Estados disfuncionais I
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O conservadorismo moderno está comprometido com um dos exercícios
mais antigos que se conhecem: a procura de uma justificação moral
para o egoísmo. John Kenneth Galbraith
A junção de propaganda, poder financeiro, estupidez e subornos significa que não há esperança para os povos europeus. ( ) Governo responsável nos países ocidentais é história. Apenas falhanço e o colapso aguarda a civilização ocidental. Paul Craig Roberts |
1 O Estado disfuncional
O Estado torna-se disfuncional ao perder as suas funções ou
realiza-las de maneira anómala. As funções são
perdidas para entidades privadas ou ditas independentes ao serviço do
capital; as funções que restam são executadas de forma
deficiente pelas imposições da austeridade, que representa a
subordinação aos interesses e à liberdade sem
restrições para o grande capital.
Para submeter os Estados aos objetivos do neoliberalismo e da
globalização capitalista torna-se necessário serem
estruturalmente disfuncionais do ponto de vista económico, financeiro,
social, sociológico e político.
É este o significado do Estado mínimo neoliberal, um Estado que
deixa de ter capacidade de gerir a sua própria soberania e garantir
direitos humanos aos seus cidadãos tal como definidos na carta da ONU. A
agenda político-mediática da direita criou assim como tema
central "a reforma do Estado", "repensar as
funções do Estado". Tema insólito, pois há uma
Constituição e poderes constitucionais para os definirem
concretamente.
A coberto de um exercício de filosofia política procura-se
adormecer e intoxicar a opinião pública com o objetivo de
desmantelar as funções económicas e sociais do Estado,
anular os aspetos progressistas da Constituição, torna-la
suficientemente contraditória para ser correntemente anulada por leis
ordinárias, como a Constituição fascista de 1933. Em suma,
trata-se de subverter a democracia e instaurar plena e formalmente o Estado
oligárquico
[1]
.
Em Portugal, a oligarquia percebeu desde logo que sozinha não podia
travar o movimento popular e progressista da Revolução de ABRIL,
precisava do apoio estrangeiro, da sua ingerência e processos de
chantagem para subverter a vontade e as aspirações populares.
Reivindicava Sá Carneiro fundador do PSD e um ídolo para a
direita no Clube Americano em 1976, quando se procurava a
recuperação do capital monopolista: "aqueles países e
entidades que se interessam por auxiliar-nos não têm o
domínio total das nossas operações (
) pelo que
haveria de apelar às organizações internacionais no
sentido de elaborar as linhas mestras de um plano global a submeter ao Governo
e ao Parlamento e desenvolverem a sua ajuda a partir daí". Na mesma
altura o presidente da CIP, considerava que os investidores estrangeiros deviam
aguardar até que "a atmosfera política e económica se
tiver clarificado
[2]
.
A participação na UE e no euro garantiu-lhes a tão
desejada ingerência externa, que culminou com a troika, para combater o
movimento democrático e progressista e tornar o Estado disfuncional.
2 Disfuncionalidade económica e financeira
O Estado perdeu a capacidade de intervenção na economia; o
planeamento económico do Estado visando o desenvolvimento
económico e social foi banido. Pelos critérios vigentes na UE o
Estado não pode investir no sistema produtivo, apenas lhe é
permitido descapitalizar-se para acorrer a bancos objeto de fraudes e
aventureirismo financeiro, e dar "incentivos e confiança" ao
grande capital, reduzindo direitos laborais e salários, garantindo a
livre circulação de capitais, a diminuição de
impostos, etc.
Em suma, as iniciativas permitidas aos governos resumem-se a garantir o
crescimento dos lucros, inclusive promovendo o capitalismo rentista
através das privatizações, PPP, etc., pelas quais o Estado
perde funções e se endivida.
Os tratados de comércio livre proíbem e penalizam quaisquer
medidas de defesa da produção nacional ou dos trabalhadores, mas
ignoram a mão-de-obra infantil, o trabalho escravo ou semi-escravo, a
repressão sindical amplamente praticada pelas transnacionais.
[3]
Um aspeto fundamental da disfuncionalidade do Estado é a sua
dependência dos mercados financeiros. Tal baseia-se num absurdo, assumido
como dogma, de que o Estado é uma entidade incapaz de gerir os recursos
coletivos de forma eficiente, mas sim "os mercados". Desta forma, a
vida, o destino dos povos não depende das escolhas e
avaliações democráticas dos cidadãos, depende de
instituições financeiras internacionais todo poderosas ao
serviço dos interesses dos credores.
Quanto à pretensa eficiência do modelo bastam os factos para o
desmentirem totalmente: desde o final dos anos 80 no mundo sucedem-se
intermináveis crises que têm como resultado o agravar das
contradições do capitalismo: concentração
monopolista, acumulação de capital fictício
assumido como "riqueza" desigualdades sociais, retrocessos
civilizacionais.
Os mecanismos impostos aos povos para este processo fundamentam-se no chamado
"Consenso de Washington" que garante o primado do capital sobre os
interesses dos povos. A consequência é "a ascendência
de uma elite financeira criminosa com um chocante grau de cinismo e
cobiça".
[4]
Enquanto cinicamente se afirma que o Estado se deve comportar como "uma
boa dona de casa" uma boçalidade e também tese
salazarista! estimativas consideram que o dinheiro depositado em
paraísos fiscais atinja um total de14 milhões de milhões
de dólares, representando algo como 160 mil milhões de receita de
impostos perdida por ano.
Os Estados mais frágeis da zona euro estão numa
situação dramática. Perderam um dos aspetos centrais da
soberania: a capacidade de criar moeda. Os burocratas do BCE, podem ao abrigo
de critérios arbitrários, não fornecer moeda ao
país, não permitir o funcionamento de um banco, sem que o Estado
tenha qualquer poder de interferência, obrigado a cumprir as suas
determinações sob pena de sanções. Voltamos ao
tempo dos ucasses.
E tudo isto é decidido em secretismo, antes, durante e depois da
decisão, sem o mínimo de transparência em todo o processo,
como ficou evidenciado na audição em comissão parlamentar
do governador do Banco de Portugal sobre a resolução do BANIF.
O BCE decide, os contribuintes são chamados a pagar. É o fim da
funcionalidade do Estado democrático: aos cidadãos são
exigidas contribuições sem a sua intervenção ou
representação. O governador do banco central, escusa-se a dar
explicações aos deputados por tal não ser permitido pelas
regras do BCE. Neste sentido, o governador nada tem que ver com o país e
seus interesses: é um mero funcionário ao serviço da
oligarquia dominante, um burocrata ao serviço de outros burocratas que
fazem em Bruxelas e em Frankfurt a política "que mais convém
aos portugueses" (lema do salazarismo).
O processo imposto na UE está a criar situações de
neocolonialismo semelhantes às dos países ditos em
desenvolvimento. Em 2015 estes Estados receberam de "ajudas" 133 mil
milhões de dólares, porém pagaram de juros aos credores
182 mil milhões e a transferência de lucros das transnacionais
ascendeu a 678 mil milhões
[5]
Eis a que se resumem as "soluções" dos propagandistas a
favor do "investimento estrangeiro" sob as regras do neoliberalismo.
Nos últimos cinco anos (2011-2015) o Estado português pagou de
juros quase 40 mil milhões de euros, até 2017 aquele valor cresce
para 57 mil milhões (dados AMECO). O país trabalha e empobrece
para pagar aos credores devido às regras da UE e do euro, que levaram o
país à estagnação económica: em 15 anos,
desde 2001, o PIB teve um crescimento real de
0,4%. Absoluta
disfuncionalidade económica e financeira.
A financeirização foi imposta em nome da eficiência e da
democracia, suportada por preconceitos anti Estado. Aquilo que seria a
"economia de sucesso" capitalista, traduziu-se num enorme
falhanço: sucessivas crises, estagnação, desemprego,
esmagamento dos Estados e dos cidadãos pelo endividamento e pela
especulação. Desde 2008, os oito maiores bancos europeus
anunciaram 100 mil despedimentos, tiveram 375 mil milhões de euros de
perdas. Em 2015, o Deutsche Bank teve uma perda recorde de 6,8 mil
milhões de euros.
Recusando todas as soluções que de alguma forma belisquem os
interesses oligárquicos, o sistema financeiro global permanece em crise,
com ameaças de novas bancarrotas que irão aumentar a
concentração monopolista e cujos custos são
sistematicamente transferidos para os povos. De facto, "o sistema
financeiro representa uma maior ameaça que o terrorismo"
[6]
3 - Disfuncionalidade social
As decisões sobre as políticas sociais do Estado não
pertencem aos cidadãos, através do exercício
democrático, foram transferidas para os "cães de fila"
do capital monopolista, as "agências de rating", que determinam
sobre a capacidade dos governos garantirem os interesses dos credores,
ameaçando, caso contrário com o aumento dos juros.
A austeridade é apresentada pelos propagandistas como política
monetária e orçamental de "rigor" e
"responsabilidade". Trata-se simplesmente da forma de transferir
riqueza para o capital usurário e deste adquirir direitos sociais sobre
as camadas trabalhadoras.
As políticas sociais são orientadas pelos critérios mais
reacionários do liberalismo do século XIX. As
privatizações, a degradação da
legislação laboral, a perversão dos direitos dos
trabalhadores, retomam a tese de que o melhor que os governos têm a fazer
é absterem-se de interferir tanto na economia como no social. É a
liberdade irrestrita para o capital, a "flexibilidade laboral", ou
seja, condicionar e tornar irrelevante a legislação laboral,
"pois cada individuo conhece melhor o seu próprio interesse e luta
por ele."
A questão que estes ideólogos do individualismo e da precariedade
não colocam é: lutam como? A existência de um
exército de reserva do trabalho e quadros legais que permitem a
chantagem, garantem ao capital uma posição de força. Por
isso, a unidade dos trabalhadores é sempre um alvo a abater: para o
liberalismo: "os sindicatos violam a lei "eterna", por assim
dizer "sagrada" da oferta e da procura" (Marx, O Capital, livro
1 tomo III)
Desmantelada a legislação laboral, para se atingir a
"eficiência" neoliberal são impostas "medidas de
ajustamento" orçamental aos Estados através de cortes nas
suas funções sociais, mas deixando intocáveis os
rendimentos dos mais ricos. A "competitividade fiscal" e os infames
paraísos fiscais, obrigam a políticas fiscais regressivas
os que mais têm menos pagam sob a ameaça de fuga
maciça de capitais.
Para a oligarquia nunca foi questão de austeridade. Na UE entre 2008 e
2012 a banca fraudulenta recebeu ajudas diretas no valor 601,2 mil
milhões de euros
[8]
Em Portugal, a banca obteve centenas de milhões de euros de lucros
anuais, porém entre 2008 e 2014 custou ao povo 19 500
milhões de euros, a que há que juntar 3 000 milhões
em 2015 para o BANIF.
Em 2014, 24,4% da população da UE encontrava-se em
situação de pobreza e risco de exclusão social. Em
Portugal 27,5%, na Grécia 36%, na Alemanha 20,6% (dados Eurostat). Nos
EUA 27% das crianças encontram-se abaixo do nível de pobreza. Sem
apoios sociais quase 50% da população portuguesa estaria em risco
de pobreza. Mas são os apoios sociais que a UE insiste que sejam
reduzidos, com a ameaça de sanções.
A direita procura instaurar uma campanha alarmista afirmando que "o
país está mergulhado numa crise colossal",
porém tinha-se subservientemente comprometido com os burocratas de
Bruxelas a mais um corte de 600 milhões de euros.
O neoliberalismo é um sistema parasitário para sugar dinheiros ao
Estado e à população trabalhadora. Em Portugal, segundo a
Autoridade Tributária os benefícios fiscais a entidades privadas
atingiram em 2014. 1 027,8 milhões de euros, porém 0,42% de
um total de 16 487 destas entidades absorveram quase 50% daquele montante.
Calcula-se que o rendimento das atividades do crime organizado possa atingir
mais de 600 mil milhões de dólares por ano que são
reciclados no circuito financeiro legal. A conivência dos Estados
oligárquicos com esta realidade, apoiada pela finança, redes de
advogados e outros intermediários, é evidente.
Com o domínio da oligarquia, as privatizações, a
competitividade pelos "custos salariais", a carga fiscal passada para
os trabalhadores, a liberdade irrestrita para o capital, os Estados tornaram-se
disfuncionais, abandonando a obrigação de promover o bem-estar da
maioria, tomando como sua prioridade "dar confiança e
incentivos" ao capital.
É tempo de os povos deixarem de ter ilusões sobre mudanças
na UE que os favoreçam e decididamente lutarem um Estado verdadeiramente
democrático que defenda os seus verdadeiros interesses. O capital nunca
cedeu algo aos trabalhadores sem lutas, por vezes muito duras.