A crise estrutural da política
1. Sintomas de uma crise fundamental
Gostaria de começar com um breve exame dos desenvolvimentos muito
inquietantes na verdade deveria dizer ameaçadores, à
escala mundial no campo da política e do direito. A este
respeito pretendo sublinhar que há cerca de 23 anos tive conhecimento
pessoal na Paraíba, Brasil, das
penosas consequências dos tumultos explosivos por alimentos. Vinte e
três anos depois, no tempo da campanha eleitoral do presidente Lula, li
que ele anunciara como parte mais importante da sua futura estratégia a
determinação em acabar com o grave problema social da
fome
no país. As duas décadas decorridas desde o tempo daqueles
dramáticos tumultos por alimentos na Paraíba não foram
obviamente suficientes para resolver este problema crónico. E mesmo
hoje, disseram-me, as melhorias no Brasil ainda são muito modestas.
Além disso, as sombrias estatísticas das Nações
Unidas sublinham constantemente a persistência do mesmo problema, com
consequências devastadoras, em muitas partes do mundo. Isto é
assim apesar do facto de as capacidades produtivas hoje à
disposição da humanidade permitirem relegar para todo o sempre no
passado o agora totalmente indesculpável fracasso social da fome e da
desnutrição.
Pode ser tentador atribuir estas dificuldades, como acontece frequentemente no
discurso político tradicional, a contingências políticas
corrigíveis de forma mais ou menos fácil, postulando assim como
remédio mudanças de pessoas nas oportunidades eleitorais
seguintes e estritamente dentro da ordem. Mas isto seria a evasão do
costume e não uma explicação plausível. Pois a
teimosa persistência
dos problemas em causa, com todas as suas penosas consequências humanas,
aponta para conexões enraizadas muito mais profundamente. Elas indicam
alguma força aparentemente incontrolável de inércia que
parece ser capaz de transformar, com frequência deprimente, mesmo as
"boas intenções" de manifestos políticos
prometedores em
pedras para pavimentar a estrada para o inferno,
nas palavras imortais de Dante. Por outras palavras, o desafio é
enfrentar as
causas e determinações estruturais
subjacentes as quais, pela força da inércia, tendem a
descarrilar muitos programas políticos concebidos para a
intervenção correctiva. A descarrilá-los até mesmo
quando na origem os autores de tais programas admitem que o estado de coisas
existente é insustentável.
Vamos considerar uns poucos exemplos gritantes que demonstram claramente
não só que há alguma coisa a afectar perigosamente o modo
como regulamos nossos intercâmbios sociais como, ainda pior, que a
tendência observável é de intensificação dos
perigos em direcção ao ponto de não retorno.
Escrevi seis anos atrás, para uma palestra pública feita em
Atenas em Outubro de 1999, que "Com toda a probabilidade, a forma final de
ameaçar o adversário no futuro a nova "diplomacia da
canhoneira", exercida a partir do "ar patenteado"
será a
chantagem nuclear.
Mas o seu objectivo seria análogo àquele do passado, ao passo
que a modalidade contemplada só poderia sublinhar a indefensabilidade de
tentar impor deste modo a racionalidade extrema do capital sobre as partes
recalcitrantes do mundo". Nestes seis anos tais práticas
potencialmente letais de fazer política, do imperialismo
hegemónico global, tornaram-se não só uma possibilidade
geral como também uma parte integral da "concepção
estratégica" neoconservadora admitida abertamente pelo governo dos
EUA. E a situação hoje ainda é pior. Nas últimas
poucas semanas, em relação ao Irão, entrámos na
etapa do planeamento real de uma rota de acção que poderia
ameaçar não só aquele país como toda a humanidade
com um desastre nuclear.
[2]
A habitual artimanha cínica utilizada ao publicitar tais
ameaças é "nem confirmá-las nem desmenti-las".
Mas ninguém pode ser enganado por tal espécie de truque. De
facto, foi este perigo muito real de desastre nuclear, recentemente
materializado, que induziu um grupo de prestigiosos físicos americanos,
dentre eles cinco Prémio Nobel, a escrever uma carta aberta de protesto
ao presidente Bush na qual declaram: "É gravemente
irresponsável para os EUA, como a maior superpotência, considerar
rotas de acção que pudessem acabar por conduzir à
destruição generalizada da vida sobre o planeta. Urgimos a
administração a anunciar publicamente que está a retirar
da mesa a opção nuclear no caso de todos os adversários
não nucleares, presentes ou futuros, e urgimos o povo americano a fazer
ouvir sua voz sobre esta matéria".
[3]
Estarão as legítimas instituições políticas
das nossas sociedades em posição de rectificar as
situações mais perigosas através da
intervenção democrática no processo real de tomada de
decisão, tal como o discurso político tradicional continua a
reassegurar-nos, apesar de toda a evidência em contrário? Somente
os mais optimistas ou um tanto ingénuos poderiam asseverar
e acreditar sinceramente que tal estado de coisas feliz se verifica. Pois as
principais potências ocidentais neste últimos poucos anos
embarcaram, de forma bastante desimpedida, em guerras devastadoras utilizando
dispositivos autoritários como a "prerrogativa
executiva" e a "Prerrogativa Real" sem consultarem seus
povos sobre matérias tão graves, e varrendo brutalmente para o
lado a estrutura do direito internacional e os órgãos apropriados
para a tomada de decisões das Nações Unidas.
[4]
Os Estados Unidos arrogaram-se o direito moral de actuar como lhes agrade,
sempre que lhes agrade, mesmo ao ponto de utilizar armas nucleares
não só antecipativamente
(preemptively)
como até mesmo preventivamente
(preventively)
contra todos os países que quiserem, todas as vezes que os seus
afirmados "interesses estratégicos" assim o ditarem. E tudo
isto é feito pelos Estados Unidos como pretenso campeão e
guardião da "democracia e liberdade", submissamente seguida e
apoiada nas suas acções ilegais pelas nossas "grandes
democracias".
Em outros tempos o acrónimo MAD
mutually assured destruction,
destruição mutuamente assegurada era utilizado para
descrever o estado existente da confrontação nuclear. Agora que
os "neoconservadores" não podem mais pretender estarem os
Estados Unidos (e o Ocidente em geral) ameaçados pela
aniquilação nuclear, o acrónimo tornou-se a loucura
(madness)
literal, como a "orientação política
legítima" da
insanidade militar/política institucionalizada.
Isto em parte é consequência do desapontamento neoconservador
acerca da guerra do Iraque. Pois "os neo-cons americanos tiveram a
esperança de que a invasão do Iraque poria em andamento um efeito
dominó através da região, com o povo do Irão e de
outros estados ricos em petróleo a levantarem-se para exigir liberdades
de estilo ocidental e democracia. Infelizmente a verdade foi o reverso, pelo
menos no Irão".
[5]
Mas é muito pior do que isto, porque todo um sistema de
"pensamento estratégico" institucionalmente arraigado e
assegurado, centrado no próprio Pentágono, espreita por
trás disto. É isto o que torna a nova LOUCURA
(MADNESS)
tão perigosa para todo o mundo, incluindo os Estados Unidos cujos
piores inimigos são precisamente tais "pensadores
estratégicos".
Podemos verificar isto de forma muito clara no livro de 2004 de Thomas P. M.
Barnett,
The Pentagon's New Map,
revisto na
Monthly Review
por Richard Peet. Citando Peet:
O 11 de Setembro de 2001 foi uma prenda admirável, diz Barnett,
tão retorcido e cruel quanto isto possa soar. Foi um convite da
história para os Estados Unidos despertarem do sonho da década de
1990 e
forçarem novas regras sobre o mundo.
O inimigo não é nem a religião (Islão), nem
lugares, mas a condição de desligamento
(disconnectedness).
Estar desligado neste mundo é estar isolado, privado, reprimido e
não educado. Para Barnett estes sintomas de desligamento definem
perigo. Dizendo simplesmente, se um país estiver a perder para a
globalização,
ou a rejeitar muito dos seus fluxos de conteúdo cultural, as
probabilidades são que os Estados Unidos acabem por enviar tropas para
ali... A visão estratégica nos Estados Unidos necessita focar o
"número crescente de estados que reconhecem um conjunto de regras
estáveis respeitantes à guerra e à paz" o que
é a condição sob a qual é razoável travar
guerra contra inimigos identificáveis da
"nossa ordem colectiva".
Expandir esta comunidade é uma simples questão de identificar a
diferença entre os bons e os maus regimes e encorajar os maus a
modificar os seus modos. Os Estados Unidos, pensa, têm a
responsabilidade de usar o
seu tremendo poder
para tornar a
globalização verdadeiramente global.
De outro modo porções da humanidade estarão condenadas
a um estatuto de marginalidade que eventualmente as definirá
como inimigas.
E após os
Estados Unidos terem designado estes inimigos,
invariavelmente
travará a guerra com eles,
desencadeando
morte e destruição.
Isto não é uma
assimilação forçada,
defende Barnett, nem a extensão do império; ao invés,
isto é a
expansão da liberdade.
[6]
(ênfase adicionada)
Evidentemente, esta "visão" raia a insanidade. As suas
implicações brutais estão explicitadas numa entrevista
dada por Barnett à revista
Esquire:
"O que significa esta nova abordagem para este país e para o mundo
a longo prazo? Deixe-me ser muito claro em relação a isto: os
rapazes nunca mais virão para casa. A América não
sairá do Médio Oriente até que este se junte ao mundo.
É tão simples como isto. Sem saída quer dizer sem
estratégia de saída".
[7]
Na verdade, seria difícil apresentar as coisas de forma mais clara do
que Barnett nesta entrevista e no seu livro. Desta forma podemos observar a
idealização gratuita das presunções absurdas do
"tremendo poder" dos EUA e a correspondente projecção
da "globalização" como sendo a dominação
nua da América, reconhecendo abertamente que os seus meios são
"
morte e destruição
". E se alguém pensasse que Barnett é um escrevinhador
inconsequente, ficaria bastante alarmado com os factos. Pois Barnett foi um
investigador estratégico sénior no U.S. Naval War College em
Newport, Rhodes Island, e um "homem de visão" no Office of
Force Transformation ligado ao secretário da Defesa. Além disso,
ele é apresentado com toda a seriedade como um "homem de
visão" a ser ouvido e a ser seguido.
Infelizmente, os mais altos escalões do "pensamento
estratégico" nos Estados Unidos estão povoados por tais
"homens de visão", que estão determinados a adicionar
os seus maciços blocos de pavimento não de boas mas de muito
más e agressivas intenções na estrada do inferno de Dante.
Pois o grande poeta italiano nunca sugeriu que a estrada para o inferno de que
falava fosse pavimentada exclusivamente por boas intenções.
Segundo um destes perigosos "homens de visão", Max Boot
que é membro sénior no prestigiado Council on Foreign Relations
"Qualquer nação empenhada em
policiamento imperial
deverá sofrer alguns revezes. O exército britânico,
durante as pequenas guerras da Rainha Vitória, sofreu enormes derrotas
com milhares de baixas na Primeira Guerra Afegã (1824) e na Guerra Zulu
(1879). Isto não refreou apreciavelmente a determinação
britânica de defender e expandir o império; tornou-os antes
sedentos de vingança. Se os americanos não podem adoptar uma
atitude igualmente cruel, então não podem assumir o policiamento
imperial".
[8]
Neste tipo de "visão estratégica" agressiva
é-nos oferecida a idealização aberta da
construção do Império Britânico, incluindo os seus
aspectos mais brutais. Cinicamente, em nome da "difusão da
democracia e da liberdade", a adopção irrestrita da passada
violência colonial é recomendada como o modelo para a actual
construção do império americano.
O que torna tudo isto particularmente perturbante é o facto de
relativamente a todos os assuntos de grande importância alguns dos
quais podem resultar na destruição da humanidade
encontramos nos mais altos níveis de tomada de decisão
política nos EUA um consenso absolutamente perverso. Isto é
verdadeiro apesar dos rituais periódicos das eleições para
a presidência assim como para o Congresso, onde é suposto
oferecerem-se alternativas reais. Contudo, as diferenças afirmadas em
tais assuntos vitais são, em regra, apenas pretensas diferenças.
Como comentei em Dezembro de 2002, muito antes da invasão do Iraque,
"O presidente democrata Clinton adoptou as mesmas políticas que o
seu sucessor, ainda que de forma mais camuflada. Relativamente ao candidato
presidencial democrata, Al Gore, ele declarou recentemente que apoiou sem
reservas a guerra planeada contra o Iraque porque tal guerra não
significava uma "mudança de regime" mas apenas "o
desarmamento de um regime que possuía armas de destruição
em massa".
[9]
Além disso, não devemos esquecer que o primeiro presidente
americano a bombardear o Afeganistão foi nem mais nem menos que o muitas
vezes ridiculamente idealizado Bill Clinton. É portanto longe de
surpreendente que o sucessor de Al Gore como candidato presidencial democrata,
o senador John Kerry, se apressasse a declarar na última corrida
presidencial, ecoando as palavras do seu oponente republicano George W. Bush,
que "os americanos divergem sobre o se e o como devíamos ter ido
para a guerra. Mas seria impensável agora para nós se nos
retirássemos em desordem e deixando para trás uma sociedade
mergulhada em disputa e dominada por radicais". É
compreensível, portanto, que o célebre escritor e crítico
americano, Gore Vidal, tenha descrito a política dos EUA, com ironia
amarga, como
um sistema unipartidário com duas alas de direita.
Desafortunadamente, os EUA não são de forma alguma o único
país que deveria ser caracterizado nestes termos. Há muitos
outros onde as funções de tomada de decisão
política são monopolizadas por acordos institucionais consensuais
auto-legitimadores muito similares, com desprezível diferença (se
alguma) entre eles, não obstante a mudança ocasional do pessoal
ao nível do topo. Confinar-me-ei a este respeito à
discussão de um caso proeminente, o Reino Unido (ou
Grã-Bretanha). Este país em particular tradicionalmente
auto-promovendo-se como o país "mãe da democracia" por
conta da histórica Magna Carta sob a liderança de Tony
Blair se habilita à mesma distinção dúbia de
"um sistema unipartidário com duas alas de direita", tal como
o poderoso Estado norte-americano. A guerra do Iraque foi carimbada no
Parlamento Britânico quer pelo Partido Conservador quer pelo "New
Labor", com a ajuda de mais ou menos óbvias
manipulações e violações legais. Embora possamos
agora ler que "Transcrições de provas apresentadas em
privado pelo Procurador-geral, Lord Goldsmith, num inquérito oficial
sugerem que o conselho crucial quanto à
legalidade da guerra,
apresentado ao parlamento em seu nome, foi escrito para ele por dois dos
aliados mais próximos de Tony Blair
O anterior ministro das
Relações Exteriores Robin Cook afirmou na noite passada que
tendo-se demitido no dia anterior ao início da guerra, nunca ouviu Lord
Goldsmith apresentar o processo legal no Conselho de Ministros. "Eu agora
penso que ele nunca escreveu uma segunda opinião formal", afirmou
ao
The Guardian.
"
[10]
Naturalmente, a subsequente exposição pública e
condenação de tais práticas por eminentes peritos legais,
relativamente à "guerra ilegal de Bush e Blair", não
faz qualquer diferença.
[11]
Pois os interesses encapotados do imperialismo hegemónico global
servidos sem hesitação e de forma vergonhosa pelo sistema
político consensual de uma antiga grande potência imperialista
devem prevalecer a todo o custo.
As consequências desta forma de regular os intercâmbios
políticos e sociais são de longo alcance. De facto, elas podem
ter implicações devastadoras para as alegadas credenciais
democráticas de todo o sistema legal. Três casos importantes devem
bastar para ilustrar o ponto.
O primeiro diz respeito ao alarme criado por um escritor famoso, John Mortimer,
que no passado foi um apoiante apaixonado do Partido Trabalhista
Britânico, e não é de forma alguma uma figura socialmente
radical. Contudo, à luz de desenvolvimentos políticos e legais
recentes, e em particular devido à abolição do
habeas corpus,
salvaguarda legal crucialmente importante, ele sentiu a necessidade de
protestar com igual paixão, escrevendo num artigo de jornal que
"agora que o facto horrendo emergiu aquela ideia de
'modernização' do New Labour é forçar-nos a um
período anterior à Magna Carta e à Bill of Rights, dias
negros quando não havíamos chegado à
presunção de inocência
Tony Blair parece ser a favor
de condenações sumárias repartidas pela polícia sem
a necessidade de qualquer julgamento num grande número de casos.
Portanto descartaram-se séculos da constituição na qual
temos tanto orgulho".
[12]
O segundo caso mostra como o governo britânico responde à
crítica severa mesmo vinda dos mais altos órgãos
judiciários: através da
rejeição autoritária
. Como foi tornado claro recentemente: "Um juiz de um alto tribunal
qualificou ontem o sistema governamental de controlo de ordens contra suspeitos
de terrorismo com
'uma afronta à justiça'
e sentenciou que violava as leis dos direitos humanos
O Home Office rejeitou a sentença do tribunal
".
[13]
Relativamente ao terceiro caso, indica uma questão de grande
importância legislativa:
a autoridade do próprio Parlamento,
ameaçada pela "Reform Bill" do governo New Labour. Para
citar John Pilger: "A Lei de Reforma Legislativa e Regulamentar já
passou a sua segunda audiência parlamentar sem [despertar o] interesse da
maioria dos deputados trabalhistas e dos jornalistas que cobrem aquela casa;
contudo o seu objectivo é
absolutamente totalitário
Significará que o governo poderá secretamente alterar o
Parliament Act, e a constituição e as leis poderão ser
revogadas por decreto da Downing Street. A nova lei marca o fim da verdadeira
democracia parlamentar: nos seus efeitos,
é tão significativa quanto o abandono da Bill of Rights pelo
Congresso dos EUA no ano passado
".
[14]
Porém a manipulação e a violação das leis
internas e internacionais, para justificar o injustificável, acarreta
perigos consideráveis até para as condições
constitucionais mais elementares. As mudanças negativas a
remoção do escrutínio legal vital e das salvaguardas do
quadro político e legal dos seus "aliados" não
podem ser confinadas ao contexto (imposto pelos EUA) internacional. Elas tendem
a por em causa a constitucionalidade em geral, com consequências
incontroláveis para a operacionalidade do sistema legal interno dos
"aliados voluntários", subvertendo as suas
tradições políticas e legais. A arbitrariedade e o
autoritarismo podem levar à loucura como resultado de tais
mudanças altamente irresponsáveis que não hesitam em
arruinar até mesmo a constituição estabelecida.
Um debate actual no Japão oferece um caso gritante:
Surgiu uma situação grave na qual as forças
políticas a favor da
revisão constitucional adversa
estão realmente a competir entre si na redacção de uma
nova constituição. A "minuta de uma nova
Constituição" do LDP (o há muito governante Partido
Democrático Liberal)
eliminou o segundo parágrafo do
Artigo 9º da Constituição e adicionou uma cláusula
autorizando o Japão a "manter a auto-defesa militar" para
desempenhar "actividades coordenadas internacionalmente para assegurar a
paz e a segurança da comunidade internacional," abrindo portanto
caminho ao Japão para
a utilização da força no estrangeiro.
Também contém uma cláusula para
restringir direitos humanos fundamentais
em nome do "interesse e da ordem públicas" o que leva
à
negação do constitucionalismo.
Além disso, é também grave que a minuta de
Constituição do LDP facilite a possibilidade de mais
alterações adversas à Constituição
aligeirando o requisito para o início do processo de revisão pelo
Dieta passando de
dois terços da maioria presente
para
apenas a maioria
de todos os membros de cada câmara.
O objectivo imediato de tais mudanças é, obviamente, tornar o
povo japonês o alimento "voluntário" para os
canhões na guerra que decorre actualmente e nas futuras guerras do
imperialismo americano. Mas pode alguém oferecer seguranças e
garantias ignorando a evidência dolorosa das aventuras
imperialistas japonesas no passado, em conjunto com a sua muito repressiva
história interna de que a longo prazo não haverá
consequências humanas horrendas resultantes destas mudanças?
Entretanto tantos problemas sérios gritam por soluções
genuínas, as quais poderiam muito bem estar ao nosso alcance. Alguns
deles têm-nos acompanhado ao longo de várias décadas,
impondo terrível sofrimento e sacrifícios a milhões de
pessoas. A Colômbia é um exemplo actual. Durante quarenta anos as
forças de opressão interna e externa, dominadas pelos EUA
tentaram sufocar a luta do povo colombiano, sem êxito. Tentativas
de se chegar a um acordo negociado "com a
participação de todos os grupos sociais, sem
excepção, de forma a reconciliar a família
colombiana", nas palavras de Manuel Marulanda Velez, o líder das
FARC-EP foram sistematicamente frustradas.
[16]
Como escreveu Velez numa carta aberta dirigida recentemente a um candidato
presidencial: "Nenhum governo, liberal ou conservador, produziu uma
solução política eficaz para o conflito armado e social.
As negociações foram usadas para se atingir o objectivo de
não alterar coisa alguma, para que tudo permanecesse igual. Todos os
esquemas políticos dos governos utilizaram a Constituição
e as leis como uma barreira, para se assegurarem de que tudo se mantinha da
mesma forma que antes".
[17]
Assim, quando os interesses sociais dominantes o ditam, a
"constitucionalidade" e as regras do "consenso
democrático" são usadas na Colômbia (e em qualquer
parte) como instrumentos cínicos para a fuga e o adiamento eterno da
solução mesmo dos assuntos mais candentes, independentemente da
enormidade da escala de sofrimento imposto, como resultado, ao povo. E, da
mesma forma, num contexto social diferente mas sob o mesmo tipo de
determinações estruturais profundamente enraizadas, até as
mais flagrantes e abertamente admitidas violações da
constitucionalidade estabelecida são ignoradas, apesar do ritual
periódico do falso elogio devido à necessidade de respeitar os
requisitos constitucionais. Neste sentido, quando o Comité do Congresso
que investigava o "Irangate Contra Affairs" concluiu que a
administração Reagan era responsável pela "
subversão da Lei e o enfraquecimento da Constituição
", absolutamente nada aconteceu para condenar, quanto mais remover do
cargo, o presidente culpado. E ainda num outro tipo de caso como vimos
na determinação para subverter a Constituição
japonesa por parte do partido governante LDP quando as cláusulas
da constituição originais aparecem como obstáculos ao
embarque em novas aventuras militares perigosas, os interesses dominantes
políticos e sociais do país impõem um novo quadro legal
cuja função principal é liquidar as anteriormente
proclamadas garantias democráticas e transformar aquilo que
anteriormente era decretado como
ilegal
em "legalidade constitucional" arbitrariamente institucionalizada.
Tão pouco deveríamos esquecer o que tem acontecido num sentido
muito adverso, e na sua tendência perigosamente autoritária,
à constitucionalidade britânica e americana durante estes
últimos anos.
Como indiquei no início, não podemos atribuir os problemas
crónicos dos nossos intercâmbios sociais a mais ou menos
facilmente corrigíveis contingências políticas. Está
demasiado em jogo, e temos historicamente um tempo limitado à nossa
disposição para remediar, de uma forma socialmente
sustentável, os muitos sofrimentos óbvios das classes sociais
estruturalmente subordinadas. A questão do
porquê?
relativamente a problemas
substantivos,
e não simplesmente os insucessos pessoais contingentes, mesmo quando
são sérios, como são os muitas vezes destacados exemplos
de corrupção política generalizada não pode
ser evitada indefinidamente. É necessário investigar as causas
sociais e as determinações estruturais nas raízes das
perturbadoras tendências negativas na política e na lei; de forma
a se poder explicar a sua teimosa persistência e o seu agravamento
actual. O problema do porquê é o que pretendo agora analisar.
2. A natureza da crise estrutural do capital
A este respeito é necessário clarificar as diferenças
relevantes entre
tipos
ou
modalidades
de crise. Não é uma questão indiferente se uma crise na
esfera social pode ser considerada uma crise
periódica / conjuntural
ou alguma coisa muito mais fundamental que isso. Pois, obviamente, a forma de
lidar com uma crise fundamental não pode ser conceptualizada em termos
de categorias de crise periódica ou conjuntural.
Para antecipar um ponto principal desta palestra, na medida do que à
política diz respeito a diferença crucial entre os dois tipos
nitidamente contrastantes de crise em questão é o facto de que
uma crise periódica ou conjuntural evolui e é mais ou menos
resolvida com êxito
num
determinado enquadramento político, enquanto que a crise fundamental
afecta aquele
enquadramento em si mesmo
na sua totalidade. Por outras palavras, relativamente a um determinado sistema
sócio-económico e político estamos a falar acerca da
diferença vital entre as mais ou menos frequentes crises
na
política, por oposição às crises
da
própria modalidade de política estabelecida, com requisitos
qualitativamente
diferentes para a sua possível solução. É com
estas últimas que estamos hoje preocupados.
Em termos gerais, esta distinção não é simplesmente
uma questão da aparente
severidade
dos tipos de crise contrastantes. Pois uma crise periódica ou
conjuntural pode ser dramaticamente severa como a "Grande Crise
Económica Mundial de 1929-1933" acabou por ser e contudo ser
capaz de uma solução dentro dos parâmetros de um
determinado sistema. Interpretar incorrectamente a severidade de uma
determinada crise conjuntural como se ela fosse uma crise sistémica
fundamental, como Estaline e os seus conselheiros fizeram a meio da
"Grande Crise Económica Mundial de 1929-1933", está
condenado a levar a estratégias erradas e na verdade voluntaristas, como
declarar a social-democracia como sendo a "principal inimiga" no
início dos anos 30, o que apenas poderia reforçar, como de facto
tragicamente aconteceu, as forças de Hitler. E do mesmo modo, mas no
sentido oposto, o carácter "não explosivo" de uma crise
estrutural prolongada, em contraste com as "tempestades de
trovões" (Marx) através das quais crises periódicas
de conjuntura podem descarregar-se resolverem-se, pode também conduzir a
estratégias fundamentalmente mal concebidas, como resultado da má
interpretação da ausência de "trovões"
como se a sua ausência fosse a prova esmagadora de uma estabilidade
indefinida do "capitalismo organizado" e da
"integração da classe trabalhadora". Este tipo de
má interpretação, altamente promovida pelos interesses
ideológicos dominantes sob a capa de "objectividade
científica", tende a reforçar a posição
daqueles que representam a aceitação auto-justificante de
abordagens reformistas acomodatícias nos institucionalizados
anteriormente genuinamente de oposição partidos e
sindicatos da classe trabalhadora (agora, contudo, "Oposição
Oficial a Sua Majestade," como diz o ditado). Mas até entre os
críticos comprometidos do sistema capitalista mais profundamente, a
mesma má interpretação relativamente à perspectiva
indefinidamente livre de crise da ordem estabelecida pode resultar na
adopção de uma
postura defensiva auto-paralisante,
como testemunhámos no movimento socialista nas últimas
décadas.
Não pode ser suficientemente sublinhado que a crise
da política
no nosso tempo não é inteligível sem ser referida ao
enquadramento social mais vasto do qual a política é parte
integrante. Isto quer dizer que para se poder clarificar a natureza da crise
persistente e em aprofundamento da política no mundo hoje devemos focar
a nossa atenção na crise do próprio sistema capitalista.
Pois a crise do capital que estamos a experimentar pelo menos desde o
início da década de 1970 é uma
crise estrutural
universal.
[18]
Vejamos, resumidas de forma tão breve quanto possível, as
características definidoras da crise estrutural com a qual nos
preocupamos.
A novidade
histórica
da crise actual é manifestada através de quatro aspectos
principais:
(1) o seu
carácter
é
universal,
em vez de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira,
comercial, ou afectando apenas este ou aquele ramo específico da
produção, ou que se aplica a este em vez daquele outro tipo de
trabalho, com o seu alcance específico de habilidades ou graus de
produtividade, etc);
(2) o seu
âmbito
é verdadeiramente
global
(no sentido literal mais ameaçador do termo), em vez de confinado a um
conjunto particular de países (como foram todas as grandes crises
ocorridas no passado);
(3) a sua
escala temporal
é prolongada, contínua se preferirem:
permanente
ao invés de limitada e
cíclica,
como acabaram por ser todas as anteriores crises do capital.
(4) o seu
modo
de evolução pode ser chamado de
rastejante
em contraste com as mais espectaculares e dramáticas
erupções e colapsos do passado enquanto se soma à
condição de que mesmo as convulsões mais veementes ou
violentas não podem ser excluídas relativamente ao futuro; quer
dizer, quando a complexa maquinaria agora activamente empenhada na
"gestão da crise" e no mais ou menos temporário
"deslocamento" das contradições em crescimento ficar
sem vapor
[Aqui] é necessário fazer algumas observações
gerais acerca do
critério de uma crise estrutural, assim como acerca das formas como a
sua solução pode ser encarada.
Colocando isto em termos mais simples e muito gerais, uma crise estrutural
afecta a
totalidade
de um complexo social, em todas as suas relações com as suas
partes constituintes ou sub-complexos, assim como com outras complexos com os
quais está ligado. Em contraposição, uma crise
não-estrutural afecta apenas algumas partes do complexo em
questão, e portanto não importa quão severa possa ser
relativamente às partes afectadas, não pode colocar em perigo a
sobrevivência continuada da estrutura global.
Consequentemente, o deslocamento das contradições é
factível apenas enquanto a crise é parcial, relativa e
internamente controlável pelo sistema, exigindo não mais do que
mudanças ainda que significativas
dentro
do próprio sistema relativamente autónomo. Do mesmo modo, uma
crise estrutural põe em causa a própria existência do
respectivo complexo global, postulando a sua transcendência e
substituição por algum complexo alternativo.
O mesmo contraste pode ser expresso em termos dos limites que qualquer complexo
social particular possa ter nas suas proximidades, em qualquer tempo dado,
quando comparados com aqueles para além dos quais concebivelmente
não pode ir. Assim, a crise estrutural não está
preocupada com os limites
imediatos
mas sim com os derradeiros limites de uma estrutura global
.
[19]
Assim, num sentido razoavelmente óbvio nada pode ser mais sério
que a
crise estrutural
do modo social de reprodução metabólica do capital o qual
define os
derradeiros limites
da ordem estabelecida. Mas apesar de profundamente sério em todos os
seus importantes parâmetros gerais, à sua superfície a
crise estrutural pode não
parecer
ser de uma importância tão decisiva quando comparada com as
dramáticas vicissitudes de uma grande crise conjuntural. Pois os
"trovões" através das quais as crises conjunturais se
descarregam são especialmente paradoxais no sentido de que no seu modo
de desdobramento elas não só
se descarregam
(e impõem) mas também se
resolvem
a si próprios, até ao ponto em que isso é possível
tendo em conta as circunstâncias. Eles podem fazer isto precisamente
devido ao seu carácter
parcial
que não põe em questão os limites
derradeiros
da estrutura global estabelecida. Ao mesmo tempo, todavia, e pela mesma
razão, eles apenas podem "
solucionar
" os problemas estruturais subjacentes profundamente enraizados os
quais necessariamente se reafirmam reiteradamente na forma de crises
conjunturais específicas de uma forma
estritamente parcial
e também temporalmente bastante
limitada.
Isto é, até que a
crise conjuntural seguinte
surja no horizonte da sociedade.
Em contraste, tendo em conta a inevitavelmente complexa e
prolongada
natureza da crise estrutural, a desdobrar-se em tempo histórico num
sentido de
época
e não episódico/instantâneo, é a
inter-relação cumulativa
do todo que decide a questão, ainda que sob a falsa aparência de
"
normalidade
". Isto porque na crise estrutural
tudo
está em jogo, envolvendo os limites
derradeiros
universais de uma dada ordem da qual não pode possivelmente haver uma
ocorrência
"simbólica/paradigmática"
específica.
Sem se compreender as conexões sistémicas globais e as
implicações dos eventos específicos e os seus
desenvolvimentos perdemos de vista as mudanças realmente significativas
e as correspondentes alavancas de potencial intervenção
estratégica para afectá-las positivamente, no interesse da
necessária transformação sistémica. A nossa
responsabilidade social consequentemente requer uma consciência
crítica intransigente da
inter-relação cumulativa
emergente, ao invés de procurar garantias reconfortantes no mundo da
normalidade ilusória até a casa desabar sobre as nossas
cabeças.
Dada a crise estrutural do capital no nosso tempo, seria um milagre absoluto se
essa crise não se manifestasse e de facto num sentido profundo e
amplamente abrangente no domínio da política. Pois a
política, em conjunto com o seu enquadramento legal correspondente,
ocupa uma posição vitalmente importante no sistema do capital.
Isto deve-se ao facto de o estado moderno ser a
estrutura de comando político totalizadora do capital,
exigida (enquanto a ordem reprodutiva agora estabelecida sobreviver) de forma
a introduzir algum tipo de
coesão
(ou uma unidade de funcionamento eficaz) mesmo numa bastante
problemática e periodicamente avariada dentro da multiplicidade
de
constituintes centrífugos
(o "microcosmos" produtivo e distributivo) do sistema do capital.
Esta espécie de coesão só pode ser
instável
porque depende da sempre predominante, mas pela sua própria natureza
mutável,
relação de forças.
Uma vez rompida essa relação de forças, ela tem de ser
reconstruída de alguma maneira, para corresponder à nova
relação de forças. Quer dizer, até que seja
rompida novamente. E isto repete-se vezes sem conta, como algo rotineiro tido
como garantida. Esta espécie de dinâmica problematicamente
auto-renovadora aplica-se tanto
internamente,
entre as forças dominantes de países específicos, e
internacionalmente,
exigindo reajustamentos periódicos de acordo com as
relações de forças cambiantes entre a multiplicidade de
estados na ordem global do capital. Foi assim que o capital dos EUA pôde
adquirir o seu domínio global durante o século XX, em parte
através da dinâmica interna do seu próprio desenvolvimento,
e em parte através da imposição progressiva da sua
superioridade imperialista sobre as enormemente enfraquecidos potências
imperialistas anteriores sobretudo a Grã-Bretanha e a
França durante e após a Segunda Guerra Mundial.
A grande questão a este respeito é: por quanto tempo pode este
tipo de quebra e de reconstrução da coesão em
funcionamento do sistema dado ser executado sem activar a crise estrutural do
capital? O reajustamento forçado da relação de
forças inter-estatal não parece constituir um limite derradeiro a
este respeito. Afinal de contas, devemos lembrar-nos que a humanidade teve
que, e fê-lo, suportar os horrores de duas Guerras Mundiais sem pôr
em questão a adequação do capital para permanecer como o
controlador sistémico da nossa reprodução social
metabólica. Isto poderia não só ser considerado
compreensível mas, pior que isso, também aceitável, pois
sempre fez parte da
normalidade
do capital determinar que "deve haver guerra se o adversário
não puder ser subjugado de nenhuma outra forma". Contudo, o
problema é que este tipo de "raciocínio" que
nunca foi mais "racional" que a afirmação
categórica de que "o mais forte prevalece, sejam quais forem as
consequências" é agora totalmente absurdo. Pois uma
Terceira Guerra Mundial não poderia parar no ponto de apenas subjugar o
adversário denunciado. Ela destruiria a totalidade da humanidade.
Quando Albert Einstein foi questionado sobre a espécie de armas com que
seria combatida a Terceira Guerra Mundial, a sua resposta foi de que não
poderia dizer isso, mas ele poderia
garantir absolutamente
que todas as guerras subsequentes seriam combatidas com
machados de pedra.
O papel da política na reconstituição da coesão
necessária sempre foi grande no sistema do capital. Muito simplesmente,
um tal sistema não poderia ser mantido sem ela. Pois ele teria
tendência a desfazer-se em pedaços sob a força
centrifugadora das suas partes constituintes. O que aparece em geral sob a
normalidade do capital como uma grande
crise política,
num sentido mais profundo deve-se à necessidade de produzir uma nova
coesão ao nível societário global, de acordo com as
materialmente modificadas ou em modificação
relações de forças. Assim, por exemplo, as
tendências
monopolizadoras
do desenvolvimento não podem ser simplesmente deixadas a si
próprias sem provocar enormes problemas por toda a parte. Elas devem
ser de alguma forma trazidas para um enquadramento relativamente coeso
através da política a estrutura de comando totalizadora do
capital. Isto deve ser feito mesmo se os passos regulatórios adoptados
como demonstração muitas vezes não passam senão de
uma flagrante racionalização e justificação
ideológica da nova relação de forças, a ser ainda
mais favorável às corporações monopolistas (ou
quase-monopolistas) como determina a tendência subjacente. Naturalmente,
os desenvolvimentos monopolísticos internacionais têm lugar com
base na mesma espécie de determinações. Mas todos estes
processos são em princípio compatíveis com a normalidade
do capital, sem resultar necessariamente em crise estrutural no sistema. Nem,
de facto, na crise estrutural da política. Pois, no que diz respeito
à questão da crise, estamos ainda a falar sobre a crise
na política
ou seja, crises específicas que se desdobram e se resolvem por
si próprias dentro dos parâmetros administráveis do sistema
político estabelecido e não sobre a crise
da política.
As instituições políticas estabelecidas têm a
importante função de gerir, e em certo sentido até mesmo
de rotinizar, a maneira mais conveniente ou duradoura de reconstituir a
necessária coesão social, em sintonia com os contínuos
desenvolvimentos materiais e a correspondente relação de
forças cambiante, activando ao mesmo tempo também o arsenal
cultural e ideológico disponível ao serviço daquele fim.
Nas sociedades democráticas capitalistas este processo no domínio
político é habitualmente gerido na forma de
eleições parlamentares periódicas
mais ou menos contestadas genuinamente. Mesmo quando os necessários
reajustamentos reconstitutivos não podem ser contidos dentro de tais
parâmetros ordeiros, devido a algumas mudanças significativas na
relação de forças subjacente, trazendo com elas tipos
ditatoriais de intervenção política/militar, ainda podemos
falar de crise
na política
que pode ser contida pelo capital, desde que mais cedo ou mais tarde possamos
observar um retorno à característica "constitucionalidade
democrática" da normalidade do capital. Além disso, tais
desenvolvimentos são frequentemente controlados em grande
extensão a partir do estrangeiro, como testemunham na América
Latina os numerosos exemplos de governos de gestão autoritária
inspirados pelos EUA.
Isto, está claro, é um assunto inteiramente diferente quando
processos profundamente autoritários e tendências de
desenvolvimento começam a prevalecer não em regiões
subordinadas mas no
núcleo interno
as partes estruturalmente dominantes do sistema do capital
global. Nesse caso, o padrão anterior do "duplo
critério", que consiste em dominar brutalmente outros países
(mesmo de forma militar e imperialista) enquanto em casa vigoram "regras
do jogo democráticas", incluindo a plena
observância da constitucionalidade,
torna-se não mais administrável. O
deslocamento das contradições
é uma aspiração sistémica do capital, enquanto for
praticável. Dadas as hierarquias estruturais que prevalecem e devem
prevalecer em qualquer época determinada também nas
relações inter-estatais, faz parte da normalidade do sistema que
os países dominantes tentem
exportar
na forma de
intervenções violentas,
incluindo guerras as suas contradições internas para
outras, menos poderosas, partes do sistema. Isto eles fazem-no na
esperança de fortalecer internamente, e em meio a enormes choques
intensificando-se mesmo através das fronteiras de classes, a
necessária coesão social.
Contudo, isto torna-se cada vez mais difícil não obstante
todas as mitologias em causa própria acerca da
"globalização universalmente benéfica"
quanto mais globalmente entrelaçado se torna o sistema capitalista. Como
resultado, têm de se desenvolver mudanças significativas, com
sérias consequências por toda a parte. Pois a
preocupação primária do país esmagadoramente
dominante, actualmente os Estados Unidos, é assegurar e reter o controlo
sobre o sistema capitalista global, como o supremo poder do imperialismo
hegemónico global. Mas tendo em conta os custos materiais e humanos
proibitivos envolvidos, que têm de ser pagos de uma forma ou de outra,
este desígnio de dominação global inevitavelmente traz
consigo imensos perigos assim como a resistência implícita,
não só internacionalmente mas também internamente. Por
esta razão, a fim de manter o controlo autoritário sobre o
sistema do capital como um todo, sob as condições de uma crise
estrutural em aprofundamento inseparável da globalização
capitalista no nosso tempo, as inconfundíveis tendências
autoritárias têm de se intensificar não só no plano
internacional mas também dentro dos países imperialistas
dominantes, de forma a subjugar toda a provável resistência. As
graves violações da constitucionalidade a que já
assistimos nos Estados Unidos e no enquadramento legal/político dos seus
aliados próximos, e o que provavelmente assistiremos mais no futuro,
como pressagiado nas medidas e cláusulas legais codificadas até
à data, ou ainda sob uma enviesada
"consideração" particularmente no pipeline legislativo
cinicamente manipulado, são indicações claras desta
tendência perigosa, sob o impacto da crise estrutural do capital.
Um exemplo revelador da manipulação legislativa tendenciosa
é a forma como leis importantes são redigidas pelo ramo executivo
do governo. Não surpreendentemente, portanto, um juiz de um Supremo
Tribunal na Grã-Bretanha teve que se queixar acerca uma questão
vital de direitos humanos dizendo que "as leis aprovadas tinham sido
redigidas de tal forma que impedia os tribunais de inverter as ordens de
controlo
O juiz afirmou que Charles Clarke [o secretário do
Interior britânico na época] havia tomado a decisão de
emitir a ordem com base em
informação unilateral,
mas foi incapaz de encarar circunstâncias que permitissem ao tribunal
revogar a decisão do secretário do Interior. Como resultado,
disse o juiz, ele teria de manter a ordem em vigor, apesar de ter decidido que
violava a lei dos direitos humanos.
[20]
No período pós-Segunda Guerra Mundial, "o fim do
imperialismo" foi celebrado, um tanto apressadamente e ingenuamente. Pois
na realidade apenas vimos um há muito devido reajustamento na
relação de forças internacional, em linha com a maneira
como as relações de poder políticas e
sócio-económicas se tinham objectivamente transformado antes e
durante a Segunda Guerra Mundial, como previsto já numa passagem-chave
do First Inaugural Adress do Presidente Roosevelt a defender a
"política da porta aberta" em todo o lado, incluindo os
então territórios coloniais. O reajustamento do
pós-guerra trouxe consigo, obviamente, a relegação das
antigas potências coloniais à segunda e terceira divisão,
como forças subordinadas do imperialismo americano. Porém,
durante um considerável número de anos no período
pós-guerra da reconstrução e relativamente imperturbada
expansão económica que ajudou ao estabelecimento com êxito
e ao financiamento do estado providência a mudança mais
significativa apregoada pela resolutamente instituída
"política da porta aberta" (isto é, aberta aos Estados
Unidos) foi combinada com a ilusão de que o próprio imperialismo
fora para sempre relegado ao passado. Além disso, foi também
combinada com a ideologia amplamente difundida, infectando pesadamente
não só os intelectuais mas também alguns movimentos
organizados importantes da esquerda tradicional, segundo a qual a
crise
da ordem política e sócio-económica estabelecida
(admitida apenas até pouco antes da guerra), pertencia irreparavelmente
ao passado. Esta ideologia foi promovida em conjunto com a sua
irmã gémea ideológica que anunciava "o fim da
ideologia" com base na assumpção gratuita de que
agora vivíamos num mundo de "capitalismo organizado" que
obtivera êxito no domínio das suas contradições numa
base permanente.
Tinha que haver um despertar brusco, também na política e na
ideologia, quando a crise estrutural universal e em aprofundamento do sistema
do capital se declarou. Em 1987, quando houve uma grande crise nas bolsas de
valores internacionais, os bancos mercantis argumentaram numa discussão
pública televisiva que a razão daquela crise era a recusa dos EUA
em fazer algo quanto à sua dívida astronómica. O
banqueiro americano retorquiu agressivamente na discussão que eles
deviam apenas esperar até os Estados Unidos começarem a fazer
alguma coisa quanto à sua dívida, e então eles iriam ver a
enormidade da crise que explodiria na sua cara. E num certo sentido ele estava
certo. Pois era extremamente ingénuo imaginar que a Europa poderia
isolar-se convenientemente do impacto brutal em todos os aspectos da
cronicamente não resoluta crise estrutural global da qual a
dívida dos EUA é apenas um aspecto, que envolve completamente a
cumplicidade interesseira dos países credores.
Nas últimas duas décadas temos observado o regresso de um
imperialismo claramente flagrante com uma vingança, depois de por muito
tempo se ter camuflado com êxito como o mundo pós-colonial de
"democracia e liberdade". E sob as circunstâncias agora
predominantes ele assumiu uma forma particularmente destrutiva. Agora domina a
etapa histórica casado com a afirmação aberta da
necessidade de se envolver, no presente e no futuro, em "guerras
ilimitadas". Além disso, como mencionado anteriormente, nem mesmo
receou decretar a "legitimidade moral" da utilização de
armas nucleares de forma "antecipativa" e
"preventiva" mesmo contra países que não possuem
tais armas.
Desde o começo da crise estrutural do capital no princípio da
década de 1970, os graves problemas do sistema têm estado a
acumular-se e a piorar em todos os campos, e não menos no domínio
da política. Apesar de, contrariamente a todas as evidências, a
lavagem cerebral da "globalização universalmente
benéfica" continuar a ser propagandeado por toda a parte,
não possuímos órgãos políticos
internacionais viáveis capazes de reparar as consequências
visíveis claramente
negativas
das tendências de desenvolvimento em curso. Até o limitado
potencial das Nações Unidas é anulado pela
determinação americana de impor ao mundo as políticas
agressivas de Washington, como aconteceu no começo da guerra do Iraque
sob falsas alegações.
Actuando desta forma o governo dos EUA assumiu arbitrariamente para si
próprio o papel incontestável de ser o governo global do sistema
do capital como um todo, imperturbado pelo pensamento do necessário
fracasso derradeiro de um tal desígnio. Pois não é
suficiente desencadear uma "força esmagadora", como prescreve
a doutrina militar dominante, destruindo o exército da outra parte e
infligindo no curso das aventuras militares empreendidas um enorme "dano
colateral", como é obscenamente chamado, a toda a
população. A ocupação e dominação
permanente e sustentável incluindo a imperturbada e lucrativa
exploração económica dos países atacados
deste modo é um assunto completamente diferente. Imaginar que mesmo a
maior super-potência militar poderia fazer isto, como "normalidade
forçada" imposta a todo o mundo, e assim imposta como
situação inalterável da "nova ordem mundial",
é uma proposição totalmente absurda.
Infelizmente, os acontecimentos e desenvolvimentos têm apontado para esta
direcção desde há muito tempo. Pois não foi o
presidente George W. Bush mas o presidente Bill Clinton que arrogantemente
declarou que "
apenas existe uma nação necessária, os Estados Unidos da
América
". Os neocons apenas quiseram pôr em prática, e
reforçar, essa crença. Mas mesmo os chamados liberais não
puderam pregar nada mais positivo que o mesmo credo pernicioso, com o mesmo
espírito geral. Eles queixavam-se de que temos hoje no muno
"demasiados Estados", e defendiam uma chamada
integração jurisdicional como a solução
viável de tal problema.
[21]
Quer dizer, uma grotescamente apelidada "integração
jurisdicional" que realmente significaria a
pseudo-legitimação de um controlo directo autoritário dos
deplorados "Estados a mais" por menos do que um punhado de
potências imperialistas, sobretudo os Estados Unidos. Este conceito,
apesar da sua terminologia ofuscante, não é muito diferente da
teorização de Thomas P. M. Barnett sobre como lidar com a
lastimada "condição de
desconexão
" citada acima.
Se hoje existem "Estados a mais", eles não podem ser
eliminados da existência. Nem podem ser destruídos através
da devastação militar, para se estabelecer com base nisto a
felicidade globalizada da "nova normalidade". Os interesses nacionais
legítimos não podem ser reprimidos indefinidamente. De todos os
lugares no mundo, o povo da América Latina pode atestar eloquentemente
esta verdade.
A crise estrutural da política é uma parte integrante da
há muito supurada crise estrutural do sistema capitalista. É
omnipresente
e, consequentemente, não pode ser resolvida através da
manipulação auto-perpetuadora e apologética de qualquer
dos seus aspectos políticos isolados. Muito menos poderia ser resolvida
através da manipulação da própria
constitucionalidade, da qual podemos observar muitos exemplos alarmantes. Nem
mesmo pela subversão e abolição de uma vez da
constitucionalidade. Se os juízes do Supremo Tribunal Britânico e
os magistrados italianos podem protestar contra tais tentativas,
independentemente de quão agressivamente os Berlusconis deste mundo os
censurem mesmo três dias antes de umas eleições gerais,
então também nós podemos fazer o mesmo, com
consciência crítica do que está em jogo.
[22]
O nosso modo estabelecido de controlo metabólico social está em
crise profunda, e pode ser remediado apenas através da
instituição de outro radicalmente diferente, baseado na
igualdade substantiva
que se torna de facto possível no nosso tempo, pela primeira vez na
história. Muitas pessoas criticam com razão os dolorosamente
óbvios fracassos da política parlamentar. Mas também em
relação a isto, o necessário reequacionamento do
parlamentarismo passado e presente não pode levar a resultados
sustentáveis sem ser inserido no seu enquadramento mais amplo, como
parte integrante da pretendida nova ordem metabólica social,
inseparável das exigências de igualdade substantiva.
Muitas pessoas concordam hoje em que devido à sua escalada de
destruição até mesmo no plano ambiental, assim como na
esfera da produção e da esbanjadora acumulação do
capital, para não mencionar as crescentes manifestações
directas da mais irresponsável destruição militar a
nossa ordem metabólica social não é viável a longo
prazo. Contudo, o que tem de ser trazido para o primeiro plano da nossa
consciência crítica quanto às tendências de
desenvolvimento em andamento e ao seu
impacto cumulativo
é o facto de que o
longo prazo
se está a tornar cada vez mais curto no nosso tempo. A nossa
responsabilidade é fazermos alguma coisa quanto a isto antes que se
acabe o tempo.
Notas:
[1] István Mészáros,
Socialism or Barbarism
(New York: Monthly Review Press, 2001), 40.
[2] "Seymour Hersh relata que uma das opções envolve o uso
de uma
arma nuclear táctica
destruidora de bunkers, tal como a B61-11, para assegurar a
destruição da principal unidade de
centrífugação do Irão, em Natanz". Sarah
Baxter, "Gunning for Iran",
The Sunday Times,
9 de Avril, 2006.
[3] Esta iniciativa de 17 de Abril de 2006 foi antecedida, no Outono de 2005,
por uma petição assinada por mais de 1800 físicos em que
repudiavam as novas políticas de armamento nuclear dos EUA que incluem o
uso antecipativo
(preemptive)
de armas nucleares contra adversários "não-nucleares",
http://www.globalresearch.ca
.
[4] John Pilger criticou correctamente o primeiro ministro Tony Blair neste
ponto. Ele escreveu que: "Blair demonstrou o seu gosto pelo poder absoluto
com o seu abuso da Prerrogativa Real, a qual ele tem utilizado para ultrapassar
o parlamento ao ir para a guerra". O artigo de Pilger do qual esta
passagem é retirada foi publicado no
New Statesman,
17 de Abril, 2006. Podemos também acrescentar que tais dispositivos
como a "Prerrogativa Real", assim como os seus igualmente
problemáticos equivalentes em outras constituições, foram
inventados no seu todo precisamente com o objectivo de serem
abusados,
como cláusulas de escape autoritário auto-legitimador que podem
arbitrariamente anular as exigências democráticas em
circunstâncias difíceis, ao invés de aumentarem os poderes
democráticos da tomada de decisão, como deveria ser o caso em
situações de crise significativa.
[5] Baxter, "Gunning for Iran".
[6] Richard Peet, "Perpetual War for a Lasting Peace",
Monthly Review
(Janeiro de 2005), 55-56.
[7] Peet, "Perpetual War for a Lasting Peace".
[8] Max Boot,
Savage Wars of Peace,
citado em "The Failure of Empire", os Editores,
Monthly Review
(Janeiro de 2005), 7.
[9] István Mészáros,
O século XXI, socialismo ou barbárie
(São Paulo: Boitempo, 2003) 10.
[10] "Transcrições mostram a mão do n.º 10 no
aconselhamento jurídico da guerra"
The Guardian,
24 de Fevereiro de 2005. Devia mencionar-se aqui em jeito de esclarecimento que
a primeira opinião de Lord Smith era altamente céptica da
legalidade da guerra em questão.
[11] Philippe Sands,
Lawless World
(Londres: Penguin Books, 2005).
[12] John Mortimer, "Não posso acreditar que um Governo Trabalhista
estaria tão pronto a destruir a nossa lei, a nossa liberdade de
expressão e os nossos direitos civis",
The Mail on Sunday,
2 de Outubro, 2005.
[13] "Terror Law na affront to justice",
The Guardian,
13 de Abril, 2006.
[14] "John Pilger vê a liberdade morrer em silêncio",
New Statesman,
17 de Abril, 2006.
[15]
Japan Press Weekly
(Março de 2006), 26.
[16] Manuel Marulanda Velez, "Carta enviada pelo líder
histórico das FARC da Colômbia a Álvaro Leyva, candidato
às Eleições Presidenciais marcadas para 24 de Maio de
2006",
http://resistir.info/colombia/marulanda_abr06.html
, Abril de 2006.
[17] Vélez, "Carta enviada pelo líder histórico das
FARC da Colômbia".
[18] Escrevi em Novembro de 1971, no prefácio da terceira
edição de
Theory of Alienation
de Marx, que o desdobramento dos acontecimentos e desenvolvimentos
"sublinhava dramaticamente a intensificação da
crise estrutural global do capital
".
[19] István Mészáros, Beyind Capital, 680-82. No
capítulo 18
o assunto é discutido com muito maior pormenor.
[20] "Terror Law an affront to justice",
The Guardian,
13 de Abril, 2006. Outro artigo no mesmo número do
The Guardian,
de Tania Branigan, correspondente política do jornal, noticiava que
"Críticos afirmam que a Lei da Reforma Legislativa e da
Regulação iria permitir que o governo alterasse praticamente
todas as leis que desejasse até mesmo introduzindo novos tipos de
crimes ou alterando a constituição sem
escrutínio
os
Tories
e os
Lib Dem
baptizaram-na de «lei da abolição do escrutínio
parlamentar.»"
[21] Martin Wolf,
Why Globalization Works?
(New Haven: Yale University Press, 2004).
[22] Giorgio Ruffolo, "Un paese danneggiato",
La Republica,
7 de Abril, 2006.
[*]
Autor de
Socialism or Barbarism: From the "American Century" to the Crossroads
(2001) e
Beyond Capital: Toward a Theory of Transition
(1995), publicados pela Monthly Review Press.
Este ensaio constituiu o discurso de abertura do 13º Congresso Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho, em Maceió, Brasil, 04/Maio/2006.
O original encontra-se na
Monthly Review,
vol. 58, nº 4, Setembro/2006 e em
www.globalresearch.ca/
. Tradução de TB.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
.
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