por Daniel Vaz de Carvalho
1 Por falar em "revolução digital"
Anuncia o primeiro-ministro o Programa 4.0,
estratégias para a "economia digital"
. Com 414 milhões de euros de
"incentivos comunitários", para projetos de
"digitalização da indústria", o programa
prevê apoios às empresas e abranger 20 mil pessoas em
ações de formação. Enfim, mais uma forma de dar
dinheiro aos privados sem planeamento nacional
Diz o primeiro-ministro querer "surfar na crista da onda", o que nos
leva para a fantasia de estar "no pelotão da frente" quando
nos atiraram ao poço do euro. Isto num país que, graças
às políticas de direita não possui valências, em
muitos casos perdeu o que possuía, no domínio dos processos
tecnológicos e capacidades produtivas quanto ao aproveitamento dos
recursos nacionais do mar, do subsolo, da floresta, etc.
Antes de abordar a falada "revolução digital" vejamos a
tecnologia como uma questão política.
2 A tecnologia não é neutra
A tecnologia passa demasiadas vezes por ser politicamente neutra. Não
é. A tecnologia é antes de mais uma questão
política central do desenvolvimento. E quando falamos em desenvolvimento
isto significa económico e social e o que é social, ao
contrário das posições de direita, não vem por
acréscimo do económico (submetido ao lucro) ou do
tecnológico (como que por osmose).
Embora o desenvolvimento tecnológico (DT) se baseie no desenvolvimento
científico a forma como a ciência intervém no processo
produtivo define ideologias, diferentes. Note-se que a questão
tecnológica abrange desde a atividade do cientista e investigador ao
operário, unindo o sistema científico-técnico (C-T) e o
produtivo.
A política de direita entrega o máximo possível de
escalões deste sistema ao "mercado", isto é, às
determinações do grande capital e tanto mais escalões
quanto mais radical for de acordo com o princípio de socializar custos,
privatizar lucros. O capital necessita da intensificação do
progresso técnico para contrariar a baixa tendencial da taxa de lucro.
Mas este progresso, pelo menos nas suas bases, compete ao Estado diretamente ou
através de subsídios, sendo visto como um bem público para
ser utilizado pelo capital privado. Um fator produtivo fundamental sem custos,
mais um dos tais almoços grátis à custa dos
cidadãos.
Deste ponto de vista, compete ao capital privado utilizar o progresso
científico (dito a endogeneização do progresso) de acordo
com o mercado e a motivação do lucro. Saliente-se desde já
a contradição entre as motivações do lucro desta
"endogeneização" e as necessidades sociais.
É neste sentido que as transnacionais se apropriam do progresso C-T e
procedem à sua mercantilização através de patentes
monopolistas, leis internacionais via OMC e os chamados acordos de
"comércio livre", baseados na ameaça imperialista de
sanções e penalidades impostas por "tribunais
arbitrais" internacionais ao seu serviço.
A questão do DT é não apenas uma questão central,
mas uma questão que se coloca de forma dramática, para os povos
menos desenvolvidos ou competitivos nas condições do livre
comércio e livre transferência de capitais, tal como os
estabelecidos na UE a que países como Portugal e outros ditos
"periféricos" têm de fazer face.
3 - A política da direita na área tecnológica
A política de direita na área tecnológica praticada pelo
anterior governo PS com o ministro Mariano Gago distingue-se da do PSD-CDS,
porém ambas se baseiam na bondade e eficiência do capitalismo para
a resolução dos problemas estruturais do país. Houve de
facto um aumento do número de licenciados, mestres e doutorados, mas
não um efetivo DT do país, não se reduziram as
insuficiências e dependências neste campo e acentuou-se a
degradação dos sectores produtivos.
O PS pretendeu realizar o desenvolvimento C-T pela integração
capitalista da política científica em grandes centros
internacionais, designadamente dos EUA, assumindo encargos e custos para o
país, alheada das necessidades do desenvolvimento nacional e sem cuidar
das reais necessidades do aparelho produtivo. Promoveu políticas depois
levadas ao extremo pela direita mais reacionária, o governo PSD-CDS. Foi
o caso da precariedade dos investigadores nacionais, o estrangulamento do
sector universitário público, a degradação dos
Institutos de investigação e desenvolvimento (I e D) do Estado.
As políticas de direita, quaisquer que fossem os protagonistas, seguiram
um caminho errático com sucessivas alterações no estatuto
e competências das instituições, redução de
pessoal, financiamento, etc. Os objetivos foram no essencial os mesmos:
estrangulamento e desvalorização dos serviços do Estado,
das carreiras e salários, procurando que o capital monopolista e
transnacional assumisse a condução das políticas
tecnológicas do país.
Com argumentos de promoção populista da ignorância o
ministro Pires de Lima (PSD-CDS), justificava os cortes às
Universidades, Institutos Públicos, bolseiros doutorandos e
investigadores, como necessários para terminar com "um modelo que
permite à investigação e à ciência viverem no
conforto de estar longe das empresas e da vida real". Simultaneamente os
media promoviam a imagem do patronato como estrelas mediáticas e grandes
impulsionadores do "crescimento e do emprego". A realidade
desmentia-os totalmente.
Ao mesmo tempo incentivou-se a emigração dos mais qualificados
para saírem "da zona de conforto" (!) e as verbas passaram a
ser orientadas para subsídios às grandes empresas, proporcionando
toda a espécie de equívocos ou fraudes neste campo.
Assim entre as empresas que mais receberam apoios e subsídios de DT
foram
bancos e seguradoras.
Também no campo tecnológico a direita deixou ao país um
gravíssimo problema. Guiada pela defesa dos interesses do grande capital
económico e financeiro a competitividade centrou-se na
redução de salários reais (austeridade) e direitos
(precariedade): aumento da exploração dos quadros técnicos.
Os antigos diziam que "os néscios copiam os erros dos
grandes". A deformação ideológica da direita PSD-CDS
é tal que não apenas copiou mas quis "ir além"
dos que os próprios centros capitalistas praticam. Em nome da
sacrossanta "concorrência" os Laboratórios do Estado
foram colocados em competição com Universidades e
Politécnicos por reduzidas verbas, sem definição de
prioridades, sem coordenação, sem ligação com
objetivos que não existiam de redução das
dependências e défices estruturais do país.
La Boétie (1530-1563), autor do
Tratado sobre a servidão humana
, resumiu exemplarmente a política de direita nestes domínios:
"As Universidades educam na lógica da servidão
voluntária ao sistema". O que a política de direita
pretendeu foi colocar os quadros C-T ao serviço do pensamento dominante
em vez de constituírem elementos fundamentais do progresso e
participantes na definição e concretização do
desenvolvimento.
4 Transnacionais e imperialismo
A direita e a social-democracia apresentam as transnacionais como "dadores
de tecnologia" quando nas condições de "livre
comércio" e de direitos do capital transnacional não
há qualquer hipótese de garantir efetiva transferência
tecnológica. O que temos são exemplos de empresas nacionais com
potencial tecnológico a nível internacional que foram liquidadas
em sectores como a metalomecânica, sector automóvel,
química, componentes eletrónicos, construção naval,
etc.
A tecnologia é mais uma arma do domínio imperialista
através das transnacionais. Os altos preços praticados, a
imposição de condições restritivas
desfavoráveis, a introdução de critérios
desajustados às condições técnico-económicas
dos países (tendentes a perpetuar os desequilíbrios sectoriais e
a dependência) conduzem diretamente ao colonialismo tecnológico.
As transnacionais detêm quase que em exclusividade as patentes das
tecnologias mais avançadas. A OMC impõe a política de que
o saber e conhecimento são mercadorias mesmo quando essenciais à
vida e à sobrevivência dos povos, como é o caso das
farmacêuticas ou do sector alimentar.
A sujeição ao colonialismo tecnológico das multinacionais
aparece como uma das formas mais evidentes do capitalismo dependente. O
país dominado é incapaz de selecionar as produções
e as técnicas mais adequadas ao seu desenvolvimento; verifica-se um
atraso relativo cada vez maior na produção de bens de
produção.
Sem controlo, nem defesa dos interesses nacionais o tão implorado
investimento estrangeiro quando aparece limita-se a explorar força de
trabalho barata. Não há transferência de tecnologia, o
país permanece estagnado no estado de receptor das técnicas dos
países desenvolvidos enquanto a mais-valia criada é drenada para
o exterior. Exemplo, é a exploração dos recursos minerais
do país, entregue a transnacionais e exportados, como em qualquer
país subdesenvolvido, em bruto ou apenas preparado para transporte.
Esta questão deve levar-nos a refletir acerca da forma como os
países se integram no comércio mundial, ou seja, na
divisão capitalista internacional do trabalho e qual o sentido a dar ao
nosso desenvolvimento tecnológico. O fecho de uma empresa de alta
tecnologia como a Quimonda em 2010, é apenas um exemplo das
consequências da dependência tecnológica no contexto
neoliberal.
Os países mais avançados da UE exploram largos milhares de
cientistas e técnicos altamente qualificados dos países
dependentes, sem custos de formação e qualificação,
explorando-os como reserva de força de trabalho barata no seu
próprio país.
Com a globalização capitalista a exploração atingiu
um novo patamar a nível mundial, baseado nos avanços
tecnológicos detidos pelas transnacionais. Os bens intermédios
assumem um peso muito importante no comércio internacional, constituindo
cerca de 50% do seu montante. Partes e componentes são concebidas,
fabricadas, montadas e vendidas em diferentes países. Esta enorme
circulação de bens intermédios conduz a que o montante das
exportações esconde a forma como se reparte o valor acrescentado
(VA) e a mais-valia ao longo do processo.
Mesmo sem abordar as questões ecológicas, a compreensão
destes fenómenos ajuda-nos a perceber os mecanismos da troca desigual,
acentuados pelas "deslocalizações", pela "livre
circulação de capitais" e pelos dogmas do "livre
comércio". A maior parte do VA é captada pela
concepção e desenvolvimento, comercialização dos
produtos e gestão destas atividades. Assim, embora a
produção, a montagem e ensaios sejam das mais importantes fases
do processo produtivo, correspondem apenas entre 2% a 5% do VA. É o que
a "economia digital" irá generalizar e agravar.
5 Tecnologia e economia política
Não se resolvem os problemas tecnológicos sem resolver os de
economia política. Isto é, sem dar resposta à
questão de saber para que serve e a quem serve o desenvolvimento
tecnológico. As respostas até podem parecer aparentemente
idênticas, mas onde se distinguem é nas prioridades estabelecidas
na prática. Em termos capitalistas, o objetivo fundamental é o
aumento da competitividade e a garantia de maiores lucros para o capital
privado. Vimos como com este objetivo a política de direita desvalorizou
carreiras e salários dos quadros técnicos, empurrando-os para a
emigração, desmantelando funções do Estado.
Políticas visando um DT equilibrado, planeado, com vistas ao
desenvolvimento da produção nacional, foram consideradas
"ideias do passado", face às ilusões à volta das
"novas tecnologias", entregando aquelas funções ao
capital transnacional que se encarregaria da "especialização
produtiva". Os resultados obtidos estão à vista, como
referimos.
Numa resposta socialista o problema da tecnologia é em primeiro lugar um
problema social e de estratégia económica, uma questão de
soberania e não uma questão privada e tecnocrática, no
sentido de maximizar o lucro capitalista, particularmente o transacional. Em
suma, uma questão do planeamento económico democrático,
assegurando um desenvolvimento independente com o estudo, criação
e adoção das técnicas mais adequadas aos nossos recursos
humanos e materiais e, sim, verdadeiramente sustentável.
Não podemos ignorar que tal não é possível no
quadro da UE, tais as contradições nas necessidades e interesses
dos países que a compõem no quadro da competição e
da crise capitalista. Com a UE abateram-se todas as formas de
proteção às atividades produtivas nacionais e a
transferência de tecnologia tornou-se ilusória.
As transnacionais podem instalar no país equipamentos altamente
sofisticados sem qualquer transferência de tecnologia processual, sem que
os trabalhadores dominem ou sequer conheçam o processo produtivo em que
estão envolvidos, limitando-se a conhecimentos com vista à
operação, manutenção de equipamentos e
procedimentos para a entrega dos bens, na lógica da
produção de bens intermédios atrás referida.
Um sistema CT subordinado aos critérios da UE desvia o potencial
nacional do cumprimento de objectivos relacionados com as necessidades do
país. O DT tem de ser planificado em função das metas
propostas ao plano económico, segundo as estratégias a
médio e longo prazos, segundo os recursos disponíveis e as
capacidades atuais.
Este processo exige o reforço do necessário suporte institucional
das estruturas do Estado e laboratórios associados, melhoria do seu
nível tecnológico e capacidade de intervenção com
vistas à dinamização da economia produtiva e da
investigação aplicada.
O planeamento económico permitirá o aprofundamento das
ligações entre o ensino superior e a esfera produtiva.
Serão assim criadas condições para que a
concretização dos vários objetivos propostos seja
acompanhada da inserção estável e permanente de
trabalhadores altamente qualificados com graus académicos
diversos que atualmente não encontram emprego ou emprego ajustado
à sua qualificação. Uma posição consequente
de esquerda, de princípios marxistas, integrará sistema CT no
planeamento económico democrático, nos termos de uma
estratégia de benefícios sociais.
Não esqueçamos, contudo, que a visão dos cientistas e
técnicos de todas as áreas não pode limitar-se à
sua área de especialização, são elos fundamentais
da emergência da redução dos impactos ambientais e da
prioritária erradicação da fome e da miséria na
Terra. Tal só é possível lutando pela paz e pelo
socialismo, única saída para a sobrevivência e o progresso
da Humanidade.
31/Janeiro/2016
Ver também:
O esgotamento da actual fase histórica do capitalismo
, Guglielmo Carchedi
Cuidado com os zumbis
, Michael Roberts
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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