indústria" e a
"indústria da digitalização", designada como a
"quarta revolução industrial", 4 i" ou
também 4.0.
[1]
De uma forma geral o que esta "revolução" faz é
levar ao limite processos e tecnologias existentes, num sistema em que deixa de
existir uma concentração de trabalhadores no processo produtivo.
Enfim, além da procura do lucro, procura-se atingir o ideal capitalista
da fábrica sem operários e o fim do sindicalismo.
2 As promessas, as realidades
As perspectivas são aliciantes, como de costume. Os seus promotores
afirmam que potencia em cinco anos na "Europa" 110 mil milhões
de euros de "redução de custos" (para quem?). Fala-se
num aumento do PIB na UE de 5% (em que países?) criando 16
milhões de empregos altamente qualificados, embora seja estimado o
desaparecimento de 12 milhões menos qualificados.
Os próceres do grande capital exultam com estes delírios
tecnológicos. Tudo isto é apresentado como grande vantagem para o
"consumidor" permitindo oportunidades de inovação,
pequenas séries, maior importância dada aos detalhes e ao gosto
dos clientes, por exemplo em carros topo de gama, equipamentos sofisticados nas
habitações e nas cidades tornadas mais seguras e funcionais, etc.
Estas oportunidades não deixam de vir com ameaças: "a
revolução tecnológica terá um impacto negativo para
os que se atrasarem". Por outras palavras: submetam-se às
transnacionais detentoras destas tecnologias, senão
Entre
nós, o primeiro-ministro anunciou o Programa 4.0, estratégias
para a "economia digital". Com 414 milhões de euros de
"incentivos comunitários" para projetos de
"digitalização da indústria", apoios às
empresas e ações de formação abrangendo 20 mil
pessoas
[1]
São as mesmas ilusões que com o euro, com os Pactos de
Estabilidade e Crescimento, com as Diretivas Europeias sobre concursos
públicos, etc iriam permitir "crescimento e emprego",
poupanças de milhares de milhões aos Estados e
"contribuintes". Ilusões que a direção da UGT e
os "europeístas" engoliam sofregamente e propagandeavam. O que
conseguiram foi estagnação, desemprego, endividamento, crise,
desigualdades e
mais pobreza.
Voltam às teorias dos "desafios" e das "apostas"
como as proclamadas aquando da adesão à então CEE e depois
ao euro, em que havia 500 milhões de consumidores à nossa espera,
quando aqueles países eram excedentários em todas as
produções em que Portugal tinha capacidade e competência ou
necessitava para o seu desenvolvimento.
A UE é um espaço em decadência, arrastada para o fundo pela
usura, a corrupção financeira, a parceria imperialista e pelo
totalitarismo alemão sobre os demais países. Estima-se que na
próxima década 90% do crescimento mundial se processe fora da UE.
A atitude de algum patronato pedindo "regras, multilaterais eficazes"
no âmbito da OMC e de que a UE disponha de instrumentos de defesa
comercial, etc, assemelha-se a penitentes implorando por intercessão a
seu favor
Não entendem que a música que se toca nos
areópagos da UE é o
Deutschland ûber alles.
A prioridade da Alemanha é manter a sua competitividade a nível
mundial. A "solidariedade europeia" é a última das suas
preocupações.
Pretende-se que esta "revolução tecnológica"
tenha uma abordagem abrangente a nível europeu, porém o
Investimento deve ser feito a pensar na globalização (leia-se:
ignorando as necessidades nacionais). O que irá aumentar as
divergências entre países e agravar as contradições
da "construção europeia", usando a terminologia dos
federalistas.
A Alemanha comanda destacada na UE os avanços tecnológicos. No
período 2000-2007, detinha entre 40 a 50% ou mais das
aplicações patenteadas na UE na área das KET; seguia-se a
França, com valores entre os 12 e 17%.
[2]
Em 2015 a Alemanha detinha 33% das patentes registadas no EPO (European Patente
Office, 40 países membros) para todos os sectores; Portugal ficava-se
pelos 0,2%.
[3]
Fora da UE o domínio das tecnologias mais avançadas pertence aos
EUA, Japão, Coreia do Sul, China. Os sistemas digitais são
dominados por empresas dos EUA (Apple, Google, Microsoft).
Os apoios estatais destinam-se basicamente a criar condições e a
tornar atrativos os investimentos do grande capital, visto que apenas ao grande
capital transnacional são acessíveis os investimentos
necessários para concretizar os projetos de digitalização
da economia, com elevados custos de operacionalidade na fase experimental,
riscos, incertezas quanto a resultados e competitividade,
destruição do capital fixo existente, etc. Além disto,
exigem enormes quantidades produzidas e consumidas para se tornarem
rentáveis (claro que é de rendas monopolistas que falamos).
As drásticas condições de garantia de lucro, expressas nos
chamados "tratados de comércio livre", são outro aspeto
da colonização que o grande capital transnacional exige aos
países dependentes. Na UE as políticas variam conforme os
países, mesmo que as dificuldades sejam originadas pelos
critérios impostos: a lógica altera-se quando se trata de
defender os interesses das potências dominantes para garantirem a sua
hegemonia.
Assim, os elevados investimentos, os riscos e incertezas associados à I
e D das tecnologias mais avançadas, levam a reconhecer que o mercado
não pode servir de guia para orientar o desenvolvimento
tecnológico. "A maioria das aplicações das KET
estão ainda num estado conceptual ou pré-competitivo e por isso
não é possível usar as referências do mercado para
sabermos quão competitiva a Europa é em comparação
com o resto do mundo". Propõe-se então a
coordenação entre a I e D e a indústria para além
"do permitido pelos mecanismos de mercado" e recomendam-se
incentivos, e a orientação pelo Estado para estes objetivos.
[2]
3 Portugal na divisão capitalista internacional do trabalho
O que tem tudo isto a ver com as necessidades e interesses do nosso
país? Sob o signo de "desafios" e "apostas",
não poderá deixar de ser senão como na
integração na UE mais destruição do nosso tecido
produtivo e o país conduzido para especializações em
produtos intermédios ou banalizados internacionalmente, cuja
competição conduz a baixos salários, incerteza e
dependência.
A globalização baseia-se na intensificação da
concorrência internacional em benefício das grandes transnacionais
e do capital financeiro, liquidando a soberania dos povos e aumentando a
exploração dos trabalhadores. Intensifica também a
obsolescência económica/tecnológica dos equipamentos
(embora tecnicamente funcionais). É a usual destruição de
capital fixo e força de trabalho a que o grande capital recorre para
impedir a queda da taxa de lucro e sair das crises que origina.
Não haja ilusões, os países dominantes continuarão
a extorquir matérias-primas aos países dominados e querer
explorar ao máximo possível os trabalhadores e as empresas
subcontratadas num processo de troca desigual, em que a maior parte do valor
acrescentado é captada pela concepção, gestão e
comercialização destas atividades, isto é, pelo
núcleo transnacional. É esta a sua natureza, é isto que
resulta da sua lei fundamental: a maximização do lucro e
extorsão de mais-valia.
Neste processo, Portugal vai estar confrontado com outros povos de capitalismo
dependente na competição internacional como já hoje
pelo investimento das transnacionais nas condições em que
são donos e senhores de estabelecer condições como as que
os tratados de "comércio livre" estipulam e que designadamente
o PS considera vantajosas sem evidenciar em que se baseia.
O desenvolvimento tecnológico (DT) é condição
necessária para preparar o futuro de qualquer país. Coloca-se
assim a questão do papel que Portugal pode e deve assumir neste
processo. Duas soluções se apresentam, independentemente dos
modos de serem levadas à prática: aceitar o controlo e a
sujeição às transnacionais ou adotar o planeamento
económico e o desenvolvimento soberano.
Relativamente à economia digital Portugal não fabrica os
equipamentos nem domina os processos. A resolução destes
problemas implica que o investimento seja prioritariamente orientado para os
sectores produtivos e devidamente planeado em termos de soberania plena na
indispensável cooperação mutuamente vantajosa com outros
países.
Sem isto, podem existir empresas trabalhando em tecnologias de ponta e
equipamentos sofisticados, mas sem transferência de tecnologia, sem que
os trabalhadores dominem os processos, tendo apenas as noções
necessárias às operações contratadas.
Os resultados do DT dependem da forma como são geridos os factores de
que depende e como é difundido na sociedade. Qual o nível de
despesas em I e D no PIB? Que tipo de cooperação se estabelece
entre as entidades públicas de DT e as empresas, para o aumento da
produtividade, da inovação e melhoria da qualidade. Que tipo de
cooperação se estabelece a nível internacional
fácil no âmbito da investigação fundamental e mesmo
na aplicada?
Outra questão se coloca: como conciliar o necessário
acompanhamento das tecnologias mais evoluídas com o aumento da
produtividade média nacional? A produtividade média define o grau
de desenvolvimento económico e também social de um país.
Porém, entre o desenvolvimento das tecnologias avançadas e o
aumento da produtividade média não há uma
relação de causalidade direta.
Não se trata apenas de conseguir em algumas empresas tecnologias de
ponta, sem dúvida necessárias. Globalmente interessa ao
país a produtividade social média, portanto trata-se de apoiar o
progresso da estrutura produtiva e dos serviços no seu conjunto,
incluindo as MPME. Aliás, se não houver forma de absorver e
reorientar o desemprego que o DT provoca, é potencial produtivo que se
perde e portanto também produtividade social.
A saída de capitais e rendimentos, para juros, "paraísos
fiscais", atividades especulativas mostra as dificuldades que o
país enfrenta para o seu desenvolvimento com as políticas de
submissão aos ditames da UE e do euro.
O aumento da competitividade através do DT com vistas a melhorar a nossa
posição nos mercados interno e externo só é
possível com a criação de um forte sector empresarial do
Estado designadamente nos sectores básicos e estratégicos.
O DT implica definição de objetivos, organização,
prazos, etc., isto é, planeamento. O DT não é
concebível no marasmo económico, sendo necessários planos
de industrialização e o avançar com grandes projetos
estratégicos para a consolidação da estrutura
económica do país e a necessária transmissão dos
conhecimentos científico-técnicos para a área produtiva.
03/Março/2017
[1]
Tecnologia: uma questão política central
[2] European Competitiveness Report 2010, Eurostat, 2010, SEC(2010) 1276
[3] Science, technology and innovation in Europe, Eurostat, ISSN 1830-754X
Ver também:
Artificial Intelligence: 'Frankenstein' or Capitalist Money Machine
, de James Petras
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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