Cinco lições e uma conclusão acerca do caso SYRIZA
por Daniel Vaz de Carvalho
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Deixai, o vós que entrais, toda a esperança
Estas palavras eu vi em letreiro escuro
Por cima de uma porta escrito.
A Divina Comédia, Dante, canto III, 3
Os Estados Unidos da Europa capitalista, nunca existirão.
V.I. Lenine
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1ª LIÇÃO As Regras ou o poder do iníquo e do
absurdo
Contra o povo grego argumentou-se com "as regras". É uma
dogmática anti humanista, que ataca tudo o que de progressista se
afirmou na Europa desde há séculos não apenas na
UE. Mas é uma mentira, a regra única que substitui todas as
outras é adotar o que sirva aos sectores financos dominantes.
As regras foram violadas nos "planos de resgate", para salvar os
bancos. O BCE deixou os juros subirem descontroladamente em nome do
"mercado", mas em nome do mercado a UE devia ter deixado falir bancos
fraudulentos e atulhados em produtos financeiramente tóxicos. Ao
contrário esses prejuízos foram passados para os Estados
promovendo o seu endividamento.
A UE viola as regras com o
quantitative easing
de 60 mil milhões de euros mensais aos bancos; viola ao autorizar o
resgate de bancos privados com dinheiros públicos, mas é
necessária autorização para recapitalizar empresas
públicas. Violam-se regras ao deixarem sem liquidez os bancos gregos.
Violam-se regras quando decisões são tomadas pelo Eurogrupo uma
entidade sem existência formal, que decide à revelia da
Comissão, do Concelho, do Parlamento. As regras destinam-se a que os
povos deixem de democraticamente decidir as políticas dos seus
países, não tenham poder sobre os seus orçamentos e a
democracia seja subvertida com argumentos para satisfazer a finança.
2ª LIÇÃO Democracia e Soberania ou o totalitarismo do
poder hegemónico
"O governo grego prestou um mau serviço à causa europeia (?)
ao tentar criar a ideia que poderia usar a democracia nacional contra a
UE" (!!), diz um "europeísta" que "não
há festa nem festança a que não seja chamado".
[1]
Os princípios da soberania, as garantias de liberdade e democracia
previstos nas Constituições perdem-se. A democracia, passa a um
formalismo sem conteúdo real, esmagada pela chantagem, pelas
ameaças, pela corrupção política e material de
dirigentes considerados do "arco da governação".
As instituições europeias não representam os interesses
dos povos, mas os dos credores, assemelham-se a uma inquisição
que impõe a austeridade e um "pensamento único" que
domina as Universidades, as edições de economia, jornais e
televisões. Um pensamento único que se afirma sem alternativas e
do qual a memória histórica e sociológica é
abolida.
O endividamento preconcebidamente promovido, tornou-se uma forma de
agressão. É tão devastador quanto a guerra militar nos
seus efeitos sobre a população: elevação das taxas
de suicídio, tempos de vida mais curtos, emigração,
destruição do tecido produtivo. Trava-se uma guerra contra os
trabalhadores, contra governos e contra a democracia. Se não for eleito
um partido ou coligação de direita, ameaçam destruir o
sistema bancário do país. Se os bens públicos não
forem vendidos ao desbarato, ameaçam tornar a vida no país ainda
mais difícil. O objetivo é que os encargos com juros absorvam
todo o excedente económico, deixando os governos ainda mais endividados.
[2]
O direito democrático e soberano de cada nação decidir
emitir sua própria moeda, cobrar impostos sobre a riqueza criada no seu
território, fazer as suas leis, foi usurpado por uma clique
burocrática neoliberal.
3ª LIÇÃO Negociação ou a
rendição incondicional
A UE tornou-se tão disfuncional que perdeu a noção do que
sejam negociações. A questão é que o Syriza
também mostrou não fazer ideia do que isso seja.
[3]
A sua prioridade não foi salvar a Grécia, pelo contrário
expressou-se em salvar o euro. Logo de início o Syriza abandonou as suas
propostas eleitorais e propôs 8 mil milhões de austeridade.
Ficou evidente que a ideia de "negociação" na UE
é a rendição sem condições. Os partidos
ditos socialistas, como sempre que é necessário fazer escolhas
entre os povos e as oligarquias, alinharam com a direita nos ataques ao povo
grego que se viu totalmente isolado nas instâncias da UE. Porém o
Syriza não tirou daí nenhumas consequências e prosseguiu o
seu discurso de conciliação com os agressores aos direitos do seu
povo, ao mesmo tempo que a propaganda o acusava de ser "radical" e de
"extrema-esquerda". Pelos vistos a única maneira de negociar
que a UE aceita é: submetam-se.
O Syriza foi acusado de "atrevido" e de "falta de respeito"
o que, note-se, é uma linguagem de recorte mafioso. Mas é nisto
que a UE se tornou, aliás corrompida pela conivência com o
"dinheiro sujo". Mas será porventura a Merkel imperatriz da
"Europa" para um Estado soberano lhe "faltar ao respeito"?!
O Syriza numa posição defensiva, apelava à
benevolência da agiotagem instituída. Como resultado obteve o que
a propaganda apresenta como "ajuda". Uma "ajuda" semelhante
à que os alemães receberam com o Tratado de Versalhes em 1919 e a
França em 1940 da parte da Alemanha nazi.
Não houve calúnia que não fosse lançada contra
"os gregos". ilibava-se assim a Goldman Sachs, os governos da direita
e a mísera degradação do PASOK. Mentiu-se despudoradamente
dizendo que o Syriza não queria pagar, que o problema não era do
euro, da troika, dos programas, mas dos gregos. Mentem sobre um país
destroçado pela agiotagem e corrupção com que beneficiaram
em primeiro lugar bancos e empresas como as de armamento
alemãs e francesas.
Os anteriores planos de «ajuda» falharam totalmente, lançaram
a Grécia no caos económico e social, na pobreza, na
emigração em massa. O objetivo destes "programas"
é garantir a "confiança" dos especuladores transferindo
os seus custos sobre os trabalhadores, ao mesmo tempo que dizem defender os
"contribuintes europeus".
Ficou evidenciado o que os povos podem contar quanto a
"solidariedade" na UE: o racismo anti povos do sul, a
pesporrência dos mais fortes, a subserviência de ministros e
presidentes de República que se assumem como meros governadores
às ordens do centro hegemónico, agentes da
espoliação dos seus povos.
O acordo transforma a Grécia numa colónia dos credores. Obriga a
alterar o Código Civil para facilitar falências, despejos de
casas, despedimentos. Fim da negociação coletiva. Anular
decisões tomadas pelo organismo de fiscalização
constitucional. Mais privatizações. Criar fundo de 50 mil
milhões com venda de património (território das ilhas
inclusive) que não será gerido por gregos. Note-se que esta
situação configura o que Trichet em 2011 e o vice-chanceler
alemão em 2012, diziam ser necessário.
[4]
4ª LIÇÃO "Mais Europa" e Federalismo, um
pesadelo no reino da mentira
Face ao descalabro, os "europeístas" refugiaram-se no
argumento que nada disto acontecia se se tivesse avançado com a
Constituição europeia, com a união política, se
houvesse um orçamento europeu. Tudo isto são meras
falácias sem conteúdos concretos em que a vontade dos povos
não conta.
O que invocam já existe, só que funciona pessimamente para os
povos, muito bem para uma minoria. Existe um Orçamento
comunitário; um Parlamento europeu em que as grandes decisões lhe
passam ao lado, um Conselho e uma Comissão Europeia, que também
não servem para nada, pois as decisões são tomadas pela
Alemanha, com a França como figurante da encenação e mais
uns títeres.
Os "europeístas" choram o projeto europeu, na realidade o que
estão chorando é o fracasso capitalista. Mas a lamúria
é inconsequente: trata-se de manter ilusões sobre a ditadura
"unionista" ao serviço da finança. Porém, esta
degradação política e social lhes é
preferível a comprometerem-se com os interesses populares e nacionais. A
reação pura e dura como o governo PSD-CDS com o
"seu" PR exulta com a derrota do povo grego: o seu êxito
viria evidenciar quão inúteis e perversos são os seus
argumentos e as suas políticas.
Para iludir as questões de fundo, é lançado o balão
colorido do "federalismo". Poderia ser um ideal, mas um ideal
expressa-se com propostas e visões de futuro concretas. Então o
que querem como federalismo? Se fossem sérios tratavam de explicar como
um poder central iria pagar as forças armadas, as universidades
estatais, o serviço de saúde, grande parte do funcionalismo
público, parte da polícia criminal, não haveria
concorrência fiscal entre Estados, infraestruturas seriam custeadas pelo
orçamento federal, bem como prestações sociais, os juros
seriam iguais para todos não favorecendo a Alemanha e alguns outros,
etc.
Para isto o orçamento teria de ser da ordem dos 10 a 15% do PIB.
É atualmente de 1% e a reduzir-se! Será que a esta gente tudo
é permitido para enganar as pessoas, sem os apresentadores (o nome de
jornalistas é desadequado) sequer lhes pedirem um mínimo de
justificação para o que debitam? O seu federalismo está
patente na Grécia. A liquidação da soberania e da
democracia, os países transformados em protetorados ou meras
colónias.
Eis o sentido do "projeto europeu" e do "governo
económico" dos federalistas: a Grécia é governada
pelos burocratas de Bruxelas; o governo não tem autonomia para legislar,
fazer consultas públicas ou apresentar propostas ao Parlamento, sem o
acordo prévio daquelas entidades. Pior, no caso de falhanço nas
metas previstas ou quaisquer negociações não serem
concluídas em tempo útil a responsabilidade pertencerá
integralmente à Grécia.
5ª LIÇÃO A Ditadura do euro
O euro é a arma de uma minoria que não tolera a democracia e a
participação popular. O euro permite a chantagem da
finança contra os povos. O euro teoricamente é um absurdo, na
prática só admite a política da austeridade e do
retrocesso civilizacional.
Os bancos centrais colaboram com a finança no objectivo endividar as
economias e extrair renda económica na forma de juros, para o grande
capital. Em nome do euro, a finança através dos seus burocratas
dita as leis dos países, independentemente das opções
democráticas dos povos. O euro é a face visível da
ditadura financeira que corrói os interesses populares e nacionais.
Pode dizer-se que as sondagens mostravam que a maioria do povo grego queria
ficar no euro. São sondagens que valem tanto como as que davam a
vitória do sim no referendo. Claro que o Syriza nada fez para esclarecer
o povo, nem preparou o país para a saída do euro, pelo
contrário promoveu as superstições do euro.
Os países têm direito a ter um banco central dependente do poder
político democrático ao serviço do povo e do país e
recusar o financiamento das suas despesas sociais ou de investimento junto de
"mercados" que fixam condições tomando como garantia o
património público e a mais-valia espoliada aos trabalhadores, em
suma, a austeridade.
A alternativa à austeridade está hoje mais que clarificada:
é sair do euro. O euro é uma moeda disfuncional. Tudo, todos os
valores políticos e humanos têm de se submeter ao "bezerro de
oiro" do euro, ao "deus Baal" da austeridade. Uma legião
de propagandistas apoia esta irracionalidade
Analisar, estudar as soluções, esclarecer os cidadãos
sobre o euro e promover as soluções para a saída do euro
é pois uma questão central numa política progressista. O
Syriza, assim que o BCE cortou a liquidez aos bancos gregos, tinha a
obrigação de começar a emitir títulos de
dívida para circulação interna (notas bancárias!),
mesmo que formalmente ainda não tivesse saído do euro.
[5]
Se não o fez isso deveu-se às suas próprias
opções europeístas, que o levam a defender a oligarquia
europeia.
Conclusão As quimeras do "projeto europeu" e a
alternativa
O "projeto europeu" não passa de um mito para impor o
neoliberalismo, a doutrina da decadência capitalista: o capitalismo
rentista. Um mito imposto pela violência física e
psicológica sobre as populações.
As forças progressistas têm de enfrentar o medo e o obscurantismo,
precisamente características do fascismo. A propaganda esforça-se
por impedir que as pessoas tenham o discernimento para compreender o
significado das suas necessidades individuais e coletivas e o direito de dizer
não.
O que o "projeto europeu" na realidade está a construir
é uma sociedade de cidadãos sem capacidade de controlar as suas
vidas, submetidos por estratégias de sobrevivência. Acentua-se o
que é típico dos violadores e abusadores: a
culpabilização das vítimas, a
desculpabilização dos agressores, para que os cidadãos
deixem de confiar em si próprios para construir um futuro comum.
Lutando pela liberdade de pensamento desde o fim da Idade Média surgiram
na Europa a Reforma e o Humanismo. Os "europeístas" nem sequer
dão um passo na direção de combater os dogmas a que a UE
está hoje submetida, para que o humanismo seja um valor supremo. O seu
valor supremo chama-se: finança.
Atinge-se um nível inaudito de cinismo político, debitam-se
rotundas mentiras com a assertividade de se saberem apoiados e ao
serviço dos poderes hegemónicos. Perante isto o PS apenas
pretende parecer bem comportado perante os grandes, mostrar que é capaz
de enganar o povo de maneira mais eficiente que a direita pura e dura.
As críticas do PS ou outros partidos, por muito justas, inflamadas e
palavrosas o que contêm como alternativa? Resumem-se a querer salvar o
capitalismo dele próprio e "reformar o euro". A oligarquia
não precisa e não agradece, como se provou com o Syriza!
Falar de alternativas sem referências ideológicas consistentes,
sem se definir que economia política suporta o que dizem é
fraseologia de conteúdo oco. Na realidade, por muito que custe a alguns,
não são possíveis alternativas de progresso e democracia
que não se fundamentem no pensamento marxista.
O "projeto europeu" em alguns números:
Estagnação, recessão, endividamento, desemprego, pobreza
|
PIB (1) variação em % em sete anos 2008-2014
|
Dívida pública variação % 2008-2014
|
Dívida pública 2014
em % do PIB
|
Variação emprego (milhares) 2008-2014
|
Pobreza 2013
|
UE 28
|
+0,2
|
+ 55,8
|
88,6
|
- 4 412,7
|
24,5
|
Zona Euro
|
- 1,4
|
+ 44,4
|
94,3
|
- 4 591,3
|
23,1
|
Alemanha
|
+3,9
|
+ 30,2
|
74,7
|
+1 793
|
20,3
|
França
|
+ 2,0
|
+ 15
|
95,1
|
+11
|
18,1
|
Itália
|
- 8,0
|
+ 27,8
|
132,1
|
- 1 043,8
|
25,8
|
Espanha
|
- 6,0
|
+ 135,1
|
97,7
|
- 3 906,1
|
27,3
|
Irlanda
|
+ 0,4
|
+ 155,4
|
109,6
|
- 214,9
|
29,5
|
Grécia
|
- 25,5
|
+ 19,8
|
177,1
|
- 950,3
|
35,7
|
Portugal
|
- 7,5
|
+ 75,7
|
130,2
|
- 581,8
|
25,8
|
Segundo dados AMECO. Pobreza, dados Eurostat.
(1) PIB a preços constantes, base 2010
[1] António Vitorino, em entrevista (4 páginas) no
Público
de 26/julho/2015.
[2]
O ataque financeiro à Grécia
, Michael Hudson,
[3]
Acerca de negociações. O caso Syriza,
[4]
A operação em curso, nome de código Grécia,
[5] Ver:
Une alternative est possible au plan négocié entre Alexis Tsipras et les créanciers à Bruxelles
, Eric Toussaint,
Ver também:
Total Collapse: Greece Reverts To Barter Economy For First Time Since Nazi Occupation
(Colapso total: A Grécia reverte à economia da troca pela
primeira vez desde a ocupação nazi)
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