O ataque financeiro à Grécia
Para onde vamos a partir daqui?
por Michael Hudson
O maior problema financeiro que dilacerou economias ao longo do século
passado estava mais do lado da dívida oficial inter-governamental do que
do da dívida do sector privado. Eis porque a economia global de hoje
enfrenta uma ruptura semelhante à de 1929-31, quando ficou evidente que
o volume de dívidas oficiais inter-governamentais não podia ser
reembolsado. O Tratado de Versalhes impôs reparações
impossíveis à Alemanha e os Estados Unidos impuseram
exigências igualmente destrutivas aos Aliados quanto ao pagamento de
dívidas [pelo fornecimento] de armas utilizadas na I Guerra Mundial.
[1]
Há procedimentos legais bem estabelecidos para enfrentar bancarrotas
corporativas e pessoais. Tribunais cancelam parcialmente
(write down)
dívidas de pessoas e de negócios tanto sob o procedimento
"devedor no controle" como pelo arresto e os credores assumem uma
perda sobre empréstimos que correram mal. A bancarrota pessoal permite a
indivíduos retomarem a vida.
É muito mais difícil cancelar parcialmente dívidas
possuídas ou garantidas por governos. A dívida de
empréstimos a estudantes dos EUA não pode ser anulada, mas
permanece de modo a impedir os diplomados de ganharem o suficiente para terem
um salário líquido (depois de o serviço da dívida e
a retenção na fonte da contribuição para a
Segurança Social ser deduzida dos seus cheques de pagamento) de modo a
casarem, constituírem família e comprarem casas para si
próprios. Só os bancos obtêm salvamentos
(bailed out),
agora que se tornaram efectivamente os planeadores centrais da economia.
Acima de tudo, não há estrutura legal para cancelamentos parciais
de dívidas ao FMI, BCE ou governos credores europeus e americanos. Desde
a década de 1960 nações inteiras foram sujeitas à
austeridade e contracção económica que torna cada vez
menos possível livrarem-se da dívida. Governos são
implacáveis e o FMI e BCE actuam por conta de bancos e possuidores de
títulos e estão ideologicamente capturados pelos
combatentes financeiros do anti-trabalho e anti-governo.
O resultado não é a "economia de mercado livre" que
pretende ser, nem a regra da racionalidade económica. Uma genuína
economia de mercado reconheceria a realidade financeira e cancelaria
dívidas parcialmente de acordo com a capacidade de serem pagas, mas a
dívida inter-governamental cancela mercados e recusa-se a reconhecer a
necessidade de um Quadro Limpo
(Clean Slate).
A teoria condutora de hoje apoiada pela teoria económica lixo do
monetarismo é que dívidas de qualquer dimensão
podem ser pagas, simplesmente pela redução dos salários e
padrões de vida do trabalho mais a liquidação do
domínio público de uma nação sua terra,
reservas de petróleo e gás, minerais e distribuição
de água, estradas e sistemas de transporte, centrais eléctricas e
sistemas de esgotos, além de todas as formas de infraestrutura
pública.
Imposta pelo monopólio das instituições financeiras
inter-governamentais o FMI, BCE, Tesouro dos EUA e assim por diante
a alavancagem financeira do credor tornou-se o novo modo de travar a
guerra no século XXI. É tão devastador quanto à
guerra militar no seu efeito sobre a população:
elevação das taxas de suicídio, tempos de vida mais curtos
e emigração daqueles em idade de tropa que sempre foram as
principais baixas de guerra: adultos jovens. Ao invés de serem
conscritos no exército para combaterem inimigos estrangeiros, eles
são afastados dos seus lares para procurarem trabalho no exterior. O que
costumava ser um êxodo rural da terra para as cidades desde o
século XVII é agora um "êxodo do devedor" dos
países cujos governos devem somas impagavelmente altas a governos
credores e aos bancos e possuidores de títulos em cujo benefício
impuseram sua política.
Ao mesmo tempo que empurra a economia do mundo para um estado de guerra
internacional, a alta finança trava também uma guerra contra o
trabalho e em última análise contra governos e portanto
contra a democracia. A política do BCE neste ano tem sido brutal em
relação à Grécia: "Se não reeleger um
partido ou coligação de direita, destruiremos o seu sistema
bancário. Se não vender a preço de saldo o seu
domínio público tornaremos a vida ainda mais difícil para
si".
Não é de admirar que o ministro das Finanças grego Yanis
Varoufakis tenha chamado a posição negocial da Troika de
"terrorismo financeiro". A sua ideia de
"negociação" é a rendição. Eles
são inflexíveis. Instituições credoras oficiais
ameaçam isolar, sancionar e destruir economias inteiras, incluindo sua
indústria bem como o trabalho. Isto transforma a guerra de classe do
século XIX num colapso puramente destrutivo.
Esta é a grande diferença entre os dias de hoje e 1929-31.
Naquele tempo, os principais governos do mundo finalmente reconheceram que
dívidas não podiam ser pagas e suspenderam
reparações alemãs e dívidas inter-aliados. A
situação de hoje está a utilizar a impagabilidade de
dívidas como alavanca na guerra de classe.
O objectivo político imediato desta guerra financeira na Grécia
é substituir seu governo eleito (apoiado por uma notável
votação no referendo de 5 de Julho de 61 a 39%) pelo controle de
credores estrangeiros através de "tecnocratas", isto é,
lobbyistas de bancos, factótuns e antigos administradores da Goldman
Sachs. O objectivo a longo prazo é impor uma guerra contra o trabalho
na forma de austeridade e contra o poder dos governos de
determinarem sua própria política fiscal, política
financeira e política pública regulamentar.
Felizmente,
há
uma alternativa. Aqui está o que é necessário. (esbocei
minhas propostas numa apresentação perante o Parlamento em
Bruxelas no dia 3 de Julho
[2]
, a seguir a uma defesa anterior na Iniciativa Delphi, na Grécia,
reunida pela esquerda do Syriza na semana anterior.
[3]
Uma declaração reafirmando os direitos de nações
soberanas
Nações soberanas têm o direito de colocar o seu
próprio crescimento à frente de credores externos. Nenhuma
nação deveria ser obrigada a impor depressão
crónica e desemprego ou a polarizar a distribuição da
riqueza e rendimento a fim de pagar dívidas.
Toda nação tem o direito ao critério chave da
nacionalidade: o direito de emitir sua própria moeda, cobrar impostos e
escrever suas leis, incluindo aquelas que governam relações entre
credores e devedores, especialmente os termos de bancarrota e
anulação de dívida.
A lógica económica dita o que foi reconhecido no fim da
década de 1920: Quando dívidas atingem o nível em que
perturbam o equilíbrio económico básico e desordenam a
sociedade, elas deveriam ser anuladas. Uma outra forma de dizer isto é
que o volume de dívida e os custos dos seus encargos deve
ser trazido a uma razoável capacidade para pagar.
Rejeitando a posição do "hard money" (realmente um
"hard credor") de economistas anti-alemães como Bertil Ohlin e
Jacques Rueff, Keynes argumentou que credores tês obrigação
de explicar à Alemanha simplesmente
como
teriam possibilidade de pagar suas reparações.
[4]
Ele queria naquele tempo que a França, Grã-Bretanha e outros
receptores de reparações deveriam especificar exactamente que
exportações alemãs deveriam concordar em comprar. Mas
hoje, os credores definem a capacidade de pagar de uma nação
não
em termos de como ela pode
ganhar
o dinheiro para pagar, mas ao invés que activos do domínio
público ela pode liquidar naquilo que é um processo de bancarrota
nacional. Países devedores devem deixar sua infraestrutura
pública ser vendida a extractores de renda para criar uma economia de
portagens neofeudal.
Sob o direito internacional, nenhuma nação está legalmente
obrigada a fazer isto. E sob a definição moral de nacionalidade,
elas
não
deveriam ser forçadas a assim fazer. O seu direito a resistir é
o que as faz soberanas, afinal de contas.
Um fórum internacional para determinar a capacidade (ou incapacidade) de
pagar dívidas
O que é necessário para colocar este princípio
básico em prática é a criação de um novo
fórum internacional para determinar
(to adjudicate)
quanta dívida
pode
razoavelmente ser paga e quanto deveria ser anulada. Em 1929 o Plano
Young (o qual substituiu o Plano Dawes para tratar mais racionalmente das
reparações alemãs) apelou à criação
de uma tal instituição o que se tornou o Bank for
International Settlements (BIS), em 1931, para travar a
destruição económica da Alemanha fazendo com que suas
reparações ficassem em consonância com a sua capacidade
para pagar.
O BIS não desempenha mais tal papel, porque se tornou o principal local
de reunião para os bancos centrais do mundo e, como tal, adoptou a linha
rígida de que "todas as dívidas devem ser pagas" a que
originalmente estava destinada a se opor.
Igualmente o FMI já não pode desempenhar este papel. Ele é
irremediavelmente político. Apesar de a sua equipe técnica
determinar em 2010-11 que as dívidas externas da Grécia
não podiam ser pagas e portanto precisavam ser anuladas, seus chefes
primeiro Dominique Strauss-Kahn e a seguir Lagarde actuarem em
flagrante conflito de interesse em apoio aos banqueiros franceses que pediam o
pagamento pleno, e aos pedidos do presidente Obama e do lobbyista da Wall
Street Tim Geithner a insistirem em nenhum cancelamento parcial. Aquele foi o
preço para o apoio da banca francesa à pretensão de
Strauss-Kahn de candidatar-se à presidência da França, e
recentemente ao apoio a Lagarde. Dado o poder de veto dos EUA pela Wall Street
e à insistência dos ideólogos anti-trabalho da direita
(habitualmente franceses) em serem nomeados chefes do FMI, é
necessária uma nova organização representando a
espécie de lógica económica delineada nos anos 1920 por
Keynes, Harold Moulton e outros.
A criação de uma tal instituição deveria ser uma
plataforma importante da política da esquerda europeia.
Uma lei da transmissão fraudulenta, aplicável a governos
O sector privado desde há muito tem leis que impedem prestamistas de
emprestarem a um tomador mais fundos do que o devedor possa razoavelmente
reembolsar no decorrer dos negócios. Se um prestamista avança,
digamos US$10 mil como um empréstimo hipotecário contra uma casa
que valha mais (digamos, US$100 mil), e então insiste em que o devedor
pague ou perca a sua casa, os tribunais podem assumir que o empréstimo
foi efectuado com este objectivo em mente e anular a dívida.
Da mesma forma, se uma companhia é atacada por prestatários
carregando-a com títulos lixo de altos juros e a seguir toma o seu fundo
de pensões e liquida activa para pagar suas dívidas, a companhia
sob ataque pode processar sob [a lei] das transmissões fraudulentas.
Assim fizeram na década de 1980.
Este estratagema empréstimo-arresto é o jogo que a Troika tem
feito com a Grécia. Eles emprestam ao seu governo dinheiro que os
economistas do FMI explicaram bastante claramente em 2010-11 (e reafirmaram
este ano pouco antes do referendo grego) que não podia ser pago. Mas
então veio o BCE e disse: "Liquidem vossa infraestrutura, vendam
seus portos, seus direitos ao gás no Egeu e ilhas inteiras, a fim de
obter o dinheiro para pagar o que o FMI e o BCE tem pago a franceses,
alemães e outros detentores de títulos em seu nome (enquanto
salvavam bancos de investimento e hedge funds dos EUA de perderem suas apostas
em que dívidas gregas seriam realmente pagas).
A aplicação deste princípio requer que um tribunal
internacional determina em que ponto aquele serviço de dívida se
torna intrusivo e consequentemente cancele dívidas parcialmente.
Criação de Tesourarias como bancos centrais nacionais para
monetizar gastos com défice
Os bancos centrais de hoje só emprestam dinheiro a bancos, com o
objectivo de carregar economias com dívida. A exigência irracional
dos banqueiros de impedir uma opção pública de
criação de crédito nos seus próprios teclados de
computador (do mesmo modo como aqueles bancos criam empréstimos e
depósitos) destina-se simplesmente a criar um monopólio privado
para extrair renda económica na forma de juros, taxas e finalmente
arrestos de credores que incumprem tudo garantido pelos
"contribuintes".
O Banco Central Europeu não é adequado para este dever. Antes de
mais nada, ele baseia-se na ideologia de que a criação de moeda
pública é inflacionária. A realidade é que a
criação de moeda pelo banco central apenas financiou a maior
inflação da história moderna a
inflação de preços de activos no mercado
imobiliário por hipotecas lixo, inflação de preços
de acções por emissões de títulos lixo e a
Facilidade Quantitative
(Quantitative Easing)
do banco central para criar a maior e mais rápida corrida no mercado de
títulos da história. A experiência pós 1980 com
bancos centrais removeu qualquer lógica moral ou económica do seu
comportamento quando lobbyistas de bancos comerciais, defensores de
privilégios especiais, desregulamentadores do crime financeiro e
extremistas de direita bloqueadores de uma opção pública
na banca a fim fazer com que serviços básicos estejam de acordo
com seus custos reais. Em suma, se sistemas de banca comercial em praticamente
todos os países tornaram-nos desindustrializado e perversos, seus
possibilitadores foram bancos centrais.
O remédio é substituir estes bancos centrais com o que os
antecedeu: Tesourarias nacionais, cuja função adequada é
monetizar as despesas do governo
dentro
da economia. O princípio básico de funcionamento deveria ser que
qualquer necessidade monetária e de crédito da economia deveria
ser cumprida pelo gasto público e monetização, não
por bancos centrais que criam crédito portador de juros para financiar a
transferência de activos (ex.: hipotecas imobiliárias,
buyouts
e raids corporativos, arbitragem e jogos de casino capitalistas).
Sumário
Toda nação tem o direito de se defender contra o ataque
tanto o ataque financeiro como o ataque militar aberto. Isso faz parte do
princípio da auto-determinação.
A Grécia, Espanha, Portugal, Itália e outros países
devedores têm estado sob o mesmo modo de ataque como o do FMI e sua
doutrina da austeridade que levaram a América Latina à bancarrota
na década de 1970. O direito internacional precisa ser actualizado para
reconhecer que a finança tornou-se o modo de guerra dos dias modernos.
Seus objectivos são os mesmos: aquisição de terra,
matérias-primas e monopólios.
Um subproduto desta guerra foi tornar a rede financeira de hoje tão
disfuncional que as nações agora precisam de um Quadro Limpo
(Clean Slate)
financeiro. Aquele que teve mais êxito em tempos modernos foi o Milagre
Económico alemão a Reforma Monetária dos Aliados
após a II Guerra Mundial. Todas as dívidas internas alemãs
foram anuladas, excepto dividas salariais de empregados à força
de trabalho e balanços básicos. Posteriormente, em 1953, suas
dívidas internacionais foram canceladas parcialmente. A lógica
que levou a estes actos precisa ser reaplicada hoje.
Em relação especificamente à Grécia, líderes
do Syriza disseram que querem salvar a Europa. Antes de mais nada, da
irracionalidade económica destrutiva da eurozona ao não ter um
banco central real. Este defeito foi construído deliberadamente na
eurozona, a fim de forçar um monopólio de bancos comerciais e
detentores de títulos suficientemente poderosos para ganhar o controle
de governos, rejeitando a política e os referendos democráticos.
As regras da eurozona os tratados de Maastricht e Lisboa
destinam-se a impedir governos de incidirem em défices
orçamentais injectando dinheiro na economia para reviver o emprego. O
novo objectivo é apenas resgatar detentores de títulos e bancos
de maus empréstimos e mesmo de empréstimos fraudulentos,
salvando-os a expensas públicas. As economias são obrigadas a
voltarem-se para empréstimos da banca comercia a fim de obter o dinheiro
que precisam para crescer. Este princípio precisa ser rejeitado pois
viola um direito soberano básico dos governos e da democracia
económica.
Uma vez que uma economia está financeira defeituosa por (1) não
ter um banco central para financiar despesa governamental, e (2) pela
limitação dos défices orçamentais do governo a
apenas 3% do PIB, a economia deve contrair-se. Uma economia em
contracção significará menos receitas fiscais e, portanto,
défices no orçamento do governo mais profundos e
elevação da dívida governamental.
O supremo assassínio é a exigência do BCE, FMI e CE de que
governos paguem suas dívidas através da
privatização da infraestrutura pública, recursos naturais,
terra e outros activos no domínio público. Para agravar esta
exigência, a Troika impediu a Grécia de vender pela oferta mais
alta, se fosse a Gazprom ou outra companhia russa. A política financeira
tornou-se portanto militarizada com parte da política de Nova
Guerra-fria da NATO. Economias devedoras estão destinadas a vender a
euro-cleptocratas em termos financiados pelos bancos, de modo a que
encargos de juros do acordo absorvam todos os lucros, deixando os governos sem
muita receita fiscal.
07/Julho/2015
[1] Este é o tema do meu livro
Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire
(1972, new ed., 2002).
[2] O vídeo pode ser visto aqui:
www.guengl.eu/...
(apareço cerca do minuto 37).
[3]
resistir.info/grecia/declaracao_delphi.html
[4] Resumo este debate entre Keynes e seus antagonistas em
Trade, Development and Foreign Debt
(new ed. ISLET 2009), chapter 16.
Ver também:
Grecia: Críticas pasadas y el camino a seguir
, Olivier Blanchard
O original encontra-se em
www.unz.com/mhudson/the-financial-attack-on-greece/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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