A actualidade histórica da ofensiva socialista
(capítulo 18 de
"Beyond Capital"
)
18.1- A ofensiva necessária das instituições defensivas
18.2- Das crises cíclicas à crise estrutural
18.3- A pluralidade de capitais e o significado do pluralismo socialista
18.4- A necessidade de se contrapor à força extra-parlamentar do capital
Notas do capítulo 18
A actual 'crise do marxismo' deve-se principalmente ao facto de que muitos
dos seus representantes continuam a adoptar uma postura
defensiva,
numa época em que, tendo acabado de virar uma página
histórica importante, nos deveríamos engajar numa ofensiva
socialista em sintonia com as condições objectivas.
Paradoxalmente, os últimos 25 anos, que progressivamente manifestaram a
crise estrutural do capital e daí o início da
necessária ofensiva socialista num sentido histórico ,
também testemunharam a disposição de muitos marxistas,
maior do que nunca, de buscarem novas alianças defensivas e de se
envolverem com todos os tipos de revisões e compromissos em grande
escala, ainda que não tenham, realmente, nada para mostrar como
resultado de tais estratégias fundamentalmente desorientadoras.
A desorientação em questão não é, de modo
algum, simplesmente ideológica. Ao contrário, ela envolve todas
as instituições de luta socialista que foram constituídas
sob circunstâncias históricas defensivas e, por esse motivo,
perseguem, sob o peso da sua própria inércia, modos de
acção que correspondam directamente ao seu carácter
defensivo. E, já que a nova fase histórica inevitavelmente traz
consigo o aguçamento do confronto social, deve-se esperar mas
não idealizar , sob tais circunstâncias, uma maior
reacção defensiva das instituições (e
estratégias) de luta da classe trabalhadora. Lamentavelmente, contudo,
as estruturas e estratégias defensivas existentes consideram
inquestionáveis os seus próprios pressupostos e procuram
soluções que permanecem ancoradas nas condições da
velha, e agora superada, fase histórica.
Tudo isto deve ser bem sublinhado para evitar a ilusão de
soluções fáceis. Não basta, portanto, argumentar a
favor de uma nova orientação ideológico-política
caso se mantenham tal como hoje as formas institucionais e organizacionais
relevantes. Se, em sua resposta por inércia às
circunstâncias históricas que já não são as
mesmas, a desorientação corrente é a
manifestação combinada dos factores prático-institucional
e ideológico, seria ingenuidade esperar uma solução no que
muitos gostam de descrever como "clarificação
ideológica". De facto, enquanto os dois devem desenvolver-se juntos
nessa reciprocidade dialéctica, o
übergreifendes Moment
(momento culminante) na conjuntura actual é a estrutura
prático/institucional da estratégia socialista, que precisa de
reestruturar-se de acordo com as novas condições. Estes
são os problemas que iremos tratar no presente capítulo.
18.1-
A OFENSIVA NECESSÁRIA DAS INSTITUIÇÕES DEFENSIVAS
18.1.1
Dizer que somos contemporâneos da nova fase histórica de ofensiva
socialista não significa que, de agora em diante, o percurso seja
tranquilo e a vitória próxima. A expressão
"actualidade histórica" não sugere mais do que diz
explicitamente: que a ofensiva socialista confronta-nos como matéria de actualidade
histórica,
em contraste com a nossa aflitiva situação objectiva, não há
muito tempo atrá dominada por determinações defensivas
inescapáveis. Ainda que certamente
um dia
(em última análise) as mudanças sociais irão
infiltrar-se nos canais e nos modos de mediação política e
ideológica prevalecentes, a consciência nãs as regista
automaticamente, por mais importantes que sejam. Mas antes mesmo de
alcançarmos a etapa da "última análise", a inércia
da forma anterior de resposta tal como articulada em determinadas
estratégias e estruturas organizacionais continua a dominar a
maneira como as pessoas definem as suas próprias alternativas e margens
de acção. Nesse sentido, o discurso sobre a
"consciência de classe" que reprova o proletariado pela
"falta de combatividade" demonstra apenas a sua própria
vacuidade, pois os instrumentos e as estratégias de acção
socialista permanecem estruturados defensivamente.
Devido à mudança da relação de forças e das
circunstâncias, a actualidade histórica da ofensiva socialista
corresponde, em primeiro lugar, ao desconfortável facto negativo de quer
algumas formas de acção anteriores (as políticas de
consenso), a "estratégia de pleno emprego", a
"expansão do Estado de bem-estar social", etc estão
objectivamente bloqueadas, o que impõe reajustes importantes na
sociedade como um todo. Mas o facto de se partir dessa "negatividade
brutal" inicial não significa que os reajustamentos em
questão sejam positivos, mobilizando as forças socialistas num
esforço consciente para se apresentarem como portadoras da ordem social
alternativa capaz de substituir a sociedade em crise. Longe disso, como as
mudanças exigidas são muito drásticas, em vez de
aceitarmos prontamente o "salto para o desconhecido", é ainda
mais provável que se prefira seguir "a linha de menor
resistência" ainda por um tempo considerável, mesmo que isso
signifique derrotas significativas e grandes sacrifícios para as
forças socialistas. Somente quando as opções da ordem
predominante se esgotarem poderemos esperar uma viragem
espontânea
para uma solução radicalmente diferente. (O completo colapso da
ordem social no curso de uma guerra perdida e os levantes
revolucionários subsequentes, conhecidos da história passada,
ilustram bem esta questão.)
Contudo, as dificuldades de uma resposta socialista adequada à nova
situação histórica não mudam o carácter da
própria situação, ainda que coloquem novamente em relevo o
conflito potencial entre escalas de temporalidade a estrutura
histórica imediata e a geral de eventos e desenvolvimento. É o
carácter objectivo das novas condições históricas
que
por fim
decide a questão, não importando quais sejam os atrasos e
desvios que possam acompanhar as circunstâncias dadas. A verdade é
que existe um
limite
além do qual acomodações forçadas e
imposição de novos sacrifícios se tornam
intoleráveis,
subjectivamente
para os indivíduos envolvidos e
objectivamente
para a continuação do funcionamento da estrutura
socioeconómica ainda dominante. Nesse sentido e em nenhum outro, a
actualidade histórica da ofensiva socialista entendida como
sinónimo do fim do sistema de melhorias relativas pela
acomodação consensual está destinada a impor-se a
longo prazo, tanto na forma exigida da consciência social como na sua
mediação estratégico-instrumental, mesmo que não
possam existir garantias contra outras derrotas e decepções num
curto prazo. Ainda que seja verdade o que é bastante duvidoso
que os seres humanos tenham uma infinita capacidade para suportar
qualquer imposição sobre eles, incluindo as piores
condições possíveis, a capacidade de
adaptação do sistema global do capital é hoje muito menor
do que esta.
18.1.2
Veremos de que forma as potencialidades objectivas da ofensiva socialista
são inerentes à crise estrutural do próprio capital. Agora
o objectivo é acentuar uma contradição principal: a
ausência de instrumentos políticos adequados que poderiam
transformar esta potencialidade em
realidade.
Além disso, o que torna as coisas ainda piores é a continuidade
do domínio das mitologias passadas sobre a auto-consciência das
organizações envolvidas, descrevendo o partido leninista, por
exemplo, como a instituição da ofensiva estratégica
par excellence.
Certamente, todos os instrumentos e organizações do movimento da
classe trabalhadora existiram para superar alguns dos obstáculos
principais na via para a emancipação. Em primeira instância
foram o resultado de explosões espontâneas e, como tal representam
um
momento
de ataque. Mais tarde, como resultado de esforços pacientes, estruturas
coordenadas emergiram tanto em países particulares como em escala
internacional. Mas nenhuma delas poderia ir para além do horizonte de
lutar por objectivos específicos, limitados, até mesmo se o seu
objectivo último estratégico fosse uma
transformação socialista radical de toda a sociedade. Não
se deve esquecer que Lenine, brilhantemente e realisticamente ,
definiu os objectivos dos bolcheviques entre Fevereiro e Outubro de 1917 como
assegurar "Paz, Terra e Pão" de modo a criar uma base social
viável para a revolução. Mas, até mesmo em termos
organizacionais básicos, o "Partido de Vanguarda" foi
constituído de forma a poder se
defender
dos ataques cruéis de um Estado policial, sob as piores
condições possíveis de clandestinidade, das quais
inevitavelmente decorreu a imposição do segredo absoluto, de uma
estrutura rígida de comando, de centralização, etc. Se
compararmos a estrutura auto-defensivamente fechada deste partido de vanguarda
com a ideia original de Marx de produzir consciência comunista em escala
de massa" com a consequência necessária de uma
estrutura organizacional inerentemente aberta , teremos uma medida de
diferença fundamental entre uma postura defensiva e uma ofensiva.
Somente quando as condições objectivas implícitas em tal
objectivo estão em processo de se desdobrar em escala global é
possível imaginar realisticamente a articulação
prática dos órgãos necessários da ofensiva
socialista.
Na verdade, Lenine não teve nenhuma ilusão quanto a esta
possibilidade, ainda que algumas interpretações tendam a
descrever retrospectivamente os seus objectivos à luz de uma
esperança vazia.
Ele baseou a sua estratégia de quebrar o "elo mais fraco da
corrente" numa interpretação da lei de desenvolvimento
desigual, insistindo ao mesmo tempo que
revoluções
políticas
não podem em caso algum, nunca e em nenhuma condição,
encobrir ou enfraquecer a palavra de ordem da revolução
socialista
... que não pode ser encarada como um só
acto,
mas deve ser encarada como uma
época
de tempestuosas convulsões políticas e económicas, de
guerra civil, de revoluções e contra-revoluções.
[1]
Neste espírito, ele esperou que a revolução
política de Outubro abrisse a "época de tempestuosas
conclusões políticas e económicas", que se
manifestaria no mundo inteiro por toda uma série de
revoluções, até que as condições de uma
vitória socialista estivessem firmemente asseguradas. Quando a onda de
motins revolucionários se esgotou sem resultados positivos importantes
em outras partes, Lenine observou racionalmente que não se poderia
devolver o poder aos czares e continuou o trabalho de defender o que fosse
possível naquelas circunstâncias. Ele originalmente esperava
combinar o potencial político do "elo mais fraco" com as
condições maduras dos países capitalistas
"avançados". Foi o fracasso da revolução mundial
que violentamente truncou a sua estratégia, impondo-lhe os
constrangimentos deformadores de uma defesa desesperada.
Lenine sempre teve a consciência da diferença fundamental entre a
revolução política e a social (à qual denominou
socialista), mesmo quando foi irrevogavelmente forçado a defender a mera
sobrevivência da revolução política, ao passo que
Estaline ignorou esta distinção vital, fingindo que o
primeiro passo
na direcção de uma vitória socialista já
representava o próprio socialismo, que deveria simplesmente ser seguido
pela entrada "na etapa superior do comunismo" num país
sitiado. Naturalmente, com tal mudança apologética de
estratégia, na qual tudo tinha que ser cruelmente subordinado à
defesa do estalinismo e simultaneamente saudado como a maior vitória
possível para a revolução socialista em geral, desapareceu
também a diferença real entre estruturas e desenvolvimento
defensivos e ofensivos. E, enquanto Lenine, na ausência da
revolução mundial, entendeu a sua tarefa geral como uma
operação de manufacturação
(a ser substituída no devido tempo por desenvolvimentos mundiais
favoráveis), Estaline fez da miséria virtude. Ele transubstanciou
a resposta política, prevalecente aos constrangimentos particulares, num
ideia social geral (e, portanto, compulsório), sobrepondo
arbitrariamente a todos os processos sociais e económicos a
prática voluntarista de tentar resolver os problemas por meio de
ditames políticos
autoritários.
Desse modo, pudemos testemunhar um grande afastamento das
intenções originais, tanto em termos dos objectivos fundamentais
como das formas institucionais e organizacionais correspondentes. A
concepção global de Marx tinha como objectivo estratégico
a revolução social abrangente, a partir da qual os homens
deveriam mudar "de cima abaixo as condições da sua
existência industrial e política, e por conseguinte toda a sua
maneira de ser"
[2]
. Sendo assim, as formas e instrumentos da luta teriam que corresponder ao
carácter essencialmente
positivo
do empreendimento como um todo, em vez de serem bloqueados na fase
negativa
de uma acção
defensiva.
Por isso Marx, ao dirigir-se a um grupo de trabalhadores, lembrou-lhes que
não deveriam contentar-se com a negatividade "retardadora do
movimento depressivo" quando a tarefa consistia em "alterar a sua
direcção", que eles não deveriam aplicar
"paliativos" quando o problema era "curar a doença".
E afirmou não ser suficiente empenhar-se negativamente/defensivamente nas
inevitáveis
lutas de guerrilha
que incessantemente emergem dos eternos abusos do capital ou das
flutuações do mercado.
[3]
Contudo, quando precisou de explicar o lado
positivo
da equação, nas condições prevalecentes de
subdesenvolvimento relativo do capital ainda longe das suas verdadeiras
barreiras e da sua crise estrutural , Marx só pode apontar o facto
de que havia um processo de desenvolvimento objectivo em andamento, mas nenhuma
mediação institucional e estratégica tangível para
transformar aquele processo em vantagem duradoura. Como explicou, os
trabalhadores "devem entender que, com todas as misérias que lhes
impõem, o sistema actual engendra simultaneamente as
condições materiais
e as formas sociais necessárias para uma reconstrução
económica da sociedade"
[4]
. Assim, indicou um aliado positivo nas condições materiais em
amadurecimento da sociedade, mas não poderia ir mais longe que isso. Na
mesma conferência, insistiu em que "a luta de guerrilha"
é defensiva apenas contra os efeitos do sistema, oferecendo apenas a
metáfora da "alavanca" a ser usada para uma mudança
fundamental, não identificando de maneira alguma onde e como tal
alavanca poderia ser inserida no centro estratégico do sistema a ser
negado para poder produzir a transformação radical postulada.
Teria sido um milagre se fosse de outro modo, pois o movimento socialista,
depois dos primeiros mais ou menos espontâneos ataques e
explosões nascidos do desespero, encontrou-se na situação
de fixar objectivos muito limitados, em resposta aos desafios colocados pelas
confrontações nacionais particulares contra o pano de fundo da
expansão global e do desenvolvimento dinâmico do capital. Sendo
assim, a Primeira Internacional logo experimentou as primeiras grandes
dificuldades que finalmente conduziriam à sua
desintegração. E nenhuma mitologia retrospectiva poderia
transformar a Comuna de Paris numa importante ofensiva socialista: não
simplesmente porque foi brutalmente derrotada, mas principalmente devido ao
facto, fortemente acentuado pelo próprio Marx, de que não era
socialista
[5]
. Naturalmente, os debates relativos ao Programa de Gotha e à
orientação estratégica do movimento da classe trabalhadora
alemã seguiam as mesmas determinações defensivas. As
condições objectivas para se imaginar a mera possibilidade de uma
ofensiva hegemónica nem sequer estavam à vista e, na sua
ausência, as severas limitações das formas organizacionais
e estratégias possíveis também foram ocultas. Por isso
Marx, depois de definir as condições necessárias de uma
revolução socialista bem sucedida em termos do
"desenvolvimento positivo dos meios de produção",
declarou sem hesitação, ainda em 1881:
é minha
convicção que a conjuntura critica para uma nova
Associação Internacional dos Trabalhadores ainda não
chegou e por isso considero todos os congressos de trabalhadores,
particularmente os congressos socialistas, na medida em que não estejam
relacionados com as condições imediatas desta ou daquela
nação particular, como não somente inúteis mas
prejudiciais. Acabarão sempre por se diluir em inumeráveis
banalidades gerais e vazias.
[6]
Desnecessário dizer a Segunda Internacional, neste particular,
não trouxe qualquer melhoria. Ao contrário, pelo seu
"economicismo" capitulou miseravelmente ante as
determinações sociais/económicas dominantes da
condição defensiva global. Substituiu as exigências de uma
estratégia ampla pela prática pedestre de "mudança
gradual", traduzindo ao mesmo tempo a sua capitulação
defensiva na estrutura organizacional ossificada de uma
"social-democracia" corruptamente casada com a
manipulação parlamentar capitalista. De acordo com isso, o
período pós-guerra da expansão capitalista saudado
por muitos como a solução permanente das
contradições do capital, e também da
integração estrutural da classe trabalhadora encontrou os
seus porta-vozes e administradores mais entusiastas neste movimento pseudo
socialista de capitulação da social-democracia.
Ao contrário da Segunda Internacional , a qual, de certo modo,
está connosco até hoje , o momento histórico da
Terceira Internacional foi relativamente breve. A onda revolucionária
das fases finais da Primeira Guerra Mundial deu-lhe um grande ímpeto
original, mas mal se passaram doze meses depois do seu Congresso fundador para
que Lenine tivesse de admitir que
Era evidente que o movimento
revolucionário perderia inevitavelmente velocidade quando as
nações assegurassem a paz.
[7]
Significativamente, o mesmo discurso que reconheceu ter passado a onda
revolucionária no Ocidente concentra-se fortemente na questão de
concessões económicas aos países capitalistas, tendo
aprovado uma citação de Keynes com relação à
importância de matérias-primas russas para a
reconstituição e a estabilização da economia global
do capital e adoptado conscientemente esta estratégia para o futuro
imediato. Quando os estrategistas da "Acção de
Março" alemã embarcaram na sua ofensiva voluntarista, os
dados das determinações objectivas estavam fortemente viciadas
contra uma tal ofensiva, impondo por muito tempo um tom trágico ao
destino dos movimentos revolucionários socialistas.
O mundo do capital também resistiu com relativa facilidade à
tempestade da sua "Grande Crise Económica" de 1929-1933 sem
ter de enfrentar uma importante confrontação hegemónica
com as forças socialistas, apesar do sofrimento das massas provocado por
essa crise. O facto é que, por maior que fosse a crise, ela estava longe
de ser uma crise
estrutural,
ao deixar um grande número de opções abertas para a
sobrevivência continuada do capital, bem como para a sua
recuperação e a sua reconstituição mais forte do
que nunca numa base economicamente mais saudável e mais ampla.
Reconstruções políticas retrospectivas tendem a culpar
personalidades e forças organizacionais por tal
recuperação, particularmente em relação ao sucesso
do fascismo. Contudo, por maior que fosse o peso relativo de tais factores
políticos, não se pode esquecer que eles devem ser avaliados
contra o pano de fundo de uma fase histórica essencialmente defensiva.
Não tem sentido reescrever a história com a ajuda de
condicionantes contrafactuais, mesmo que eles se refiram à
ascensão do fascismo ou qualquer outra coisa. O que realmente importa
é que, concomitantemente à crise de 1929-1933, o capital tinha a
opção do fascismo
(e soluções semelhantes), opção que já
não possui hoje. E, objectivamente, isso faz uma grande diferença
no que tange às possibilidades de acção defensiva e
ofensiva.
18.1.3
Dado o modo pelo qual foram constituídos como partes integrantes
de uma estrutura institucional complexa , os órgãos de luta
socialista poderiam ganhar batalhas individuais, mas não a guerra contra
o capital. Para isso seria necessária uma reestruturação
fundamental, de forma que eles se complementassem e intensificassem a
eficácia uns dos outros, em vez de debilitá-la pela
"divisão do trabalho" imposta pela institucionalidade
"circular" no interior da qual se originaram. Os dois pilares de
acção da classe trabalhadora no Ocidente partidos e
sindicatos , estão na realidade, inseparavelmente unidos a um
terceiro membro do conjunto institucional global: o Parlamento, que forma o
círculo da sociedade civil/estado político e se torna aquele
"círculo mágico" paralisante do qual parece não
haver saída. Tratar os sindicatos junto com outras (muito menos
importantes) organizações sectoriais, como se pertencessem, de
alguma maneira, apenas à "sociedade civil" e que portanto
poderiam ser usados contra o Estado político, para uma profunda
transformação socialista, é um sonho romântico e
irreal. Isto porque o círculo institucional do capital, na realidade,
é feito das
totalizações recíprocas
da sociedade civil e do Estado político, que se interpenetram
profundamente e se apoiam poderosamente um no outro. Por isso, seria
necessário muito mais que a derrubada de um dos três pilares
o Parlamento, por exemplo para produzir a mudança
necessária.
O lado problemático da estrutura institucional prevalecente revela-se
eloquentemente em expressões como "consciência
sindical", "burocracia partidária" e "cretinismo
parlamentar", para citar apenas um nome em cada categoria. O Parlamento,
em particular, tem sido objecto de uma crítica muito justificada, e
até hoje não há teoria socialista satisfatória
sobre o que fazer com ele após a conquista do poder: um facto que
eloquentemente fala por si mesmo. Apesar de os clássicos do marxismo
terem lutado contra a "indiferença à política" e
a defesa igualmente sectária do "boicote ao Parlamento", eles
não conseguiram imaginar um "estágio
intermediário" (que, na verdade, poderia ser uma fase
histórica muito longa).
Um estágio que significativamente retivesse pelo menos algumas
características importantes da estrutura parlamentar herdada, enquanto o
longo processo de reestruturação radical fosse realizado na ampla
escala necessária. Por exemplo, Marx implicitamente levantou esta
possibilidade numa digressão surgida no contexto da mudança
revolucionária associada ao uso de força como norma. Num discurso
importante mas pouco conhecido, foi assim que ele tentou resolver o problema:
O trabalhador um dia vai ter que ganhar a supremacia política para
organizar o trabalho segundo
novas linhas:
ele terá que derrotar a
política velha
que apoia
velhas instituições...
Mas nós não temos, de modo algum, afirmado que esta meta seria
alcançada por meios idênticos. Nós conhecemos as
concessões
que temos que fazer às
instituições, aos costumes e tradições
dos vários países; e não negamos que há
países como os Estados Unidos, a Inglaterra, e eu acrescentaria a
Holanda se conhecesse melhor as suas instituições, onde os
trabalhadores podem alcançar a sua meta através de
meios pacíficos.
Se isto é verdade, também temos de reconhecer que na maioria dos
países continentais
é a força
que deverá ser a alavanca de revoluções; é
à força
que teremos algum dia que recorrer para estabelecer um reinado do trabalho.
[8]
É discutível se o assunto em questão é simplesmente
uma questão de "concessões" que devam ser feitas a
algumas restrições herdadas: a importância do Parlamento
é muito grande para ser tratada de passagem, ao lado de "costumes e
tradições". Compreensivelmente, na concepção
de Marx da política como
negação radical
o Parlamento aparece geralmente na sua negatividade quase grotesca, resumida no
dictum
"Iludir os outros e iludir-se ao iludi-los este é o extracto
concentrado da
sabedoria parlamentar! Tant Mieux!"
[9]
"Tanto melhor" ou "tanto pior"?
Como o Parlamento afecta profundamente todas as instituições da
luta socialista que porventura estejam intimamente ligadas a ele, seguramente
deve ser "tanto pior". E, se se acrescenta a
consideração
levantada por Marx como uma possibilidade histórica séria, e
não como um gesto vazio de propaganda fraccionista de partido de
que a mudança revolucionária possa usar
meios pacíficos
como veículo, neste caso torna-se ainda mais imperativo reorientar
radicalmente a "sabedoria parlamentar" para a
retro-alimentação de objectivos socialistas.
A experiência das sociedades do "socialismo real" mostra
claramente que é possível demolir apenas um dos três
pilares da estrutura institucional herdada, porque, de uma maneira ou de outra,
os dois que permanecem acabam por cair com ele. Quando pensamos na
existência puramente nominal dos sindicatos nas sociedades, bem como na
experiência, da Polónia e na re-emergência do limbo de um
sindicalismo amargamente independente na forma do "Solidariedade",
torna-se claro que equilibrar a sociedade no topo do único pilar
remanescente é totalmente insustentável a longo prazo. Menos
óbvio, entretanto, é o que acontece ao próprio partido na
sequência da conquista de poder. O "partido de vanguarda" de
Lenine reteve algumas características organizacionais
constituídas na ilegalidade e na luta pela mera sobrevivência
contra o Estado policial czarista. Mas, ao tornar-se o governante
inquestionável do novo Estado, deixou de ser um partido leninista e
tornou-se o
Partido-Estado,
impondo e também sofrendo todas as consequências que a
mudança necessariamente acarreta. Assim, fica extremamente
difícil, senão impossível, a transferência do poder
de um conjunto de indivíduos a outro (uma ocorrência comicamente
comum na estrutura parlamentar), ou até mesmo uma mudança parcial
na política quando se alteram as circunstâncias.
A natureza da estrutura institucional global também determina o
carácter de suas partes constituintes e, vice-versa, os
"microcosmos" particulares de um sistema exibem sempre as
características essenciais do "macrocosmos" a que pertencem.
Nesse sentido, qualquer mudança que ocorra num componente particular
só pode tornar-se algo puramente efémero, a menos que possa
reverberar plenamente por todos os canais do complexo institucional total,
dando assim início às mudanças exigidas no sistema inteiro
de totalizações recíprocas e
inter-determinações. Como insistiu Marx, não bastava
ganhar "lutas de guerrilha", que poderiam ser neutralizadas e mesmo
anuladas pelo poder de assimilação e integração do
sistema dominante. O mesmo era verdade para o triunfo em
batalhas individuais
quando, em última instância, a questão era decidida nos
termos das condições de ganhar a guerra.
Por isso a actualidade histórica da ofensiva socialista tem imenso
significado. Pois, sob as novas condições da crise estrutural do
capital, torna-se possível ganhar muito mais do que algumas grandes
(mas, no final das contas terrivelmente isoladas)
batalhas,
como as revoluções russa, chinesa e cubana. Ao mesmo tempo,
não existe meio de minimizar o carácter doloroso do processo
envolvido, que requer importantes ajustes estratégicos e correspondentes
mudanças institucionais e organizacionais radicais em todas as
áreas e por todo o espectro do movimento socialista.
18.2-
DAS CRISES CÍCLICAS À CRISE ESTRUTURAL
18.2.1
Como mencionado antes, a crise do capital que experimentamos hoje é
fundamentalmente uma crise estrutural. Assim, não há nada
especial em associar-se capital a crise. Pelo contrário, crises de
intensidade e duração variadas são o modo
natural
de existência do capital: são maneiras de progredir para
além de suas barreiras imediatas e, desse modo, estender com dinamismo
cruel a sua esfera de operação e dominação. Nesse
sentido, a última coisa que o capital poderia desejar seria uma
superação
permanente
de todas crises, mesmo que seus ideólogos e propagandistas
frequentemente sonhem ou ainda, reivindiquem a realização de
exactamente isso.
A novidade
histórica
da crise de hoje torna-se manifesta em quatro aspectos principais:
(1) o seu
carácter
é
universal,
em lugar de restrito a uma esfera particular (por exemplo, financeira ou
comercial, ou afectando este ou aquele ramo particular de
produção, aplicando-se a este e não àquele tipo de
trabalho, com a sua gama específica de habilidades e graus de
produtividade etc);
(2) o seu
alcance
é verdadeiramente
global
(no sentido mais literal e ameaçador do termo), em lugar de limitado a
um conjunto particular de países (como foram todas as principais crises
no passado);
(3) a sua
escala de tempo
é extensa, contínua, se se preferir,
permanente,
em lugar de limitada e cíclica, como foram todas as crises anteriores do
capital;
(4) em contraste com as
erupções e os colapsos mais espectaculares e dramáticos do
passado, o seu
modo
de se desdobrar poderia ser chamado de
rastejante,
desde que acrescentemos a ressalva de que nem sequer as convulsões mais
veementes ou violentas poderiam ser excluídas no que se refere ao
futuro: a saber, quando a complexa maquinaria agora activamente empenhada na
"administração da crise" e no "deslocamento"
mais ou menos temporário das crescentes contradições
perder a sua energia.
Seria extremamente absurdo negar que tal maquinaria existe e é poderosa,
nem se deveria excluir ou minimizar a capacidade do capital de somar novos
instrumentos ao seu já vasto arsenal de autodefesa contínua.
Não obstante, o facto de que a maquinaria existente esteja sendo posta
em jogo com frequência crescente e com eficácia decrescente
é uma medida apropriada da severidade da crise estrutural que se
aprofunda.
Aqui, temos que nos concentrar em alguns componentes da crise em andamento. Se,
no período pós-guerra, se tornou embaraçosamente antiquado
falar de crise capitalista mais um outro sinal da postura defensiva do
movimento do trabalho já mencionado isso foi devido não
apenas à operação prática bem-sucedida da
maquinaria que desloca (por difundir e por retirar a espoleta explosiva) as
próprias contradições. Foi também devido à
mistificação ideológica (do "fim da ideologia"
ao "triunfo do capitalismo" organizado e à
"integração da classe trabalhadora" etc) que
apresentou o
mecanismo de deslocamento
sob o disfarce de remédio estrutural e
solução permanente.
Naturalmente, quando já não é mais possível ocultar
as manifestações da crise, a mesma mistificação
ideológica que ontem anunciava a solução final de todos os
problemas sociais hoje atribui o seu reaparecimento a factores puramente
tecnológicos,
despejando as suas enfadonhas apologias sobre a "segunda
revolução industrial", "o colapso do trabalho", a
"revolução da informação" e os
"descontentamentos culturais da sociedade pós-industrial".
Para apreciar a novidade histórica da crise estrutural do capital,
precisamos localizá-la no contexto dos acontecimentos sociais,
económicos e políticos do século XX. Mas antes é
necessário fazer algumas observações gerais sobre os
critérios de uma crise estrutural, bem como sobre as formas nas quais
podemos imaginar a sua solução.
Em termos simples e gerais, uma crise estrutural afecta a
totalidade
de um complexo social em todas as relações com as suas partes
constituintes ou sub-complexos, como também a outros complexos aos quais
é articulada. Diferentemente, uma crise não-estrutural afecta
apenas algumas partes do complexo em questão, e assim, não
importa o grau de severidade em relação às partes
afectadas, não pode pôr em risco a sobrevivência
contínua da estrutura global.
Sendo assim, o deslocamento das contradições só é
possível enquanto a crise for parcial, relativa e interiormente
manejável pelo sistema, demandando apenas danças
mesmo que importantes
no interior
do próprio sistema relativamente autónomo. Justamente por isso,
uma crise estrutural põe em questão a própria
existência do complexo global envolvido, postulando a sua
transcendência e a sua substituição por algum complexo
alternativo.
O mesmo contraste pode ser expresso em termos dos limites que qualquer complexo
social particular venha a ter em sua imediaticidade, em qualquer momento
determinado, se comparado àqueles além dos quais não pode
concebivelmente ir. Assim, uma crise estrutural não está
relacionada com os limites
imediatos
mas com os limites
últimos
de uma estrutura global. Os limites imediatos podem ser ampliados de três
modos diferentes:
(a) modificação de
algumas partes de um complexo em questão;
(b) mudança geral de todo
o sistema ao qual os sub-complexos particulares pertencem; e
(c) alteração significativa da relação do complexo
global com outros complexos
fora dele.
Por conseguinte, quanto maior a complexidade de uma estrutura fundamental e das
relações entre ela e outras com as quais é articulada,
mais variadas e flexíveis serão as suas possibilidades objectivas
de ajuste e as suas hipóteses de sobrevivência até mesmo em
condições extremamente severas de crise. Por outras palavras,
contradições parciais e "disfunções",
ainda que severas em si mesmas, podem ser deslocadas e tornadas difusas
dentro dos
limites últimos
ou
estruturais
do sistema
e neutralizadas, assimiladas, anuladas pelas forças ou tendências
contrárias, que podem até mesmo ser transformadas em força
que activamente sustenta o sistema em questão. Daí o problema da
acomodação reformista. Todavia, tudo isso deveria ser mantido em
perspectiva, em contraste com as teorias grotescamente exageradas da
"integração da classe trabalhadora" que estavam em voga
havia não muito tempo. A integração inegável da
liderança da maioria dos partidos e sindicatos da classe trabalhadora
não deveria ser confundida com a hipostatizada
mas estruturalmente impossível
integração do trabalho como tal no sistema do capital.
Ao mesmo tempo, deve-se sublinhar que, quando as opções
múltiplas de ajuste interno começam a ser esvaziadas, nem mesmo a
"maldição da interdependência" (que tende a
paralisar as forças de oposição) pode prevenir a
desintegração estrutural final. Naturalmente, dado o
carácter intrínseco das estruturas envolvidas, é
inconcebível pensar em tal desintegração como um acto
súbito a ser seguido por uma transformação igualmente
veloz. A crise estrutural "rastejante" que, entretanto,
avança implacavelmente só pode ser entendida como um
processo contraditório de
ajustes recíprocos
(uma espécie de "guerra de atrito"),
que só pode ser concluído após um longo e doloroso
processo de
reestruturação radical
inevitavelmente ligado às suas próprias
contradições.
18.2.2
No que se refere ao mundo do capital, as manifestações da crise
estrutural podem ser identificadas nas suas várias dimensões
internas, bem como nas instituições políticas. Como
acentuou Marx repetidamente, está na natureza do capital superar as
barreiras que encontra:
A tendência a criar o mercado mundial está presente directamente
no próprio conceito do capital. Todo o limite aparece como uma barreira
a ser superada. Inicialmente, para subjugar todo o momento da
produção em si à troca e para suspender a
produção de valores de uso directo que não participam da
troca... Mas o facto de que o capital define cada um destes limites como uma
barreira e, consequentemente, avance idealmente para além dela
não significa, de modo algum, que a tenha realmente superado, e,
já que toda a barreira contradiz o seu carácter, a sua
produção move-se em contradições que são
constantemente superadas, mas da mesma maneira são constantemente
repostas. Além disso, a universalidade que persegue irresistivelmente
encontra barreiras na sua própria natureza, que, em certa fase de seu
desenvolvimento, permite que ele se reconheça como sendo, ele
próprio, a maior barreira a esta tendência, e consequentemente o
impulsionará para sua própria suspensão.
[10]
No curso do desenvolvimento histórico real, as três
dimensões fundamentais do capital
produção, consumo e
circulação/distribuição/realização
tendem a fortalecer-se e a ampliar-se por um longo tempo, provendo
também a motivação interna necessária para a sua
reprodução dinâmica recíproca em escala cada vez
mais ampliada. Desse modo, em primeiro lugar, são superadas com sucesso
as limitações
imediatas
de cada uma, graças à interacção entre elas. (Por
exemplo, a barreira imediata para a produção é
positivamente superada pela expansão do consumo e vice-versa.) Assim, os
limites parecem verdadeiramente ser meras barreiras a serem transcendidas, e as
contradições imediatas não são apenas deslocadas,
mas directamente utilizadas como alavancas para o aumento exponencial no poder
aparentemente ilimitado de auto-propulsão do capital.
Realmente, não pode haver qualquer crise
estrutural
enquanto este mecanismo vital de auto-expansão (que simultaneamente
é o mecanismo para transcender ou deslocar internamente as
contradições) continuar funcionando. Pode haver todos os tipos de
crises, de duração, frequência e severidade variadas, que
afectam directamente uma das três dimensões e
indirectamente,
até que o obstáculo seja removido, o sistema como um todo, sem,
porém, colocar em questão os
limites últimos
da estrutura global. (Por exemplo, a crise de 1929-33 foi essencialmente uma
"crise de realização", devido ao nível
absurdamente baixo de produção e consumo se comparado ao
período pós-guerra.)
Certamente, a crise estrutural não se origina por si só em alguma
região misteriosa: reside dentro e emana das três dimensões
internas acima mencionadas. Não obstante, as disfunções de
cada uma, consideradas separadamente, devem ser distinguidas da crise
fundamental do todo, que consiste no
bloqueio sistemático
das partes constituintes vitais.
É importante fazer esta distinção porque, dadas as
inter-conexões objectivas e as determinações
recíprocas em circunstâncias específicas, até mesmo
um bloqueio temporário de
um
dos canais internos pode emperrar todo o sistema com relativa facilidade,
criando desse modo a
aparência
de uma crise estrutural, quando surgem algumas estratégias voluntaristas
resultantes da percepção equivocada de um bloqueio
temporário como crise estrutural. Neste contexto vale lembrar a
avaliação fatalmente optimista de Estaline da crise do final da
década de 1920, de consequências devastadoras para as suas
políticas tanto no plano interno como no plano internacional.
18.2.3
Outra concepção equivocada a ser abandonada é a de que a
crise estrutural se refere a algumas condições
absolutas.
Não é assim. Certamente, todas a três dimensões
fundamentais do funcionamento continuado do capital têm os seus limites
absolutos que podem ser claramente identificados. (Por exemplo, os limites
absolutos da produção podem ser expressos pelos meios e materiais
de produção, os quais, por sua vez, podem ser melhor
especificados como o colapso total do suprimento das matérias-primas
fundamentais. Ainda como o colapso igualmente total não apenas a
"subutilização"
da maquinaria produtiva disponível decorrente, por exemplo, do abuso
irresponsável e inconsequente dos recursos energéticos.) Mas,
apesar de tais considerações não serem certamente
irrelevantes, elas sofrem da carência de especificidades sociais (como
testemunham muitos argumentos dos ambientalistas), que debilitam
desnecessariamente as suas próprias armas criticas ao associá-las
às expectativas do dia de um juízo final que
jamais
se materializará necessariamente.
A crise estrutural do capital
que começamos a experimentar nos anos 70 relaciona-se, na realidade, com
algo muito mais modesto que as tais condições absolutas.
Significa simplesmente que a tripla dimensão interna da
auto-expansão do capital exibe perturbações cada vez
maiores. Ela não apenas tende a romper o processo normal de crescimento
mas também pressagia uma falha na sua função vital de
deslocar as contradições acumuladas do sistema.
As dimensões internas e condições inerentes
à
auto-expansão do capital constituíram desde o início uma
unidade
contraditória,
e de modo algum não problemática, na qual uma tinha que ser
"subjugada" à outra (como Marx colocou: para "subjugar
todo o momento da produção em si à troca") de modo a
fazer funcionar o complexo global. Ao mesmo tempo, enquanto a
reprodução ampliada de cada uma pudesse continuar imperturbada
isto é, enquanto fosse possível cavar buracos cada vez
maiores
para encher com a terra assim obtida os buracos menores cavados anteriormente
, não só cada uma das dimensões internas
contraditórias poderia ser fortalecida separadamente como elas
também poderiam funcionar em uma harmonia "contra-pontual".
A situação muda
radicalmente, porém, quando os interesses de cada uma deixam de
coincidir com os das outras, até mesmo em última análise.
A partir deste momento, as perturbações e
"disfunções" antagónicas, ao invés de
serem absorvidas/dissipadas/desconcentradas e desarmadas, tendem a tornar-se
cumulativas
e, portanto,
estruturais,
trazendo com elas um perigoso bloqueio ao complexo mecanismo de
deslocamento das contradições.
Desse modo, aquilo com que nos confrontamos não é mais
simplesmente "disfuncional", mas potencialmente muito explosivo. Isto
porque o capital nunca, jamais,
resolveu
sequer a menor de suas contradições.
Nem poderia fazê-lo, na
medida em que, por sua própria natureza e constituição
inerente, o capital nelas
prospera
(até certo ponto, com relativa segurança). O seu modo normal de
lidar com contradições é intensificá-las,
transferi-las para um nível mais elevado, deslocá-las para um
plano diferente, suprimi-las quando possível, e quando elas não
puderem mais ser suprimidas exportá-las para uma esfera ou um
país diferente. É por isso que o crescente bloqueio no
deslocamento e na exportação das contradições
internas do capital é potencialmente tão perigoso e explosivo.
Desnecessário dizer que esta crise estrutural não está
confinada à esfera sócio-económica. Dadas as
determinações inevitáveis do "círculo
mágico" do capital referidas anteriormente, a profunda crise da
"sociedade civil" reverbera ruidosamente em todo o espectro das
instituições políticas. Nas condições
sócio-económicas crescentemente instáveis, são
necessárias novas "garantias políticas", muito mais
poderosas, garantias que não podem ser oferecidas pelo Estado
capitalista tal como se apresenta hoje. Assim, o desaparecimento ignominioso do
Estado do bem-estar social expressa claramente a aceitação do
facto de que
a crise estrutural de todas as instituições políticas
já vem fermentando sob a crosta da "política de
consenso" há bem mais de duas décadas. O que precisa ser
acentuado aqui é que as contradições subjacentes de modo
algum se dissipam na crise das instituições
políticas;
ao contrário, afectam toda a sociedade de um modo nunca antes
experimentado. Realmente, a crise estrutural do capital revela-se como uma
verdadeira
crise de dominação
em geral.
Quem acha que isto soa muito dramático deveria olhar à sua volta,
em todas as direcções. É possível encontrar
qualquer esfera de actividade ou qualquer conjunto de relações
humanas não afectado pela crise? Há cento e quarenta anos
atrás, Marx ainda podia falar sobre "a grande influência
civilizadora do capital", sublinhando que, por meio dela,
pela primeira vez, a natureza se torna puramente um objecto para a humanidade,
puramente uma questão de utilidade; cessa de ser reconhecida como um
poder em si mesma; e descoberta teórica de suas leis autónomas
aparece apenas como um ardil para submetê-la às necessidades
humanas, como um objecto de consumo ou como meio de produção. De
acordo com esta tendência, o capital ultrapassa as barreiras e os
preconceitos nacionais, a adoração da natureza, assim como
também todas as satisfações tradicionais, limitadas,
complacentes embutidas, das necessidades presentes e as
reproduções dos velhos modos devida.
[11]
E para onde tudo isto conduz? O capital não pode ter outro objectivo que
não a sua própria auto-reprodução, à qual
tudo, da natureza a todas as necessidade e aspirações humanas,
deve subordinar-se absolutamente.
Assim, a influência civilizadora encontra o seu fim devastador no momento
em que a implacável lógica interna da
auto-reprodução
ampliada do capital encontra obstáculo nas necessidades humanas. Em
1981, o orçamento militar nos Estados Unidos chegou aos 300 mil
milhões de dólares, (e quem sabe quanto mais além disso,
sob vários outros disfarces orçamentais), e isso desafia a
compreensão humana. Ao mesmo tempo, os serviços sociais mais
elementares são submetidos a duros testes: uma medida verdadeira do
"trabalho civilizador" do capital hoje. Contudo, mesmo tais somas e
cortes estão muito longe de serem suficientes para permitir ao capital
seguir imperturbável o seu caminho: uma das provas mais evidentes da
crise de dominação.
A devastação sistemática da natureza e a
acumulação continua do poder de destruição
para as quais se destina globalmente uma quantia superior a um
milhão de milhões de
dólares por ano indicam o lado material amedrontador da
lógica absurda do desenvolvimento do capital. Ao mesmo tempo, ocorre a
negação completa das necessidades elementares de
incontáveis milhões de famintos: o lado esquecido e que sofre
consequências dos milhões de milhões desperdiçados.
O lado humano paralisante deste desenvolvimento é visível
não só na obscenidade do "subdesenvolvimento"
forçado,
mas em toda a parte, inclusive na maioria dos países de capitalismo
avançado.
O sistema de dominação existente está em crise porque a
sua
raison d'être
e a sua justificação históricas desapareceram, e já
não podem mais ser reinventadas, por maior que seja a
manipulação ou a pura repressão. Desse modo, ao manter
milhões excluídos e famintos, quando os milhões de
milhões
desperdiçados poderiam alimentá-los mais de
cinquenta vezes,
põe o absurdo desse sistema de dominação em perspectiva.
O mesmo é verdade para tantas outras grandes questões humanas que
começaram a mobilizar as pessoas há relativamente pouco tempo.
Durante décadas, a literatura sociológica produziu
simpáticos contos de fadas sobre o "conflito de
gerações" (que, no verdadeiro espírito do "fim
da ideologia", tentou transformar os graves sinais das
contradições de classe em nobres vicissitudes de
gerações intemporais); agora eles têm realmente sobre o que
escrever. No entanto, os esquemas pré-fabricados de
mistificação psico-sociológica não se ajustam ao
quadro real. Isso porque o assim chamado conflito de gerações, no
momento em que foi apologeticamente circunscrito, já estava solucionado,
na medida em que toda a "rebelião da juventude"
evoluía, no devido tempo, para a maturidade sensata dos pagamentos da
hipoteca e da acumulação de uma poupança para a velhice,
de modo a garantir uma existência cómoda até à
sepultura, e mesmo para além dela, pela reprodução eterna
das novas "gerações" do capital. Quaisquer que fossem
as dificuldades apresentadas pela natureza
e a noção de "geração" supostamente
deveria ser simplesmente uma categoria da natureza
, a auto-tranquilização vinha da ideia de que o capital,
graças a Deus, seria, como de costume, a solução.
Porém, a verdade tornou-se o exacto oposto, já que o capital
não apenas não soluciona como ainda
gera
o conflito real de gerações em escala sempre crescente. Em todo o
país capitalista importante, nega-se oportunidade do trabalho para
milhões de homens, obliterando sem cerimónia a lembrança
não tão antiga das diferenças com a cultura jovem",
ao mesmo tempo em que espreme até a última gota de lucro das
sobras de tal cultura. Ao mesmo tempo, alguns milhões de pessoas mais
velhas são forçadas a juntar-se às filas de
doações aos necessitados, enquanto muitos milhões a mais
estão sob a imensa pressão de uma "reforma prematura da qual
a secção mais dinâmica do capital contemporâneo
o capital financeiro
pode sugar durante algum tempo ainda um pouco mais de lucro. Assim, o grupo
etário da "geração útil" está
encolhendo para uma faixa entre 25 e 50 anos, opondo-se
objectivamente
às "gerações indesejadas", condenadas pelo
capital à inactividade obrigada e à perda da sua humanidade. E,
então, já que agora a geração intermediária
é comprimida entre "jovens
e
"velhos inúteis"
até que ela própria se torne supérflua quando assim
determinar o capital até mesmo os planos temporais destas
contradições se tornam absolutamente confusos.
Tipicamente, as soluções propostas nem sequer arranham a
superfície do problema, sublinhando, novamente, que estamos à
frente de uma contradição interna insolúvel do
próprio capital. O que está realmente em jogo é o papel do
trabalho no universo do capital, uma vez que se tenha alcançado um
nível muito alto de produtividade. Para resolver as
contradições assim geradas, seria necessária uma
importante reviravolta, que afectasse não apenas as próprias
condições imediatas de trabalho, mas também todas as
facetas da vida social, inclusive as mais íntimas. O capital, ao
contrário, pode produzir somente as condições materiais
necessárias para o desenvolvimento do indivíduo social
autónomo, de modo a negá-las imediatamente. Também as nega
materialmente quando ocorrem crises económicas, bem como política
e culturalmente quando é do interesse de sua própria e
contínua sobrevivência como estrutura final de
dominação.
Considerando que o capital só pode funcionar por meio de
contradições, ele tanto cria como destrói a
família; produz a geração jovem economicamente
independente com a sua "cultura jovem" e arruína-a; gera as
condições de uma velhice potencialmente confortável, com
reservas sociais adequadas, para sacrificá-las aos interesses de sua
infernal maquinaria de guerra. Seres humanos são, ao mesmo tempo,
absolutamente necessários e totalmente supérfluos para o capital.
Se não fosse pelo facto de que o capital necessita do trabalho vivo para
a sua auto-reprodução ampliada, o pesadelo do holocausto da bomba
de neutrões certamente se tornaria realidade. Mas, já que tal
"solução final" é negada ao capital, somos
confrontados com as consequências desumanizadoras das suas
contradições e com a crise crescente do sistema de
dominação.
É possível que tal desumanização não seja
tão óbvia quanto a que se reflecte na luta cada vez mais intensa
pela libertação das mulheres. Foram irreparavelmente
destruídos os fundamentos económicos da antiga
justificação histórica da opressão das mulheres, e
o próprio avanço produtivo do capital desempenhou aí um
papel central. Mas, novamente, podemos perceber as contradições
inerentes. Em um sentido para seus próprios propósitos
o capital ajuda a liberar as mulheres para melhor poder
explorá-las como membros de uma força de trabalho muito mais
variada e convenientemente "flexível". Ao mesmo tempo, precisa
manter a sua subordinação social noutro plano para a
reprodução sem problemas da força de trabalho e para a
perpetuação da estrutura familiar predominante
a fim de salvaguardar a sua própria dominação como
senhor absoluto do próprio sócio-metabolismo.
Assim, evidencia-se claramente que os sucessos parciais podem se evaporar de um
momento para o outro
as mulheres estão entre as primeiras a serem forçados ao
desemprego ou a empregos parciais miseravelmente remunerados já
que os interesses
globais
do capital predominam sobre os mais limitados. Dado o facto de que a
questão real é o sistema existente de dominação e
que os sucessos significativos da liberação feminina
obrigatoriamente abrem nele profundas brechas, minando a sua viabilidade,
qualquer coisa que não possa ser mantida estritamente dentro de limites
fixados pela busca de lucro deve ser reprimida. Ao mesmo tempo, o importante
envolvimento do capital na destruição de toda a
justificação económica da opressão das mulheres
torna impossível solucionar este problema por meio de um mecanismo
económico.
(Na realidade, puramente em termos económicos, o equilíbrio
aponta frequentemente na direcção oposta, contribuindo assim para
o aguçamento desta contradição.)
Uma vez que a família é o verdadeiro microcosmos da sociedade
cumprindo, além de suas funções imediatas, a
necessidade
de assegurar a continuidade da propriedade,
à
qual se acrescenta o seu papel como a unidade básica de
distribuição e a sua capacidade de agir como a "correia de
transmissão" da estrutura de valor predominante na sociedade
a causa da liberação das mulheres afecta directa ou
indirectamente a totalidade das relações sociais em toda a sua
fragilidade.
Neste particular, o aparente impasse actual, sob a pressão imediata da
crise económica, é bastante enganador. Isso porque, considerando
o facto de uma perspectiva de tempo mais longa, podemos observar uma
mudança dramática, na medida em que a família de
três
gerações que tínhamos antes da última guerra se
transformou efectivamente agora numa família de
uma geração:
com todas as suas consequências altamente benéficas para a
expansão da economia de consumo.
Mas nem mesmo isso é mais suficiente. Daí as pressões
contraditórias por mudanças adicionais ainda que, na
realidade, se tenham esgotado as possibilidades de tais mudanças
enquanto se mantiver a actual estrutura familiar assim como
pressões igualmente fortes para, no sentido oposto, restabelecer os
velhos "valores da família" patriarcal, no interesse da
sobrevivência continuada do capital. São a presença e a
intensidade simultâneas de forças que pressionam irresistivelmente
em direcções opostas que fazem da actual crise estrutural do
capital uma verdadeira crise de dominação.
18.2.4
Em comparação com tudo isso, a crise de 1929-33 evidentemente foi
de um tipo muito diferente. Por mais severa e prolongada que tenha sido, ela
afectou um número limitado de dimensões complexas e de mecanismos
de autodefesa do capital, conforme o estado relativamente subdesenvolvido das
suas potencialidades globais na ocasião. Mas, antes que essas
potencialidades pudessem ser desenvolvidas completamente, alguns importantes
anacronismos políticos precisaram de ser eliminados, o que se percebeu
durante a crise com brutal clareza e implicações de longo alcance.
Ao estourar a crise em 1929, o capital havia alcançado as fases finais
de sua transição da "totalidade extensiva" para a
incansável descoberta e exploração dos territórios
escondidos da "totalidade intensiva", como resultado do grande
impulso produtivo recebido durante a Primeira Guerra Mundial e durante o
período de
reconstrução do pós-guerra. Embora os diferentes
países tenham sido afectados de formas diferentes (dependendo do grau
relativo de desenvolvimento do capital e da sua situação como
vencedores ou perdedores), as novas contradições emergiram
essencialmente porque os avanços produtivos qualitativos do
período já não podiam ser contidos nos limites das
relações de poder historicamente antiquadas da "totalidade
extensiva" predominante.
No final da década de 1870, Marx já havia observado que o capital
nos Estados Unidos representava de longe a força mais dinâmica do
sistema global: uma verdade que se tornou ainda mais evidente meio
século depois, na década de 1920. Mas, apesar do papel vital que
o capital americano desempenhou para se vencer a guerra, o
status quo
político da dominação global ainda em vigor (estabelecido
muito tempo antes) condenava-o a ser quase um segundo violino do imperialismo
britânico: anacronismo que, obviamente, não pôde ser
tolerado indefinidamente.
Não surpreendentemente, portanto, o imperativo de um novo início
cristalizou-se durante a "Grande Crise Mundial". As pressões
devastadoras dessa crise aparentemente sem fim tornaram abundantemente claro
que o capital dos Estados Unidos tinha que remodelar todo o mundo do capital
à sua própria imagem, mais dinâmica, e que não havia
outra alternativa, caso se quisesse superar não somente as
condições criticas imediatas, mas também a perspectiva de
uma depressão crónica. Por isso, sob a intensa retórica do
Discurso Inaugural de Roosevelt em 1933, a mensagem realmente significativa foi
a perspectiva radicalmente nova do colonialismo
neo-capitalista
sob a hegemonia americana. Nele se previram, não apenas as
frustrações de Churchill durante a guerra como os acordos de
Yalta, mas também, e acima de tudo, previu-se a absorção,
para todos os fins e propósitos, dos impérios britânico e
francês pelos interesses mais altos da "totalidade intensiva"
do capital e a relegação das modalidades historicamente velhas de
imperialismo e colonialismo à segunda divisão, o lugar que
efectivamente lhes cabia.
A mitologia liberal gosta de se lembrar de Roosevelt como "homem do
povo" e defensor incansável do "New Deal". Na verdade,
porém, a sua reivindicação de fama histórica
duradoura, mesmo que duvidosa, apoia-se no facto de ter sido um representante
de visão ampla do dinamismo recém-encontrado do capital, em
virtude do seu papel pioneiro de elaborar a estratégia global e de
habilmente lançar as fundações práticas do
neo-colonialismo.
Isto significou um ataque em duas frentes para a construção de
uma nova orientação verdadeiramente
global.
Como o imperativo de um novo início havia surgido com base no grande
avanço produtivo e na crise criada por sua interrupção, a
nova estratégia envolveu, em relação a seus termos de
referência domésticos, a exploração plena de todos
os territórios ocultos do "colonialismo interno": daí o
"New Deal" e o desenvolvimento em bases mais seguras de uma economia
de consumo em expansão. Ao mesmo tempo, a necessidade de assegurar e
necessariamente proteger a expansão contínua da base
económica doméstica implicou a remoção cruel de
todas as "barreiras artificiais" do colonialismo passado (e do
capitalismo proteccionista subdesenvolvido correspondente).
Esta estratégia neocolonialista de conquistar a "totalidade
intensiva" representava também uma concepção
verdadeiramente
global
ao tentar acertar as contas com a União Soviética, não
só em seu próprio interesse, mas para estar em melhor
posição para controlar os movimentos anti-coloniais que emergiam.
Naturalmente, esperava-se que tudo isso tivesse sucesso sob a
inquestionável hegemonia do capital dos Estados Unidos, que mais tarde
propagandearia, com típica vulgaridade, sua arrogante
autoconfiança ao insistir que o século XX era "o
século americano". E, claro, devido ao dinamismo inerente à
forma historicamente mais
avançada de capital, a "nova ordem mundial" (e sua "nova
ordem económica") supostamente deveria surgir e permanecer connosco
para sempre pela acção de forças e
determinações puramente
económicas:
assim afirmava a retórica, desde o primeiro Discurso Inaugural de
Roosevelt até ao "fim da ideologia".
Contudo, os factos expressaram-se de modo totalmente diferente, na medida em
que puseram amargamente em relevo uma das maiores ironias da história,
qual seja: embora houvesse um dinamismo económico incomparável e
um novo avanço produtivo de proporções potencialmente
enormes nas raízes da estratégia rooseveltiana original, sua
implementação real
longe de se satisfazer com mecanismos
económicos
tal como ocorre ainda hoje com o persistente mito da
"modernização" exigiu, para sua
"descolagem", a guerra mais devastadora conhecida pelos homens, a
Segunda Guerra Mundial, para não mencionar o aparecimento e a
dominação do "complexo industrial-militar" no seu
"percurso até a maturidade".
Se o capital americano teve muito mais que a simples iniciativa de todos estes
envolvimentos
que ele na verdade dominou completamente do início ao fim, assegurando
para si uma posição de vantagem esmagadora pela qual pode
contabilizar enormes défices orçamentais pagos pelo resto do
mundo ,
eles afectaram e beneficiaram o "capital social total"
(constituído como uma entidade global) no seu pulso para a
auto-expansão e a dominação.
Com certeza, vários componentes nacionais da totalidade do capital
sofreram derrotas imediatas humilhantes, mas só para se levantarem mais
fortes das cinzas da desintegração temporária. Neste
particular, os "milagres" alemão e japonês falam por si
mesmos. Em outros casos, principalmente o do capital britânico, o pacto
foi muito mais complicado, por uma variedade de razões, que se referem
principalmente à luta de retaguarda contra a dissolução do
Império britânico. Mas, mesmo nesses casos, não resta
dúvida de que, no final, um grau não desprezível de
reestruturação dinâmica ocorreu sob o desafio americano.
Os resultados globais destas transformações foram uma
significativa
racionalização do capital global
e o estabelecimento de uma estrutura de relações financeiras e
económicas com o Estado que foi, em geral, muito mais adequada ao
deslocamento de muitas contradições do que a estrutura
anteriormente existente.
18.2.5
Assim, a crise de 1929-33 não foi de modo algum uma crise estrutural do
capital na formação global. Pelo contrário, forneceu o
estímulo e pressão necessários para o re-alinhamento das
suas várias forças constituintes, conforme as
relações de poder objectivamente alteradas, muito contribuindo,
desse modo, para o desenvolvimento das tremendas potencialidades do capital
inerentes à sua "totalidade intensiva".
Externamente
isto significou:
(1) uma mudança
dramática do imperialismo multi-centrado, ultrapassado, militar e
político perdulariamente intervencionista para um sistema de
dominação global que, sob a hegemonia norte-americana, se torna
muito mais dinâmico e economicamente muito mais viável e integrado;
(2) o estabelecimento do Sistema
Monetário Internacional e de vários outros órgãos
importantes de regulamentação das relações
inter-capitais incomparavelmente mais racionais do que havia à
disposição da estrutura multi-centrada;
(3) a exportação
de capital em grande escala (e com ela a perpetuação mais
efectiva da dependência e do 'subdesenvolvimento" imposto) e o
repatriamento seguro, em escala astronómica, de taxas de lucro
totalmente inimagináveis nos países de origem; e
(4) a incorporação
relativa, em graus variados, das economias de todas as sociedades
pós-capitalistas na estrutura de intercâmbios capitalistas.
Por outro lado,
internarmente,
a história de sucesso do capital poderia ser descrita em termos de:
(1) uso de várias modalidades de
intervenção estatal para a expansão do capital privado;
(2) transferência de
indústrias privadas falidas, mas essenciais, para o sector
público, e a sua utilização para novamente apoiar,
através dos fundos estatais, as operações do capital
privado, para serem novamente transformadas em monopólios ou
quase-monopólios privados depois de se terem tornado mais uma vez
altamente lucrativas pela injecção de fundos volumosos
financiados pela tributação geral;
(3) desenvolvimento e
operação bem sucedidos de uma economia de "pleno
emprego" durante a guerra e por um período considerável
depois dela;
(4) larga abertura de novos
mercados e ramos de produção no plano da "economia de
consumo" fortemente distendida, junto com o sucesso do capital em gerar e
sustentar padrões extremamente perdulários de consumo,
força motivadora vital de tal economia; e
(5) para coroar tudo isso, tanto
no porte de seu peso económico como na sua significação
política, estabelecimento de um imenso "complexo
industrial/militar" como controlador e beneficiário directo da
fracção mais importante da intervenção estatal: com
isso, simultaneamente, o isolamento de bem mais de um terço da economia
das desconfortáveis flutuações e incertezas do mercado.
Apesar de o valor intrínseco de todas estas realizações
ser extremamente problemático (para dizer o mínimo), não
pode haver dúvida quanto ao significado da auto-expansão
dinâmica do capital e sua contínua sobrevivência.
Precisamente por causa da sua importância central nos desenvolvimentos
capitalistas do século XX, a severidade da crise estrutural de hoje
é fortemente realçada pelo facto de várias das
características mencionadas acima já não serem mais
verdades, e de as tendências subjacentes apontarem na
direcção da sua completa reversão: a tendência a um
novo policentrismo (pense-se no Japão e na Alemanha, por exemplo), com
consequências potencialmente incalculáveis, a um persistente
desemprego de massa (e suas implicações óbvias para a
economia de consumo) e à desintegração ameaçadora
do tema monetário internacional e seus corolários. Seria tolice
considerar permanentes as posições poderosamente fortificadas do
complexo industrial-militar e sua capacidade de extrair e alocar para si mesmo,
imperturbado, o excedente necessário para seu funcionamento
contínuo na escala actual, ainda astronómica.
Algumas pessoas argumentam que, assim como conseguiu resolver os seus problemas
no passado, o capital o fará indefinidamente também no futuro.
Poderiam acrescentar que, se a crise de 1929-33 impôs ao capital
mudanças dramáticas, que vimos testemunhando desde então,
a crise estrutural actual deverá produzir remédios duradouros e
soluções permanentes. O problema deste raciocínio é
que ele não conta com absolutamente nada para respaldar o
sonho inviável
de perseguir a "linha de menor resistência" quando isso
não mais é possível.
Embora seja vazio e perigoso argumentar a partir de meras analogias com o
passado, torna-se auto-contraditório fazê-lo quando o assunto em
questão é precisamente a crise estrutural e o colapso de alguns
mecanismos e determinações até agora vitais, que se
manifestam sob a forma da própria crise de controlo e
dominação estabelecida. Podem-se especificar as
condições para uma solução da crise actual, como
veremos mais adiante. Portanto, a menos que se possa demonstrar que as
tendências contemporâneas de desenvolvimento do capital podem
realmente satisfazer estas condições, toda a conversa sobre a sua
capacidade intrínseca de sempre resolver os seus problemas será
apenas um "assobiar no escuro" para afugentar o medo.
Outra linha de argumentação insiste que o capital tem à
sua disposição uma imensa força repressiva que pode usar
livremente, tanto quanto quiser, na resolução dos seus crescentes
problemas. Embora haja certas restrições
algumas até importantes
ao uso real, e potencial, de força bruta pelo capital, é
inquestionável que a capacidade de destruição e
repressão acumuladas é assustadora, e continua a multiplicar-se.
Mesmo assim, mantém-se a verdade de que nada se resolve, nem jamais foi
resolvido, apenas pela força. Lendas em contrário
relativas ao nazismo e ao estalinismo, por exemplo
são frequentemente usadas para justificar a cumplicidade mais ou menos
activa de sectores importantes da população supostamente
impotentes.
Além disso, há uma consideração ainda mais
importante que se refere às características inerentes ao
próprio capital. O capital é uma força extremamente
eficiente para mobilizar os complexos recursos produtivos de uma sociedade
muito fragmentada. Não importa ao capital em quantas partes: o seu
grande recurso é precisamente a capacidade de lidar com a
fragmentação. Porém, o capital definitivamente não
é um sistema de
emergência
unificadora, nem poderia sê-lo a longo prazo, devido à sua
própria constituição interna. Não é de modo
algum acidental que formações estatais como as fascistas
só sejam viáveis hoje na periferia do sistema do capital global,
subordinadas a algum centro "metropolitano" liberal
democrático e dele dependentes.
Assim, por maior que seja o êxito temporário das tentativas
autoritárias de "punho de ferro" em atrasar ou adiar o
"momento da verdade"
e as probabilidades de tais êxitos a curto prazo não devem ser
subestimadas num prazo mais longo elas podem somente agravar a crise. Os
problemas estruturais descritos acima equivalem a um importante entrave no
sistema global de produção e distribuição. Dada a
sua condição de entrave, exigem remédios estruturais
adequados, e não a sua multiplicação através de
adiamentos forçados e de repressão. Por outras palavras, estes
problemas requerem uma intervenção positiva no próprio
processo produtivo problemático para enfrentar as suas
contradições perigosamente crescentes, para removê-los
à medida que o permita o ritmo da reestruturação real.
Contra isto, é absurdo sugerir a possibilidade de o capital recorrer,
enquanto isto ainda é possível, à dominação
por meio de um estado de
emergência
completamente instável, portanto necessariamente
efémero
como condição
permanente
de sua
normalidade
futura.
18.2.6
As condições para administrar a crise estrutural do capital
estão directamente articuladas a algumas importantes
contradições que afectam tanto os problemas internos dos
vários sistemas envolvidos como as relações entre eles.
Resumidamente, tais problemas seriam:
(1) As
contradições socio-económicas internas do capital
"avançado" que se manifestam no desenvolvimento cada vez mais
desequilibrado sob o controlo directo ou indirecto do "complexo
industrial-militar" e do sistema de corporações
transnacionais;
(2) As contradições sociais, económicas
e políticas das
sociedades pós-capitalistas, tanto isoladamente como na sua
relação com as demais, que conduzem à sua
desintegração e, desse modo, à
intensificação da crise estrutural do sistema global do capital;
(3) As rivalidades,
tensões e contradições crescentes entre os países
capitalistas mais importantes, tanto no
interior
dos vários sistemas regionais como
entre
eles, colocando enorme tensão na estrutura institucional estabelecida
(da Comunidade Europeia ao Sistema Monetário Internacional) e fazendo
prever o espectro de uma devastadora guerra comercial;
(4) As dificuldades crescentes
para manter o sistema neo-colonial de dominação (do Irão
à África, do Sudeste Asiático à Ásia
Oriental, da América Central à do Sul), ao lado das
contradições geradas dentro dos países
"metropolitanos" pelas unidades de produção
estabelecidas e administradas por capitais "expatriados".
Como podemos ver, em todas as quatro categorias
cada uma das quais corresponde a uma multiplicidade de
contradições a tendência é para a
intensificação, e não para a diminuição, dos
antagonismos existentes. Além disso, a severidade da crise é
acentuada pelo efectivo confinamento da intervenção à
esfera dos
efeitos,
tornando proibitivo atacar as suas
causas,
graças à "circularidade" do capital, mencionada acima,
entre Estado político e sociedade civil, por meio da qual as
relações de poder estabelecidas tendem a reproduzir-se em todas
as suas transformações superficiais.
Dois exemplos importantes ilustram conclusivamente esse facto. O primeiro
refere-se ao complexo industrial-militar, o segundo à crónica
insolubilidade dos problemas do "subdesenvolvimento".
Há muita esperança de criação de recursos para uma
expansão económica positiva e viável por meio da
re-alocação de uma parte importante da despesa militar para
medidas e propósitos sociais há muito imprescindíveis.
Porém, a frustração permanente dessas esperanças
resulta tanto do imenso peso económico e do evidente poder estatal do
complexo industrial-militar como do facto de que este complexo é antes
manifestação e efeito do que causa das profundas
contradições estruturais do capital "avançado".
Naturalmente, uma vez que exista, continua
também
a funcionar como uma causa contribuinte tanto maior quanto maior o seu
poder económico e político mas não como a causa que
as produz. Do ponto de vista do capital contemporâneo, se o complexo
industrial-militar não existisse, teria de ser inventado. (Como
mencionado antes, de certo modo o capital simplesmente
"tropeçou" nesta solução durante a guerra,
depois da tentativa um tanto ingénua de Roosevelt de
reculer pour mieux sauter
da plataforma do
New Deal,
que de facto resultou num avanço muito pequeno no meio de uma
depressão que não se abateu.)
O complexo industrial-militar cumpre com grande eficiência duas
funções vitais deslocando temporariamente duas poderosas
contradições do capital "super-desenvolvido".
A primeira, mencionada há pouco, é a transferência de uma
porção significativa da economia das incontroláveis e
traiçoeiras forças do mercado para as águas seguras do
altamente lucrativo financiamento estatal. Ao mesmo tempo mantém intacta
a mitologia da empresa privada economicamente superior e
eficiente nos custos
graças à absolvição
a priori
do desperdício
total
e da
falência estrutural
pela ideologia de fervor patriótico.
A segunda função não é menos importante: deslocar
as contradições devidas
à taxa decrescente de utilização
[15]
que se evidenciaram dramaticamente durante as últimas décadas de
desenvolvimento nos países de capitalismo avançado.
É por isso que, enquanto não se encontrar uma alternativa
estrutural para lidar com os fundamentos causais das contradições
aqui mencionadas e que foram deslocadas com sucesso, a esperança de uma
simples re-alocação dos recursos prodigiosos, agora investidos no
complexo industrial-militar, fatalmente será anulada pelas
determinações causais prevalecentes.
O mesmo é verdade para os problemas insolúveis do
"subdesenvolvimento" forçado. Naturalmente, seria adequado que
o "capital esclarecido"
uma verdadeira contradição em termos
estendesse a sua esfera de operação a todos os poros da sociedade
"subdesenvolvida", activando plenamente os seus recursos materiais e
humanos no interesse de sua auto-expansão renovada. Daí os
esforços das
Comissões Brandt
e de iniciativas semelhantes que conseguem expressar um grande número de
verdades parciais enquanto deixam de perceber a verdade global: o mundo
"subdesenvolvido"
já
está completamente integrado no mundo do capital, e cumpre nele
várias funções vitais. Assim, podemos novamente ver uma
tentativa de aliviar os
efeitos
do modo dominante de integração deixando intactas as suas
determinações causais.
Tais propostas irreais ignoram sistematicamente que é absolutamente
impossível manter os pés nas duas canoas: manter a
existência do sistema de produção absurdamente ampliado e
"super-desenvolvido" do capital "avançado" (o qual
depende necessariamente da continuação da dominação
de um "vasto território" de subdesenvolvimento forçado)
e, ao mesmo tempo, impelir o "Terceiro Mundo" a um alto nível
de desenvolvimento capitalista (que apenas poderia reproduzir as
contradições do capital ocidental "avançado",
multiplicadas pelo imenso tamanho da população envolvida).
Os actuais gerentes do capital conhecem muito mais do que de facto aparentam
tal como o fizeram os próprios Edward Heath e Willie Brandt,
quando ainda chefiavam os seus respectivos governos
e desconsideram esses relatórios com o "realismo
cínico que
corresponde directamente à agressiva reafirmação dos
interesses norte-americanos dominantes:
O secretário de Estado dos Estados Unidos disse hoje não ser
realista falar de uma grande transferência de recursos dos países
desenvolvidos para os países em desenvolvimento. A ênfase de Mr.
Haig era utilizar as forças convencionais de mercado [sic!] para aliviar
o sofrimento dos países mais pobres. Deveria haver "um sistema
comercial mais aberto com regras melhoradas". A ajuda estrangeira deveria
ser associada a "uma política nacional e um esforço
próprio sensatos". Na visão dos Estados Unidos isto
significa confiar em incentivos económicos e na liberdade individual.
"A supressão de incentivos económicos acaba por suprimir o
entusiasmo e a criatividade... Os governos que mais favoreceram as liberdades
de seus povos também tiveram mais êxito em assegurar tanto a
liberdade como a prosperidade.
[13]
É realmente uma suprema ironia ouvir um representante
paradigmático do complexo industrial-militar repressor cantar as
virtudes infinitas das "forças de mercado convencionais" e da
"liberdade individual". Infelizmente, porém, esta é
também a indicação de que não há
esperanças de melhorias na esfera dos efeitos, enquanto se permitir que
os determinantes causais do mundo real do capital sigam o seu curso
estabelecido, o qual reproduz
estruturalmente
os mesmos efeitos com gravidade cada vez maior e em escala sempre crescente.
Se a condição para solucionar a crise estrutural estiver amarrada
à solução dos quatro conjuntos de
contradições mencionadas acima, do ponto de vista da
contínua expansão global e da dominação do capital,
a perspectiva de um resultado positivo está longe de ser promissora.
Pois é muito remota a possibilidade de sucesso até mesmo dos
objectivos relativamente limitados, para não mencionar a
solução duradoura das contradições de todas as
quatro categorias em conjunto. O mais provável é, ao
contrário, continuarmos afundando cada vez mais na crise estrutural,
mesmo que ocorram alguns sucessos conjunturais, como aqueles resultantes de uma
relativa "reversão positiva", no devido tempo, de
determinantes meramente
cíclicos
da crise actual do capital.
18.3-
A PLURALIDADE DE CAPITAIS E O SIGNIFICADO DO PLURALISMO SOCIALISTA
18.3.1
Reflectindo sobre os debates do Programa de Gotha, Engels fez sarcasticamente
um comentário sobre o que considerou a influência
deplorável de Wilhelm Liebknecht, o autor principal do Programa:
"Da democracia burguesa ele trouxe e teve uma verdadeira
mania de unificação
[14]
. Dezasseis anos antes, quando do planeado Congresso da Unidade, Marx fez uma
observação semelhante sobre a questão da
unificação, entretanto sem referências pessoais. Ele
reconheceu que "o facto da unificação traz
satisfação aos trabalhadores", mas na mesma sentença
sublinhou que "é um engano acreditar que este sucesso
momentâneo não será comprado a um preço muito alto
[15]
.
É importante lembrar esta atitude céptica para com a
"unidade" e a "unificação" para pôr em
perspectiva a recente defesa do pluralismo. Seria absolutamente incorrecto
tratar deste problema como algo resultante de considerações
puramente tácticas ou dos limites práticos de uma
relação desfavorável de forças que já
não permite a adopção de políticas socialistas
consistentes mas segue, ao contrário, uma estratégia de
complicados compromissos.
Outra dimensão desta problemática é que por muitos anos o
movimento da classe trabalhadora esteve sujeito a pressões de
inspiração estalinista que tentaram impor a "unidade"
para, no interesse do "Partido Líder", suprimir
automaticamente a crítica. Aqueles que se auto-designavam porta-vozes de
tal "unidade" nunca se deram ao trabalho de definir os objectivos
socialistas tangíveis do
Gleichschaltung
(isto é, forçar num molde) organizacional que defendiam, nem de
avaliar
as condições objectivas para formular estratégias
socialistas coordenadas, junto com as imensas dificuldades para a sua
realização.
Há algumas razões muito fortes para que Marx e Engels
considerassem "unidade" e "unificação"
conceitos bastante problemáticos: as divisões e
contradições objectivas existentes nos vários componentes
do movimento socialista. Devido às suas complexas
ramificações internas e internacionais, tais divisões e
contradições simplesmente não poderiam ser removidas por
desejo nem por decreto; menos ainda do que o sonho da Convenção
Francesa do século XVIII de abolir o pauperismo. Não foi
necessário esperar pela erupção do conflito
sino-soviético e pela guerra entre a China e o Vietname para perceber
que a simples proposta ou enunciado da "unidade das forças
socialistas" não traz contribuição alguma para
remover os seus problemas, desigualdades e antagonismos. A tarefa de
desenvolver uma força suficientemente grande para desafiar com sucesso a
força do capital em seu próprio terreno implicou, desde o
início, a necessidade de construir sobre determinadas
fundações, as quais mostram uma grande diversidade e conflito de
interesses, herdadas através da divisão social do trabalho e
pelas taxas de exploração diferenciais há muito dominantes.
Já que o problema era como constituir uma consciência de
massa
socialista com base nas fundações disponíveis,
envolvendo-se simultaneamente nos confrontos inevitáveis para a
realização das finalidades e objectivos
limitados,
tornou-se essencial encontrar uma maneira de preservar a integridade das
perspectivas
últimas
sem perder contacto com as demandas, determinações e
potencialidades
imediatas
das condições historicamente determinadas. Para Bakunin e outros
anarquistas, este problema não existia (assim como não preocupou
a todas as espécies de voluntarismo subsequentes), já que eles
não estavam interessados na produção de uma
consciência de massa socialista. Eles simplesmente admitiam a
convergência espontânea da "consciência instintiva das
massas populares" com as suas próprias visões e
estratégias.
Marx, em contraste, concebeu a questão organizacional como:
(1) permanecer fiel aos
princípios
socialistas, e
(2) desenhar
programas de acção
viáveis e flexíveis para as várias forças que
compartilham os amplos objectivos comuns da luta.
Foi assim que ele resumiu na última carta citada a sua visão do
Congresso da Unidade:
Os líderes lassalleanos vieram porque as circunstâncias os
forçaram a vir. Se lhes tivessem dito com antecedência que
não haveria
nenhuma barganha sobre princípios,
eles teriam que se contentar com um
programa de açção
ou um plano de organização para a acção comum. Em
vez disso, alguém lhes permite chegar armados com mandatos, reconhece
estes mandatos como válidos, e assim
se rende
incondicionalmente àqueles que precisam de ajuda.
Independente das circunstâncias específicas do Congresso de Gotha,
o "alto preço" mencionado por Marx estava relacionado com as
concessões em torno de
princípios
com vista a uma unidade ilusória, e não à possível
e necessária
acção comum.
Assim como naqueles dias, mais uma vez este é um assunto de suprema
importância. Pois hoje
talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado
recente, e do não tão recente
não é mais possível conceber as formas
imprescindíveis de
acção comum
sem uma articulação estratégica consciente de um
pluralismo socialista
que não só reconhece as diferenças existentes, mas
também a necessidade de uma adequada "divisão do
trabalho" na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em
oposição à falsa identificação da
"unidade" como o único meio de patrocinar
princípios
socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a
imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias
concessões sobre princípios),
permanece válida a regra de Marx: não pode haver
barganha sobre princípios.
Mas o reverso desta regra é igualmente válido, qual seja: a
condição elementar para se realizar os princípios de uma
transformação socialista (que, afinal de contas, envolve a
totalidade dos "produtores associados" no empreendimento comum de
mudar "de alto a baixo as condições da sua existência
industrial e política e, por conseguinte, toda a sua maneira de
ser") é a produção de uma
consciência de massa
socialista na única forma possível de
acção comum
que se auto-desenvolve. E a última, claro, só pode resultar dos
componentes verdadeiramente
autónomos
e
coordenados
(não hierarquicamente comandados e manipulados) de um movimento
inerentemente pluralista.
Por muito tempo, no movimento socialista foi comum
subestimar
a capacidade da burguesia de alcançar unidade. Ao mesmo tempo, havia uma
tendência correspondente para
super-estimar
as possibilidades e a importância imediata da classe trabalhadora.
Além disso, as mesmas concepções que avaliavam tão
equivocadamente a unidade tinham também uma tendência para ver na
conquista do poder a
solução
dos problemas que confrontam a revolução socialista, e não
o
verdadeiro início
deles.
Naturalmente, se a revolução socialista é vista como de
carácter primordialmente
político
em lugar de uma revolução
social
multi-dimensional, e portanto necessariamente "permanente", como Marx
a definiu a produção e a preservação da
unidade superam tudo em importância. Porém, quando se reconhece
que a conquista do poder é somente o
ponto de partida
para revelar as reais dificuldades e contradições desta
transformação "de alto a baixo, de toda maneira de ser"
dos produtores associados
dificuldades e contradições muitas das quais não podem
sequer ser imaginadas antes de ser encontradas de facto no curso da
própria transacção em andamento , então a
necessidade de estratégias genuinamente pluralistas afirma-se como uma
questão tanto de urgência imediata como de importância
contínua.
Apesar de ser uma verdade abstracta que a unidade da classe dominante
"só se possa revelar
vis-à-vis
ao proletariado"
[16]
, ela também é bastante enganadora, pois como no capitalismo tudo
é subordinado à contradição fundamental entre
capital e trabalho, a unidade burguesa inevitavelmente cumpre a
função de fortalecer um lado desse antagonismo. Entretanto, a
dificuldade está no facto de que o mesmo é verdade para o outro
lado; e ainda mais verdadeiro, como veremos a seguir. Consequentemente, a
verdade abstracta esconde uma distorção de grande
importância, resultante de uma doce ilusão. Por outras palavras,
nega ou ignora que há um fundamento devastadoramente
real
para a unidade da classe dominante: o seu domínio
real
e o poder
tangível
(tanto material e económico, como político e militar) que o
acompanha.
Em contraste, a unidade proletária é um problema, uma tarefa, um
desafio, até mesmo um imperativo em determinadas situações
de emergência, mas não uma condição real
espontânea da situação determinada. Pode vir a ser por um
período mais ou menos limitado e por um propósito
específico, mas nunca pode ser aceite como uma condição
não-problemática que persiste mesmo depois da sua
realização com êxito numa situação
sócio-histórica específica. Pelo contrário, ela
precisa de ser constantemente
recriada
nas circunstâncias variáveis enquanto os fundamentos objectivos da
desigualdade (devido à divisão social hierárquica de
trabalho herdada e a taxa diferencial de exploração mencionadas
antes) permanecerem connosco em qualquer forma que seja, como fatalmente
hão de permanecer por um período histórico de
transição muito mais longo do que se poderia desejar.
18.3.2
A "mania burguesa da unidade" mencionada por Engels tem sólida
fundação na ordem económica dominante da sociedade e no
seu fiador institucional, o Estado capitalista. As manipulações
capitalistas da unidade formal (que, por vezes aparecem mascaradas de
"consenso geral") significam nada mais que o selo de
aprovação a um estado de coisas
de facto
já em vigor, oferecendo-lhe assim sua
"legitimação" a
posteriori.
O facto de uma classe estar no poder efectivo
não só político, graças à
instrumentalidade
repressiva do Estado, mas no sentido
positivo
de regular o próprio sócio-metabolismo fundamental
garante-lhe uma poderosa base objectiva de auto-identidade unificadora
muito
antes de surgir uma aguda confrontação política com a
classe adversária. E mesmo onde ocorram divisões internas na
"sociedade civil" burguesa, devido à tendência objectiva
irreprimível de concentração e centralização
do capital, o lado vencedor é sempre o "unitário"
isto é, o grande capital. O seu poder certamente multiplica-se,
à
medida que se acelera o ritmo de avanço em direcção ao
monopólio, e cria partes grotescamente desiguais em
"competição" interna, competição
idealizada no passado, mas agora cada vez mais flagrantemente
pré-determinada e automaticamente decidida. Daí o crescente
falso pluralismo
da ordem social do capital em todas as suas mutações
contemporâneas.
Uma das mistificações político-ideológicas mais
poderosas do capital é, na realidade, a sua simulação de
"pluralismo" através da qual tem sucesso em definir sem
apelação os marcos de toda a oposição
admissível à sua própria dominação. Se na
fase liberal democrática do desenvolvimento capitalista a demanda por
pluralismo ainda significava alguma coisa (mesmo que não muito mais que
as possibilidades inerentes à "liberdade negativa" de John
Stuart Mill), desde o começo da fase
monopolista
a margem para alternativas reais tem-se tornado cada vez mais estreita,
até ao ponto do seu quase completo desaparecimento em tempos recentes.
Se o pesadelo monetarista hoje encontra a sua crua e desordenada
articulação na N.H.A. ("não há
alternativa", como os Chefes de Estado insistem em repetir, como um disco
riscado, a mensagem cínica da liberdade real do capital), isto pode
apenas sublinhar a gravidade da crise estrutural. Além disso,
também acentua as dificuldades em manter o disfarce da
tirania absoluta
do determinismo económico do capital como "o bem maior para o maior
número" e a apoteose das "forças do mercado tradicional
e da liberdade individual".
Na verdade, desde o princípio o "pluralismo" foi um conceito
extremamente problemático para o capital. Não só
nem mesmo primariamente por causa da sua
tendência
para o monopólio, mas em razão da
pressuposição absoluta
do monopólio já no seu
início,
isto é, o monopólio da propriedade privada por poucos e a
exclusão
a priori
da vasta maioria como pré-requisito prévio necessário do
controlo social pelo capital. (Vale a pena mencionar aqui que o
monopólio estatal dos meios de produção retém esta
pressuposição vital do sistema do capital e assim perpetua a
dominação do capital de uma forma diferente.) Todas as regras
subsequentes do jogo "pluralista" do capital foram decretadas com
base neste fundamento monopolista absoluto: em seu próprio interesse, e
a ser quebrado no interesse da continuidade e sua dominação,
sempre que as circunstâncias assim o exigirem.
Admitiu-se desde o princípio como verdade auto-evidente que
"não pode haver alternativa ao monopólio dos meios de
produção, nem à livre dominação do
avassalador determinismo económico do capital. Se alguém
os seguidores de Marx, por exemplo
ousasse questionar as manifestações e implicações
destrutivas de tal determinismo económico, deveria ser condenado como
perigoso determinista económico" do ponto de vista da liberdade
unidimensional e unidireccional do capital. O significado do
"pluralismo" do capital nunca foi mais que o simples reconhecimento
da
pluralidade de capitais,
junto com a insistência simultânea no direito absoluto do capital
total ao
monopólio,
tanto
tendencialmente
como
de facto.
Assim, não só é impossível haver afinidade entre
pluralismo socialista e pseudo pluralismo capitalista (que não oferece e
não pode oferecer uma margem maior de acção alternativa do
que a determinada pelo egoísmo estreito de uma pluralidade de capitais
em competição, e até mesmo isto só enquanto sua
competição limitada permanecer viável); eles são,
na realidade, diametralmente opostos.
No plano político, o significado do pluralismo do capital é
visível no ritual ridículo da
"competição" pelo poder entre os democratas e os
republicanos nos Estados Unidos, da mesma maneira que na
manipulação bem sucedida do poder político, em nome do
capital, por um partido desprezível da Itália, os democratas
cristãos, por bem mais de quatro décadas e meia sem
interrupção. (É óbvio até mesmo a seus
críticos capitalistas que a dominação do capital
japonês esteja efectivamente associada a um curioso sistema de partido
único, que habilmente explora lealdades tradicionais de uma sociedade
paternalista.) E nos casos um pouco mais complicados de Inglaterra e Alemanha
(onde a social-democracia apregoa abertamente a sua capacidade de melhor
administrar uma "moderna economia mista" capitalista do que a
alternativa conservadora, iludindo-se ao legitimar com tal nobre fundamento a
reivindicação de ser "o partido natural de governo"),
só a forma da mistificação "pluralista" é
diferente, não a sua substância. É por isso que o
conservador Edward Heath e o social-democrata Willy Brandt fizeram, quando os
seus respectivos partidos estavam no governo, uma crítica dócil
ao sistema. E é por isto que o sucessor de Willy Brandt, Helmut Schmidt,
só conseguiu ver (e denunciar) como "desestabilização
política" a simples possibilidade de um desafio socialista à
dominação do capital.
Em todos estes casos, "pluralismo" significa
uma sistemática
privação política dos direitos civis do trabalho em sua
confrontação com o capital, na forma mais adequada às
circunstâncias locais. O "pluralismo" de governos que se
alternam (quantos deles na Itália pós-guerra sem a menor
mudança?) oferece o
álibi permanente
para rejeitar categoricamente qualquer mudança real e para impor
cinicamente o imperativo segundo o qual "não pode haver
alternativa" ao devastador determinismo económico do capital.
Além disso, as instituições do pseudo-pluralismo do
capital não só fornecem as garantias políticas imediatas
da continuidade da sua dominação. Elas também agem como
escudo mistificador que automaticamente desvia toda a critica do seu alvo real
(qual seja, o circulo vicioso da auto-expansão destrutiva do capital ao
qual tudo deve ser incontestavelmente subordinado) para a irrelevância
personalizada de seus administradores que, de boa vontade, se esmeram em
superar um ao outro na melhor lubrificação do mecanismo do
sistema.
Assim, a possibilidade de mudança "consensual" é
convenientemente banida para uma margem de acção fixada
a priori
pela premissa de que "não há alternativa" às
exigências da auto-expansão do capital (mesmo a mais destrutiva),
impondo desse modo com sucesso os ditames do tipo mais estreito de determinismo
económico como realização última da liberdade.
Sempre que os governos são chutados por eleitores "soberanos"
amargamente desiludidos pela "quebra de suas promessas", o alvo
diversionário da oposição política consensual
assegura que nunca sejam mencionadas a enorme responsabilidade e a duvidosa
viabilidade da ordem sócio-económica a que eles servem e em nome
da qual fazem e quebram tais promessas. Assim, enquanto governos
"pluralistas" vêm e passam com frequência mistificadora,
a dominação do capital permanece absolutamente intacta.
18.3.3
Em completo contraste, a condição elementar para o sucesso do
projecto socialista é o pluralismo inerente a ele, e que parte do
reconhecimento das diferenças e desigualdades existentes; não
para preservá-las (que é uma necessidade de toda a
"unidade" fictícia e arbitrariamente imposta), mas para
superá-las da única forma viável: assegurando o
envolvimento activo de todos os interessados.
Desnecessário dizer que este envolvimento é impossível sem
a elaboração de estratégias e
"mediações" específicas, que emergem das
determinações particulares das necessidades e
circunstâncias mutáveis, o que representa o maior desafio à
teoria marxista contemporânea. A única e exclusiva perspectiva
ampla que pode servir de estrutura de referência comum para a grande
variedade de forças socialistas politicamente mais ou menos organizadas
e conscientes é a
rejeição
do
slogan
omnipresente de que "não há alternativa". E nem mesmo
isto pode ser admitido como um dado não problemático. Não
só por ser uma
negatividade
que necessita da sua articulação positiva para se tornar
viável como estratégia mobilizadora, mas também por ser,
em primeira instância, equivalente a nada mais que a mera
afirmação de que
"deveria haver
uma alternativa". Ainda assim, a rejeição deste
slogan
continua a ser o ponto de partida necessário, pois aqueles que aceitam a
sabedoria do "não há alternativa" em nome do
"triunfo do capitalismo organizado", ou da
"integração da classe trabalhadora", ou ainda de
qualquer outra coisa dificilmente poderiam alegar
que
oferecem a perspectiva de uma transformação socialista, mesmo que
às vezes, curiosamente, continuem a afirmá-lo.
Assim como o capital é
estruturalmente incapaz de pluralismo (com a excepção de uma
espécie muito limitada, que também se tem tornado cada vez mais
restrita com o avanço da concentração e da
centralização necessárias do capital), o empreendimento
socialista é
estruturalmente irrealizável
sem uma articulação plena com os múltiplos projectos
autónomos ("auto-administrados"), e, por isso,
irrepreensivelmente pluralistas da
revolução social
em andamento.
O amplo princípio geral que rejeita o determinismo económico do
capital oferece não mais que um ponto de partida necessário em
relação ao qual todos os grupos particulares (reflectindo
inevitavelmente uma multiplicidade de interesses e divisões
determinados) têm que definir a sua posição sob a forma de
objectivos e estratégias específicas interligados e, se as
condições o permitirem, também coordenados, mas
definitivamente não idênticos. O que está em jogo é
a invenção de uma alternativa viável para um sistema
global imensamente complexo que tem a seu favor a "maldição
da interdependência" para resistir à mudança.
Isto é expresso com brutal clareza nas palavras do senhor Roy Denman,
por muitos anos o principal negociador da CEE para relações de
comércio internacionais:
Não há alternativa.
As pessoas não são suficientemente
insanas
para desejar a
desintegração total de todo o sistema.
Contudo, os perigos são muito grandes, a situação é
agora mais séria que em qualquer outro momento desde a última
guerra.
[17]
Assim, os porta-vozes do capital, até mesmo quando são
forçados a reconhecer a severidade da crise, só encontram aquela
segurança na "sanidade" existente que protege e impõe o
sistema para o qual "não há alternativa". E, embora
não seja muito tranquilizador depender de nada mais sólido que o
último
fiat
de "sanidade" para defender a insanidade capitalista, continua a ser
verdade que a única alternativa real à crise estrutural do
capital que se aprofunda é
livrar-se completamente de todo o sistema.
Ninguém pode sugerir seriamente que a "insanidade" apercebida
pelo senhor Roy Denman a "desintegração total de todo
o sistema" e a sua substituição por outro sistema
viável possa ser realizada por meio de pequenos grupos de pessoas
fragmentadas, isoladas. Na realidade, não existe alternativa ao programa
de Marx de constituir uma consciência socialista de massa pelo
empreendimento prático de envolvimento numa acção comum
realmente possível e inerentemente pluralista.
Embora se torne dolorosamente óbvio que as alternativas do capital hoje
se limitam cada vez mais a flutuações manipuladoras entre
variedades de keynesianismo e monetarismo
[18]
, com movimentos oscilatórios cada vez menos eficazes, perigosamente
tendentes ao "repouso absoluto" de uma contínua
depressão, a recusa socialista à falta de alternativa deve ser
positivamente articulada com objectivos intermediários, cuja
realização possa promover avanços estratégicos no
sistema a ser substituído, mesmo que apenas parciais num primeiro
momento.
O que decide o destino das várias forças socialistas na sua
confrontação com o capital é o grau da sua capacidade de
fazer mudanças tangíveis na vida quotidiana, hoje dominada por
manifestações ubíquas das contradições
subjacentes. Assim, não basta focalizar determinantes estruturais
mesmo que isto seja realizado com perspicácia, de um ponto de vista
adequado se ao mesmo tempo as suas manifestações
directamente sentidas forem desprezadas porque as suas
implicações estratégicas socialistas não são
visíveis aos interessados. O significado do pluralismo socialista
envolvimento activo em acção comum que não compromete,
mas, ao contrário, constantemente renova os princípios
socialistas que inspiram as questões globais emerge precisamente
da capacidade das forças participantes de
combinar,
num todo coerente com implicações socialistas
em última análise
inevitáveis, uma grande variedade de demandas e estratégias
parciais que, em si e por si, não precisam ter absolutamente nada de
especificamente socialista.
Nesse sentido, as demandas mais urgentes da nossa época, que
correspondem directamente às necessidades vitais de uma grande variedade
de grupos sociais empregos, educação, assistência
médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas
inerentes à luta pela liberação das mulheres e contra a
discriminação racial podem, sem uma única
excepção, ser abraçadas sem restrições por
qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente
quando não são consideradas como questões singulares,
isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que
constantemente as reproduz como demandas não realizadas e
sistematicamente irrealizáveis.
Desse modo, o que decide a questão é a sua
condição
de realização (quando definidas na sua pluralidade como demandas
socialistas
conjuntas),
e não o seu carácter considerado separadamente. Por conseguinte,
o que está em jogo não é a enganosa
"politização" destas questões isoladas, pela
qual poderiam cumprir uma função política directa numa
estratégia socialista, mas a
efectividade
de afirmar e sustentar tais demandas "não-socialistas",
tão largamente auto-motivadoras no
front
mais amplo possível.
As preocupações imediatas da vida quotidiana, do cuidado
médico à produção de grãos, não
são directamente traduzíveis nos princípios e valores
gerais de um sistema social. (Até mesmo as comparações
só são pertinentes e efectivas quando houver carência numa
área como resultado das demandas mais ou menos injustificáveis de
outra; exemplo disso são os cortes feitos hoje em serviços
sociais vitais no interesse da indústria de guerra.) Qualquer tentativa
de impor um controlo político directo a tais movimentos, seguindo a
tradição bastante infeliz do passado não tão
distante, em vez de ajudar a fortalecer a sua autonomia e a sua
eficácia, corre o risco de ser contraproducente (por melhores que sejam
as intenções da "politização").
É um sinal importante das condições historicamente
alteradas que estas demandas e as forças que existem por trás
delas já não possam ser "incorporadas" ou
"integradas" à dinâmica objectiva de
auto-expansão do capital. Devido à sua insolubilidade
crónica, bem como pelo seu poder motivador imediato, elas deverão
definir a estrutura da confrontação social num futuro
previsível. Naturalmente, independentemente da sua importância, as
questões acima referidas são aqui mencionadas como
exemplos
que pertencem a um número muito maior de preocupações
específicas por meio das quais devem ser mediadas as
aspirações e estratégias socialistas hoje.
Outro tipo de demanda envolve um compromisso sociopolítico mais
óbvio e directo, embora este conjunto tão pouco possa ser
caracterizado como especificamente socialista. Por exemplo, a luta que se
intensifica para preservar a paz contra interesses disfarçados do
complexo industrial-militar, ou a necessidade de restringir o poder das
transnacionais, ou ainda de estabelecer uma base de cooperação e
troca que assegure as condições de desenvolvimento real no
"Terceiro Mundo" está bastante óbvio que o capital
não tem condições de atender a nenhuma destas demandas e,
portanto, que o seu controlo sobre as forças por trás delas
está diminuindo, também é verdade que o potencial
liberador da sua perda de controlo não pode ser realizado sem a
articulação de estratégias socialistas adequadas e suas
formas organizacionais correspondentes.
As demandas que manifestam directamente a necessidade de uma alternativa
socialista estão relacionadas com a perdularidade inerente ao modo de
funcionamento do capital. Paradoxalmente, o capital consegue impor à
sociedade a "lei de ferro" do seu
determinismo económico
sem sequer conhecer o significado de
economia.
Há quatro direcções principais nas quais se manifesta, com
consequências crescentemente danosas, a perdularidade necessária
do capital à medida que se alcançam os limites últimos do
seu potencial produtivo:
(1) a procura incontrolável por
recursos
isto é, a irreprimível tendência crescente do
capital ao uso "intensivo de recursos", da qual o uso "intensivo
de energia" é só um exemplo sem
consideração pelas consequências futuras sobre o ambiente,
nem pelas necessidades das pessoas afectadas pelas suas assim denominadas
"estratégias de desenvolvimento";
(2) a crescente
intensdade de capital
dos seus processos de produção, inerente à
concentração e à centralização
necessárias de capital, que contribui grandemente para a
produção do "subdesenvolvimento" não só
na "periferia" mas também no centro de seu domínio
"metropolitano", gerando desemprego maciço e devastando uma
base industrial antes florescente e perfeitamente viável;
(3) o impulso crescente em direcção
à multiplicação do valor de troca,
no princípio simplesmente
divorciado,
mas agora abertamente
oposto
ao "valor de uso" ao serviço da
necessidade humana,
para manter intacta a dominação do capital sobre a sociedade; e
(4) o pior tipo de
desperdício: o desperdício de gente, pela produção
em massa de "pessoas supérfluas" que, como resultado tanto dos
avanços "produtivos" do capital como das suas dificuldades
crescentes no "processo de realização", não
podem mais ajustar-se aos esquemas estreitos da produção de lucro
e da multiplicação perdulária do valor de troca. (O facto
de a produção em massa de "tempo supérfluo" do
número crescente de "pessoas supérfluas" seja o
único tempo de vida das pessoas reais não pode ser, claro,
objecto de preocupação para as dedicadas
personificações do capital.)
18.3.4
Em relação a todas estas tendências e
contradições do capital, as demandas de mudança só
podem ser formuladas em termos de uma alternativa socialista global por isso
que a renovação do marxismo se torna tão vital, pois,
apesar das críticas acerca da "crise do marxismo", não
há nenhuma teoria alternativa séria em condições de
tratar desses problemas em toda a sua complexidade e abrangência.
À parte os recentes críticos hostis de Marx (como os "novos
filósofos franceses" e os seus colegas
"pós-modernos"), que podem seguramente ser ignorados devido
aos seus interesses ideológicos excessivamente óbvios e ao
padrão intelectual correspondente, as várias reflexões
críticas tendem a focalizar aspectos limitados da crise social corrente.
Elas oferecem respostas e soluções que só são
parcialmente aplicáveis, e evitam precisamente aquelas questões
abrangentes que definem os horizontes estratégicos de qualquer
alternativa viável.
Ao mesmo tempo que é necessário resistir à
inclinação de alguns marxistas a desconsiderar este tipo de
crítica como "populista" pois, seguramente, deve haver
um lugar importante para o "populismo" de inspiração
socialista numa estrutura genuinamente pluralista de acção comum
o interesse em assuntos locais e formas de organização
"enraizadas no seu meio", bem como a tarefa de entender as suas
tradições históricas e "peculiaridades",
está longe de ser suficiente. Deve ser complementada pelo enfrentamento
de suas muitas e mais largas ramificações e
ligações com a totalidade social, de forma que o seu impacto
cumulativo fortaleça as hipóteses da estratégia
socialista, em vez de impulsioná-la na direcção da
fragmentação e da dispersão.
Se no passado a teoria marxista teve uma tendência a esquecer essas
preocupações, preferindo concentrar-se nos princípios
gerais da alternativa socialista, isto deveu-se em grande parte às
condições historicamente
defensivas.
Enquanto prevaleceram tais condições, era compreensível,
na verdade necessária ainda que problemática, a constante
reafirmação da validade última das perspectivas globais
em desafiante desconsideração à tranquila
auto-expansão do capital tida como, basicamente, irrelevante.
Porém, nas condições alteradas da
ofensiva
necessária, a reafirmação abstracta e auto-tranquilizadora
das perspectivas gerais como uma declaração de fé
está completamente fora de lugar. Pois o dito de Marx
"Hic Rhodus. hic salta"
pede a integração da totalidade das demandas sociais, das
preocupações "não socialistas" quotidianas mais
imediatas até as que questionam abertamente a ordem social do capital em
si, numa alternativa estratégica teoricamente coerente e viável
do ponto de vista instrumental e organizacional.
Assim, a verdadeira questão é como estabelecer firmemente uma
direcção global a ser seguida, ao mesmo tempo em que se
reconhecem plenamente as circunstâncias limitadoras e o poder de
imediaticidade que se opõem a atalhos ideais. A revolução
social marxista define o período de transição em termos de
objectivos identificáveis, junto com as mediações
teóricas, materiais e instrumentais necessárias para a sua
realização. Nesse sentido, para relacionar alguns tópicos
vitais, é necessário investigar como seria possível:
(1) produzir uma
mudança radical
e ao mesmo tempo salvaguardar a
continuidade
necessária do sócio-metabolismo (que pede a
aplicação prática contínua do princípio
metodológico marxista relativo à reciprocidade dialéctica
entre continuidade e descontinuidade);
(2) restruturar "de alto a baixo"
todo
o edifício da sociedade, que simplesmente não pode ser derrubado
com a finalidade de uma reconstrução total, como vimos na Parte
II;
(3) passar da actual
fragmentação
das forças sociais à sua
coesão
no empreendimento criativo dos
produtores associados
(que implica o desenvolvimento bem sucedido da
consciência de massa
socialista, resultado de se assumir
responsabilidade
pelas consequências das práticas produtivas e distributivas
auto-administradas);
(4) realizar genuínas
autonomia
e
descentralização
dos poderes de decisão, em oposição à sua
concentração e à sua centralização
existentes, que não podem de modo algum funcionar sem
"burocracia";
(5) transcender a divisão
e a "inércia circular" entre sociedade civil e Estado
político pela unificação das funções de
trabalho e tomada de decisão;
(6) abolir o segredo de governo,
predominante por toda a parte, instituindo uma nova forma de
auto-governo aberto
pelas pessoas interessadas.
Muitos temas importantes da teoria marxista do século XX são
partes integrantes da tentativa de se resolver estas questões de
transição, assim como a reavaliação do papel dos
sindicatos e partidos na estrutura do pluralismo socialista voltou a assumir a
sua importância fundamental. Alguns podem querer negar que tais assuntos
sejam importantes hoje. Mas aqueles que não adoptam esta perspectiva
deveriam simplesmente concordar que um envolvimento activo pode ser o modo mais
frutífero de enfrentar a "crise do marxismo".
18.4-
A NECESSIDADE DE SE CONTRAPOR À FORÇA EXTRA-PARLAMENTAR DO
CAPITAL
18.4.1
A despeito de todos os protestos contrários da "direita
radical", vivemos numa era em que, graças às dinâmicas
internas de "hibridização" do controlo
sócio-metabólico estabelecido, a dimensão
política
é muito mais proeminente do que na fase clássica de
ascendência histórica do capital. Naturalmente, o exame adequado
deste problema não deve restringir-se às
instituições directamente políticas, como o Parlamento.
É muito mais amplo e mais profundo. De facto, as mudanças que
temos testemunhado no funcionamento do próprio Parlamento
mudanças tendentes a privá-lo inclusive das suas limitadas
funções autónomas do passado não podem ser
explicadas de modo circular pela mudança da máquina eleitoral e
das práticas parlamentares correspondentes. Os porta-vozes da
hipostasiada "absoluta soberania do Parlamento e seus embates
retóricos com os seus colegas parlamentares sobre a miragem da perda da
soberania para Bruxelas" (por exemplo) estão longe da verdade.
Procuram soluções para as deploradas mudanças onde elas
não podem ser encontradas: nos limites do próprio domínio
político parlamentar. Todavia, o problema é que os acontecimentos
actuais, absolutamente perturbadores quando vistos de uma perspectiva
política auto-referente, só podem ser entendidos dentro da
estrutura abrangente dos processos de reprodução material e
cultural, pois é ela que exige o cumprimento de determinadas,
porém mutáveis, funções da esfera política
no curso das transformações históricas e dos ajustes da
auto-afirmação da ordem sócio-metabólica dominante
como um todo.
Como já vimos em vários contextos, o desenvolvimento do
século XX foi caracterizado pela crescente influência de factores
"extra económicos". Por outras palavras, o século XX
testemunhou a ascensão à proeminência de forças e
procedimentos "extra económicos" que costumavam ser avaliados
com grande cepticismo e rejeitados como estranhos à natureza do sistema
do capital no momento da sua ascensão histórica triunfal. No
início da crise estrutural do sistema ocorrida na década de 1970,
os representantes da "direita radical" romperam com a forma
keynesiana da intervenção consensual do Estado capitalista
(dominante por um quarto de século depois da Segunda Guerra Mundial).
Com isso, muitos políticos envolvidos esqueceram-se instantaneamente de
que eles próprios estavam profundamente comprometidos com as
práticas pecaminosas que agora denunciavam sonoramente. Esses
políticos também se negaram a encarar o facto não
importa se com a ajuda da hipocrisia, do fingimento cínico ou se
proveniente da ignorância genuína de que o novo curso
exigiria pelo menos uma intervenção do Estado nos processos
sócio-económicos (agora, mais do que nunca, em nome do
big business)
tão grande quanto na variante keynesiana. A única
diferença era que, adicionada à generosa ajuda dada ao
big business
desde enormes incentivos fiscais até práticas corruptas de
"privatização"
[19]
, desde abundantes fundos de pesquisa (especialmente em proveito do complexo
militar-industrial) à facilitação mais ou menos aberta da
tendência ao monopólio a "direita radical"
precisou de impor também toda uma série de leis repressivas sobre
o movimento dos trabalhadores. Ironicamente, as leis repressivas contra o
trabalho tiveram que ser introduzidas "suavemente" por meio dos bons
serviços dos "parlamentos democráticos", com a
finalidade de negar à classe trabalhadora até mesmo os ganhos
defensivos do passado, de acordo com as cada vez mais estreitas margens de
acumulação do capital nas circunstâncias da crise
estrutural em andamento.
Assim, para as perspectivas da emancipação do trabalho, a
importância da luta política e da crítica radical do Estado
inclusive das suas "instituições
democráticas", principalmente o Parlamento nunca foi
tão grande quanto na actual fase histórica de aparente
"encolhimento dos limites do Estado". Como a angustiante
situação de mil milhões de pessoas se tornou dolorosamente
óbvia,
o sistema do capital, mesmo na sua forma mais avançada, esquece
miseravelmente a espécie humana. O mesmo pode ser dito da
dimensão política do controlo socio-metabólico. Até
mesmo a forma mais avançada de Estado do sistema do capital o
Estado liberal-democrático, com a sua representação
parlamentar e as suas garantias democráticas formais e
institucionalizadas de "justiça e imparcialidade", bem como
com as suas apregoadas garantias contra o abuso de poder fracassou em
todas as promessas que a auto-legitimavam.
A crise da política em todo o mundo, incluindo as democracias
parlamentares dos países capitalistas mais avançados que
assume frequentemente a forma de uma compreensível amargura e de um
resignado afastamento da actividade política das massas populares
é parte integrante do agravamento da crise estrutural do sistema do
capital. As alegações de "dar poderes ao povo"
seja a da ideologia do "capitalismo popular" (armado com uma
porção de acções sem direito a voto) ou sob os
slogans
de "oportunidade igual" e "imparcialidade" num tema de
incorrigível desigualdade estrutural são absurdas demais
para serem levadas a sério mesmo pelos seus mais proeminentes
propagandistas. Ao contrário,
em vez da repetida promessa do "encolhimento dos limites do Estado",
o futuro provavelmente trará maior imposição de
determinações políticas regressivas sobre o dia-a-dia das
massas populares. Por mais desencorajadoras que sejam as suas formas
institucionais dominantes e as suas práticas de
auto-perpetuação, não há opção fora
da política. Mas, precisamente por essa razão, a política
é importante demais para ser deixada aos políticos; na verdade,
uma democracia digna deste nome é importante demais para ser deixada
às actuais democracias parlamentares viáveis do capital e
à pequena margem de acção dos parlamentares, mesmo dos
grandes parlamentares".
Quando é concedido aos representantes da esquerda, o título de
"grande parlamentar" é usado pelo sistema Conservador (com
"c" minúsculo, incluindo a liderança da ala direita do
Partido Trabalhista) como uma forma de auto-congratulação e
auto-elogio. Tais personalidades políticas são tidas como
"grandes parlamentares" porque, segundo a lenda, "aprenderam a
dominar as regras do procedimento parlamentar e, com a ajuda delas,
"continuam a levantar os assuntos desconfortáveis".
Entretanto, a verdade realmente desconfortável é que os assuntos
assim levantados são invariavelmente ignorados ou declarados "fora
da pauta" pelo próprio Parlamento. Dessa forma, os apologistas do
sistema parlamentar substantivamente anti-socialista podem demonstrar à
"opinião pública democrática" que não
existe outro caminho para lidar com os problemas da sociedade a não ser
por meio da submissão do jogo parlamentar às leis e ao rigoroso
cumprimento de seus procedimentos, os quais produzem "grandes
parlamentares" também na esquerda política.
Futilidade
e
marginalização política
são os critérios a ser promovidos ao alto posto de "grande
parlamentar" na esquerda. Desse modo, alguns deles são admitidos no
hall
da
fama
para colocar o sistema da democracia parlamentar além e acima de toda a
"crítica legítima" concebível.
Na verdade, dada a marginalização política
inseparável da aceitação das amarras parlamentares como a
única estrutura legítima da acção política,
a aceitação das regras internas do jogo parlamentar
mesmo se praticada com propósito radical só pode
produzir o
auto-encarceramento parlamentar
da esquerda. Ironicamente, do modo como funciona actualmente o sistema
parlamentar, até mesmo pessoas com credenciais impecáveis da ala
direita mas com grandes ilusões sobre o seu próprio papel
na determinação do resultado dos debates políticos
como Roy Hattersley, estão infelizes com o conformismo cego que os leva
a aceitar as regras mais recentes do jogo parlamentar. Queixam-se, claro que
totalmente em vão, de que a liderança do partido deveria prestar
mais atenção aos princípios professados no passado. De
facto, testemunhamos hoje a liquidação até dos mais
brandos princípios sociais-democratas para assegurar uma
"aliança eleitoral mais ampla". É assim que num
artigo publicado no
Independent,
em 12 de Agosto de 1995,
sob o título "Roy Hattersley conta a Tony Blair onde ele tem
errado" , de modo manifesto, ele argumenta:
Sou um crente apaixonado no novo trabalhismo, um antigo adversário
da velha cláusula IV (que promete a posse comum dos meios de
produção) e um herético que deseja cortar completamente os
elos formais dos trabalhistas com os sindicatos. Mas entendo por que os membros
do partido se preocupam com o facto de nos termos ocupado tanto com os
problemas da classe média que começamos a ignorar as necessidades
dos desfavorecidos e dos excluídos ... A ideologia é o que
mantêm os partidos estáveis e dignos de crédito, bem como
honestos. A longo prazo, a estima do público pelo partido seria
protegida por uma afirmação contundente de intenção
fundamental. O socialismo que é proclamado na nova cláusula
IV exige que a pedra fundamental seja a redistribuição de
poder e riqueza. Se esse objectivo fosse reafirmado, muitos dos problemas
desapareceriam.
O autor deste artigo parece preocupado com o facto de o Partido Trabalhista
do qual há não muito tempo Hattersley era o
vice-líder na Câmara dos Deputados ter falhado na
"redistribuição de poder e riqueza", durante toda a sua
longa história.
The Times
é muito mais realista quando elogia Tony Blair dizendo que a ideologia
do "novo trabalhismo", defendida pelo líder da
oposição, carrega pouca relação com o socialismo do
passado. É
"pragmático, amigo dos negócios"
[20]
.
18.4.2
O estreitamento da margem de acumulação lucrativa do capital
afectou grandemente as perspectivas do movimento dos trabalhadores até
mesmo na maioria dos países de capitalismo avançado. Não
só piorou o padrão de vida da força de trabalho em emprego
formal (para não mencionar as condições de milhões
de pessoas desempregadas e sub-empregadas), mas, como mencionado na
última secção, também reduziu as possibilidades da
sua acção auto-defensiva como resultado da
legislação autoritária imposta às classes
trabalhadoras pelos seus parlamentos supostamente democráticos.
Ainda hoje este processo não está completo. Não há
um ano sequer em que as classes trabalhadoras não sejam confrontadas por
novas medidas legislativas inventadas contra os seus órgãos de
defesa e formas de acção tradicionais. Ao mesmo tempo, a
própria forma parlamentar de representação tornou-se
extremamente problemática mesmo nos seus próprios termos de
referência.
Certa vez Hegel resumiu nos seguintes termos a justificação para
a autonomia relativa dos representantes parlamentares um argumento ainda
usado para racionalizar o facto de os representantes parlamentares não
se sentirem obrigados a prestar contas aos seus eleitores:
a sua relação para com os seus eleitores não é a de
agentes com uma comissão ou uma instrução
específicas. Uma obstrução adicional para o serem é
o facto de que a sua assembleia
deve ser
um
corpo vivo no qual todos os membros deliberam em comum e reciprocamente se
instruem e convencem.
[21]
No funcionamento real dos parlamentos actuais nada corresponde à
caracterização hegeliana, nem mesmo no grau limitado em que
poderiam merecer aquela descrição. Quaisquer que tenham sido as
perspectivas dos membros particulares do Parlamento, sobre as quais gostariam
de "deliberar em comum e reciprocamente instruir-se e convencer-se",
não têm qualquer peso os argumentos que poderiam ser capazes de
apresentar a seu favor, mesmo se defendidos com ênfase. De facto, o assim
denominado
"three line whip"
[NT]
compele-os a votar de acordo com ordens da liderança do seu partido,
sob pena de "perderem os seus
whip",
o que significa ser "não eleito" como candidato ao Parlamento.
Esta prática é adoptada não apenas nos assuntos
políticos mais importantes, mas até em debates sobre a
pertinência ou não de se introduzir licenças para
cães. E a este respeito não deve haver qualquer diferença
entre os principais partidos políticos. Exemplo disso aconteceu quando o
primeiro-ministro trabalhista Harold Wilson, "de centro esquerda",
certa vez ameaçou brutalmente os seus colegas dissidentes da esquerda do
partido dizendo-lhes que, a menos que se comportassem, ele não iria
renovar as suas licenças para cães".
Este é um dos problemas mais desafiadores para o futuro, pois ao longo
do século XX testemunhamos a degradação da política
parlamentar no passado enraizada na pluralidade de capitais e na margem
de ganhos relativos que poderiam caber também à classe
trabalhadora, derivados da divergência correspondente de interesses
a uma espécie de
conspiração
contra o trabalho como antagonista do capital. Este tipo de
conspiração tem lugar não tanto
entre
partidos, mas
no interior
de cada um deles. Entre eles isto acontece apenas no sentido da profana
"política do consenso" destas últimas décadas,
apesar da geração da névoa institucionalizada da
política de adversários" parlamentar. Porém, o
aspecto mais importante é a constituição interna e o
funcionamento dos próprios partidos, inclusive dos partidos
parlamentares do trabalho. O modo como são constituídos e
administrados exclui qualquer possibilidade de até mesmo se levantar a
questão da mudança do controlo socio-metabólico
estabelecido. Pelo contrário toda a actividade política
parlamentar está condenada tanto no governo como na
oposição à estabilização ou
reestabilização do sistema do capital. Por isso, já
há muito tempo a linha-mestra das políticas parlamentares tem
sido como
desproteger
o trabalho (não aberta e formalmente, mas em termos substantivos), de
modo a anular os ganhos obtidos pela instrumentalidade dos partidos e
sindicatos anteriores da classe trabalhadora. A política de cambalhotas
do Partido Trabalhista Britânico (que agora, respeitosamente, se chama
"Novo Trabalhismo") e o similar "não envolvimento"
do Partido Comunista Italiano de todos os princípios e
convicções anteriores são boas ilustrações
de como o antagonista do capital vem sendo efectivamente desprotegido no curso
desses desenvolvimentos.
O principal papel dos partidos social-democratas (sob uma variedade de nomes,
incluindo os dos antigos partidos comunistas hoje rebaptizados) limita-se
actualmente à
entrega do trabalho ao capital
e a usar as pessoas como
forragem eleitoral
para os propósitos da legitimação espúria do
status quo
perpetuado sob o pretexto do processo eleitoral "aberto" e
"plenamente democrático". Esta acomodação
parlamentar não crítica dos partidos da classe trabalhadora nem
sempre ocorreu, muito embora sempre tenha sido extremamente problemática
a "observância estrita dos procedimentos parlamentares" aos
quais se esperava que eles se submetessem quando entrassem na arena eleitoral.
Ou seja, o movimento dos trabalhadores, quando da sua criação,
tinha objectivos muito mais amplos e incomparavelmente mais radicais do que os
que poderiam ser realizados dentro da estrutura principal do
órgão político criado pela burguesia em ascensão: o
Parlamento. De facto, até mesmo o movimento da social-democracia
alemã que começou a ceder às pressões pela
acomodação já no período de vida de Marx
continuou a prometer uma transformação social radical pela
implementação de reformas estratégicas até
capitular abertamente às demandas do expansionismo nacional
burguês quando da irrupção da Primeira Guerra Mundial.
Porém agora, com o fim da ascensão histórica do capital,
praticamente inexiste margem de reforma em favor do trabalho. Assim, a corrente
principal da "reforma" e da legislação parlamentares
tem por objectivo não o isolamento total de um punhado de parlamentares
socialistas, mas a castração do movimento dos trabalhadores em
geral.
Cada instituição singular do sistema está completamente
envolvida neste empreendimento, em que pese a mitologia das "garantias
democráticas" que supostamente deveriam ser oferecidas pela
"divisão dos poderes": uma mitologia que infectou até
mesmo alguns intelectuais bem conhecidos da esquerda. O que seria supostamente
uma das principais garantias democráticas o
"Judiciário independente nada teme" continua a
demonstrar, em toda a ocasião possível, capacidade
"pendente" de impor as leis repressivas do "Parlamento
democrático" contra o trabalho, em completa harmonia com os
interesses e imperativos da ordem estabelecida. O seu comportamento durante a
greve de um ano dos mineiros ingleses foi exemplo notável de
"militância judiciária". Mas, claro, o Judiciário
não precisa de uma confrontação social importante, como a
revelada por esse exemplo, para cumprir o papel anti-democrático de
acordo com a sua consciência de classe. Em todo o assunto fundamental ele
fá-lo dentro da normalidade. Assim, num recente e final, na lei local
julgamento, os senhores das leis britânicas atacaram os sindicatos
mesmo na sua função básica de negociador de
salário, minando dessa forma a própria existência. Como
informou o
Financial Times:
Ontem, os magistrados decretaram unanimemente que os empregadores estão
legalmente autorizados a reter o aumento no pagamento de empregados que se
recusarem a assinar contratos pessoais que abolem os seus direitos negociados
pelos sindicatos.
[22]
Este julgamento claramente marcado pela consciência de classe foi na
realidade extensão retroactiva de uma lei anti-sindicato
instituída em 1993 pelo governo conservador na Inglaterra, ainda que
tais procedimentos sejam normalmente falseados, com característica
hipocrisia, como "esclarecimento legal politicamente independente". A
hipocrisia de tais actos anti-democráticos só é superada
pela "argumentação" que apela à credulidade dos
suficientemente ingénuos para considerá-la seriamente. Assim,
Lord Slynn argumentou que não havia evidência no facto de que a
retenção do aumento de salário daqueles que permaneceram
no sindicato visasse primariamente evitar ou intimidar a adesão a este,
mesmo que o próprio
não-reconhecimento
em si pudesse tornar o sindicato menos atraente para os membros ou
sócios em potencial.
[23]
Não cabe dúvida com relação às
ginásticas e acrobacias mentais necessárias para produzir
racionalizações como estas, que requerem a capacidade
única de se colocar de cabeça para baixo para escrever longas
sentenças da suprema corte, sem sequer corar. Ao mesmo tempo, tais actos
da mais elevada instância judiciária democrática e
independente também confirmam que a
"separação dos poderes" n
a dominação do capital significa somente uma coisa: a
separação institucionalizada e legalmente imposta entre o poder e
o trabalho e o seu exercício contra os interesses do trabalho.
Por isso não pode haver esperança de se instituir mudanças
estruturais significativas na estrutura socio-política estabelecida e
bem defendida, mesmo que leve um milhão de anos. Esta é a
razão pela qual continuam inevitáveis as
frustrações permanentes e invariáveis derrotas dos
socialistas genuínos, esperançosos de alcançar os seus
objectivos por meio de reformas parlamentares. Longe de serem simples
questões pessoais, os seus fracassos acentuam a sabedoria do grande
poeta húngaro Attila József, que escreveu:
nem sequer os melhores truques do gato conseguirão apanhar o rato
simultaneamente fora e dentro da casa.
[24]
18.4.3
A crítica radical do sistema parlamentar não começou com
Marx. Encontra-mo-la expressa de forma poderosa, já no século
XVIII, nos escritos de Rousseau. Partindo do pressuposto de que a soberania
pertence ao povo e que, portanto, não pode ser legalmente alienada,
Rousseau argumentou que, pelas mesmas razões, ela pode ser transformada
legitimamente em qualquer forma de abdicação representacional:
Os representantes do povo não são, nem podem ser, seus
representantes, não passam de seus comissários, nada podendo
concluir definitivamente. É nula toda a lei que o povo não
ratificar directamente; em absoluto, não é lei. O povo
inglês pensa ser livre e muito se engana, pois só o é
durante a eleição dos membros do Parlamento; uma vez eleitos, ele
é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua
liberdade, o uso que dela faz mostra que merece perdê-la.
[25]
Rousseau fez ainda a importante observação de que, embora o poder
Legislativo não possa ser divorciado do povo nem sequer pela
representação parlamentar, as funções
administrativas ou executivas devem ser consideradas sob uma luz muito
diferente. Como explicou:
no exercício do poder legislativo, o povo não [pode] ser
representado, mas no do poder Executivo, o qual é a única
força que ´ aplicada para tornar a lei efectiva, ele
pode e deve estar representado.
[26]
Rousseau tem sido sistematicamente falsificado e indevidamente utilizado pelos
ideólogos "democratas", incluindo o
"jet set
socialista" por ter insistido em que
"liberdade não pode existir sem igualdade"
[27]
o que exclui até mesmo a melhor forma de
representação, considerada por ele hierarquia necessariamente
discriminatória / iníqua. Desse modo, ele propôs uma forma
de exercício de poder político e administrativo muito mais
praticável do que a que lhe é atribuída, ou de que
é acusado. Significativamente, neste processo de
falsificação tendenciosa, os dois princípios vitalmente
importantes da teoria de Rousseau, adaptados adequadamente também pelos
socialistas, foram desqualificados e abandonados. Contudo, a verdade é
que, por um lado, o poder fundamental de tomar decisão nunca deveria ter
sido divorciado das massas populares, como demonstrou conclusivamente a
história de verdadeiro horror do sistema estatal soviético,
administrado contra o povo pela burocracia estalinista em nome do socialismo da
forma mais autoritária. Por outro lado, em todos os domínios do
processo reprodutivo social, o cumprimento de funções
administrativas e executivas específicas pode ser de facto
delegado
a membros da comunidade, contanto que seja realizado segundo regras definidas
autonomamente e apropriadamente controladas em todas as fases da tomada de
decisão substantiva pelos produtores associados.
Assim, as dificuldades não residem nos dois princípios
básicos tais como formulados por Rousseau, mas no modo pelo qual devem
ser relacionados ao controlo político e material do processo
sócio-metabólico pelo capital. Conforme os princípios da
inalienabilidade do poder de determinar as regras (isto é, a
"soberania" do trabalho não como uma classe particular mas
como condição universal da sociedade) e da
delegação de papéis e funções sob regras bem
específicas, definidas, flexivelmente distribuídas e
adequadamente supervisionadas, o estabelecimento de uma forma socialista de
tomada de decisão exigiria invadir e reestruturar radicalmente os
domínios materiais antagónicos do capital. Um processo que
deveria ir bem além do princípio da soberania popular
inalienável de Rousseau e seu corolário delegatório. Ou
seja, numa ordem socialista, o processo "legislativo" deveria ser
fundido no próprio processo de produção de tal modo que a
necessária
divisão horizontal do trabalho
discutida no capítulo 14
fosse complementada em todos os níveis, do local ao global, por um
sistema de
coordenação
auto-determinado do trabalho. Esta relação contrasta agudamente
com a perniciosa
divisão vertical do trabalho
do capital, que é implementada pela "separação dos
poderes" num "sistema político democrático"
alienado e inalteravelmente imposto às massas trabalhadoras. Ora, a
divisão vertical de trabalho sob o comando do capital infecta
incuravelmente todas as facetas da divisão horizontal do trabalho, das
funções produtivas mais simples aos processos mais complexos da
selva legislativa. E esta é uma selva legislativa cada vez mais densa
não só porque as suas regras e componentes institucionais se
multiplicam ao infinito e mantêm sob forte controlo o comportamento real
ou potencialmente desafiador do trabalho, alertando para os pleitos limitados
do trabalho e protegendo a dominação global do capital sobre a
sociedade em geral. Em qualquer tempo particular do processo histórico
em desdobramento
desde que tal conciliação seja de alguma maneira possível
, conciliam-se os interesses separados da pluralidade de capitais com a
dinâmica incontrolável da totalidade do capital social que tende
por último para sua auto-afirmação como entidade global.
Numa recente retomada da crítica de Rousseau da
representação parlamentar, Hugo Chávez Frias, o
líder de um movimento radical na Venezuela o Movimiento
Bolivariano Revolucionário (MBR-200) , escreveu com respeito
à crise crónica do sistema sócio-politico do país:
Com o surgimento dos partidos populistas, o sufrágio foi convertido
numa ferramenta para adormecer o povo venezuelano com o fim de
escravizá-lo em nome da democracia. Durante décadas os partidos
populistas basearam o seu discurso em inumeráveis promessas
paternalistas criadas para dissolver a consciência popular. As mentiras
políticas alienantes pintaram uma "terra prometida" a ser
alcançada através de um jardim de rosas. A única coisa que
os venezuelanos teriam que fazer seria ir às urnas eleitorais e esperar
que tudo fosse resolvido sem o mínimo esforço popular. ... Assim,
o acto de votar foi transformado no começo e no fim da democracia.
[28]
Entre todas as personalidades públicas, incluindo todos os sectores da
sociedade, o autor destas linhas é o segundo em estima popular na
Venezuela (atrás apenas de Rafael Caldera) e encontra-se bem acima de
todos os políticos aspirantes nos partidos. Se quisesse, poderia ganhar
facilmente eleições para altos cargos, o que refuta o argumento
habitual segundo o qual as pessoas que só criticam o sistema
político existente assim o fazem porque não podem satisfazer as
árduas exigências das eleições democráticas.
De facto Hugo Chávez, ao escrever o discurso acima (1993), rejeita, por
razões muito diferentes, o "canto de sereia" dos formadores da
opinião política, que tentam pacificar as pessoas dizendo que
não há necessidade de se preocuparem com a crise porque falta
pouco tempo para "as próximas eleições". Ele
assinala que, enquanto o conselho político habitual pede "um pouco
mais de paciência" até que as eleições
programadas se realizem em poucos meses, "a cada minuto centenas de
crianças nascem na Venezuela com a saúde ameaçada por
falta de comida e medicamentos, enquanto biliões são roubados da
riqueza nacional, sangrando o que ainda resta do país. Não
há razão que justifique qualquer crédito a uma classe
política que demonstrou à sociedade não ter a menor
vontade de instituir qualquer mudança. Não há nenhuma
razão para baixar a guarda e arrefecer as lutas populares até
novo aviso. Em troca, temos muitas razões para continuar a pressionar o
acelerador da máquina que move a história"
[29]
. Por esta razão, Chávez contrapõe ao sistema existente de
representação parlamentar a ideia de que 'O povo
soberano deve transformar-se no objecto
e no sujeito
do poder. Esta opção não pode ser negociável para
revolucionários'
[30]
. Quanto à estrutura institucional na qual este princípio deve ser
realizado, ele projecta-a no curso de uma mudança radical:
O poder eleitoral do estado federal tornar-se-á o componente
político-jurídico pelo qual os cidadãos serão
depositários da soberania popular, cujo exercício
permanecerá daqui para a frente realmente nas mãos do povo. O
poder eleitoral será estendido a todo o sistema
sócio-político da nação, estabelecendo os canais
para uma verdadeira distribuição policêntrica de poder,
deslocando o poder do centro para a periferia, aumentando o poder efectivo da
tomada de decisão e a autonomia das comunidades e municipalidades
particulares. As Assembleias Eleitorais de cada municipalidade e estado
elegerão Conselhos Eleitorais que possuirão um carácter
permanente e funcionarão com independência absoluta dos partidos
políticos. Eles serão capazes de estabelecer e dirigir os
mecanismos mais diversos de democracia directa: assembleias populares,
referendos, plebiscitos, iniciativas populares, vetos, revogação,
etc. ... Assim, o conceito de democracia participativa será transformado
numa forma na qual a democracia baseada na soberania popular se constitui como
a
protagonista
do poder. É precisamente nestas fronteiras que temos que traçar
os limites de avanço da democracia bolivariana. Então nós
deveremos estar muito perto do território da
utopia.
[31]
Se tais ideias podem ser transformadas em realidade ou deverão continuar
sendo ideais utópicos é uma questão que não pode
ser decidida nos limites da esfera política. Em si mesma, esta é
uma necessidade de transformação radical que pressagia, desde o
início, a perspectiva de "fenecimento do Estado". Na
Venezuela, o país em que até
90 por cento da população
se rebela pela abstenção eleitoral contra o "absurdo do
voto"
[32]
, contra as práticas políticas tradicionais e o uso
apologético legitimador ao qual é submetido o "sistema
democrático eleitoral", com a falsa pretensão de que o
sistema está inquestionavelmente justificado pelo "mandato
conferido pela maioria", nenhuma condenação do vazio
paternalismo parlamentar pode ser considerada excessiva. Nem se pode argumentar
seriamente que a elevada participação eleitoral seja a prova de
um consenso popular democrático realmente existente. Afinal de contas,
em algumas democracias ocidentais o acto de votar é compulsório e
não acrescenta mais valor legitimador que as formas mais extremas de
abstencionismo abertamente crítico ou resignadamente pessimista.
Não obstante, a medida da validade da crítica radical ao sistema
de representação parlamentar é o empreendimento
estratégico de não só exercitar a "soberania do
trabalho em assembleias políticas, não importa o
quão
directas
elas possam ser em relação à sua organização
e ao seu modo de tomada de decisão política
, mas na actividade de vida produtiva e distributiva auto-determinada dos
indivíduos sociais em todo o domínio singular e em todos os
níveis do processo sócio-metabólico. Isto é o que
traça a linha de demarcação entre a
revolução socialista, que é socialista na sua
intenção
como a Revolução de Outubro de 1917 , e a
"revolução permanente"
de transformação socialista efectiva. Sem a transferência
progressiva e total da tomada de decisões reprodutivas e distributivas
materiais aos produtores associados não pode haver esperança para
os membros da imunidade pós-revolucionária de se transformarem em
sujeitos
do poder.
18. 4.4
Na segunda metade do século XX, ninguém argumentou mais
convincentemente a favor de garantias legislativas contra o abuso do poder
político e a violação dos direitos humanos que Norberto
Bobbio. Consciente da desumanidade praticada, em nome do socialismo, pelo
sistema do tipo soviético, combinou os melhores traços do
liberalismo com as aspirações do socialismo democrático.
Rejeitando firmemente a ideia da "democracia directa", ele advogou a
instituição de garantias e melhorias dos direitos humanos por
meio do sistema legislativo parlamentar
[33]
. Mas, significativamente, a melhoria das condições existentes,
por meio de direitos formalmente garantidos, advogada por Bobbio, tem se
tornado progressivamente mais dependente das mudanças das
determinações e imperativos
materiais
do sistema do capital. Consequentemente, uma crítica radical desse
sistema como ordem sócio-metabólica parece ser
pré-condição necessária para avaliar as medidas
legislativas com ele compatíveis.
Numa entrevista concedida em 1992, Bobbio enfatizou que, na nossa época,
o direito à liberdade e ao trabalho, juntamente com os direitos
individuais à previdência social, deve ser complementado com os
direitos das gerações actuais e futuras viverem num meio ambiente
despoluído, com o direito de auto-regular a procriação
humana, de garantir a sua privacidade contra todas as transgressões
perpetradas pelo omnipresente Estado controlador. E de garantir-se legalmente
contra os sérios perigos que afectam cada vez mais o património
genético
[34]
. Por mais que possamos concordar com todas essas necessidades, é
inquietantemente claro que somente por meio de um bem sucedido confronto com os
enormes interesses materiais e políticos contrários seria
possível até mesmo a decretação parlamentar de
garantias e dos direitos advogados
com excepção, talvez, do formal "direito à
liberdade" que, para a maior parte da humanidade, é na
prática esvaziado de todo o conteúdo material pelo actual
controlo sócio-metabólico. Além disso, a
decretação formal em si não pode oferecer garantias da sua
implementação, como testemunham amplamente os inumeráveis
princípios constitucional-democráticos solenemente proclamados e
as incontáveis leis "que não pegam" que adornam as
legislações. Pois elas "não pegam" precisamente
porque podem, ou talvez pudessem, restringir o poder do capital. Num mundo de
desemprego crónico, de constantes ataques até mesmo aos escassos
vestígios do "Estado de bem-estar social" e do sistema de
previdência social, vive-se sob a pressão de explorar tudo ao
máximo, desde os recursos não-renováveis até os
avanços eticamente mais questionáveis feitos na biotecnologia e
na informática, directamente subordinados aos ditames da
acumulação lucrativa do capital. Neste mundo, somente em sonho se
poderia fazer oposição diametral a esses desenvolvimentos por
meio dos bons ofícios de uma legislatura iluminada. Igualmente, seria
milagre que um sistema de controlo reprodutivo estruturalmente incapaz de
planear e impedir o impacto nocivo do seu próprio modo de
operação pudesse codificar e respeitar, até mesmo a
curtíssimo prazo, os direitos das
gerações futuras
em conflito com os seus imperativos materiais. Naturalmente, essa
circunstância não invalida o argumento do filósofo
italiano, para quem a esquerda deveria lutar de todas as maneiras
possíveis para tornar as pessoas conscientes dos méritos de tais
necessidades como parte da sua crítica à ordem social vigente.
Mas isso coloca imediatamente em relevo as desesperadoras
limitações das instituições legislativas
disponíveis para solucionar os profundos problemas reprodutivo-materiais
identificados pelo próprio Bobbio.
A social-democracia, na sua longa história, primeiro perseguiu a
alternativa de tentar introduzir grandes mudanças nas
relações de classe predominantes graças à reforma
parlamentar e, depois de poucas décadas de fracasso em levar adiante os
objectivos da transformação socialista, terminou por
renegá-los totalmente. De modo algum isso foi acidental ou simplesmente
"traição pessoal" dos representantes da
social-democracia parlamentar aos seus antigos princípios. O projecto de
instituir o socialismo pelos meios parlamentares estava condenado desde o
início, pois eles sonharam a realização do
impossível
e prometeram transformar gradualmente em ordem socialista algo
radicalmente diferente
um sistema de controlo da reprodução social sobre o qual eles
não tinham, e nem poderiam ter, qualquer controlo significativo dentro
do Parlamento e por meio dele.
Como vimos, o capital
por sua própria natureza e suas determinações
internas é
incontrolável.
Portanto, investir as energias de um movimento social na
tentativa de reformar
um sistema substantivamente
incontrolável
é um empreendimento muito mais infrutífero do que o trabalho de
Sísifo, já que a simples viabilidade mesmo da reforma mais
limitada é inconcebível sem a capacidade de exercer controlo
sobre aqueles aspectos ou dimensões do complexo social que estamos
tentando reformar. Desde o princípio, isso foi o que condenou e tornou
auto-contraditório o empreendimento parlamentar social-democrata. Por
décadas os partidos social-democratas continuaram a iludir-se a si
próprios e aos seus eleitores de que seriam capazes de instituir,
"no devido tempo", por meio da legislação parlamentar,
uma
reforma estrutural do incontrolável sistema do capital.
O beco sem saída da social-democracia não foi de modo algum o
caminho original do movimento socialista. Somente com o surgimento e a
consolidação da Segunda Internacional, seguir o caminho da
reforma e da acomodação parlamentar se tornou a
orientação dominante nos partidos políticos da classe
trabalhadora. Naturalmente, os apologistas cegos do abandono de todos os
objectivos socialistas pelas orientações dos actuais
líderes da social-democracia e dos partidos trabalhistas tentam
retrospectivamente reescrever a história, sugerindo grotescamente que
O original e, para a sua época, audacioso
objectivo do socialismo
era
o capitalismo democrático.
Somente a partir da "década de 1840", quando
Marx e Engels roubaram o termo,
"socialismo" se tornou um projecto cuja ambição era
destruir o capitalismo. A cláusula IV (da Constituição do
Partido Trabalhista Britânico de setenta anos atrás) permanece um
texto fundamentalmente marxista, apesar da sua linguagem vacilante e do desejo
dos seus autores de distanciar o Partido Trabalhista dos piores excessos da
ditadura do proletariado de Lenine. Daí a importância da
declaração de Blair (actual líder). Ele está
desafiando o seu partido a, finalmente,
enterrar o socialismo marxista
.
[35]
Os factos históricos, intencionalmente postos de lado pelos apologistas,
dizem o contrário. A negação radical da ordem capitalista
aconteceu bem antes de Marx e Engels terem posto os seus olhos na Inglaterra.
Pelo ângulo da classe trabalhadora, as perseguidas sociedades secretas
comprometidas com a negação das incorrigíveis
portanto, irreformáveis e "não-democratizáveis"
iniquidades da ordem estabelecida datam ainda da Revolução
Francesa e suas conturbadas consequências. Na verdade, a primeira
relação de Marx com as demandas intransigentes do socialismo
anti-capitalista radical aconteceu precisamente em tais sociedades secretas da
classe trabalhadora durante a sua permanência na França, ainda
jovem, bem antes de começar a escrever o seu seminal
Manuscrito económico e filosófico de 1844.
Alguém que coloque seriamente no papel a proposição de que
um movimento revolucionário histórico-mundial foi inventado por
dois jovens intelectuais alemães exilados que "roubaram o termo
socialismo" está completamente fora de contacto com a realidade.
Tão desmiolado quanto é quem pontifique, só porque sonha
com isso, que ao substituir o duradouro compromisso com a propriedade
pública na cláusula IV da Constituição do Partido
Trabalhista pela declaração vazia e sem princípios do
"novo trabalhismo" Tony Blair pudesse realmente "enterrar o
socialismo marxista"
"se ele encontrar as palavras certas", como diz a desejosa
projecção.
A perda de sentido do movimento da classe trabalhadora ocorreu na última
terça parte do século XIX, e as suas consequências
negativas evidenciaram-se com o sucesso parlamentar
e a acomodação
dos partidos social-democratas e trabalhistas. Por si só, tal sucesso
pode ser considerado uma vitória de Pirro pelo seu impacto, a longo
prazo, sobre a causa da emancipação do trabalho. O preço
pago foi o fatal enfraquecimento estrutural da potencialidade de luta do
trabalho, causado pela aceitação das amarras parlamentares como a
única forma legítima de contestar a dominação do
capital. Em termos práticos, isso significou a divisão
catastrófica do movimento nos denominados
"braço político"
e
"braço sindical"
do trabalho, com a ilusão de que o "braço
político" poderia servir ou representar, codificando
legislativamente, os interesses da classe trabalhadora organizada nas empresas
industriais capitalistas pelos sindicatos de cada ramo do "braço
sindical". Mas, com o passar do tempo, tudo aconteceu exactamente ao
contrário. O "braço político", ao invés
de fazer valer o seu mandado político em estreita
colaboração com o "braço sindical", utilizou as
regras do jogo parlamentar com a finalidade de subordinar os sindicatos a seu
favor e das determinações políticas finais do capital,
impostas através do Parlamento. Assim, em vez de reforçar
politicamente a capacidade de luta do "braço sindical" nas
suas disputas com as empresas, o "braço político"
em nome da sua própria exclusividade política
confinou os sindicatos às
"disputas estritamente económicas do trabalho".
Dessa maneira, o que se supunha ser o "braço político do
trabalho" terminou por desempenhar um papel crucial na activa
imposição ao trabalho
pela força da "legislação parlamentar de
representação" do interesse vital do capital:
"banir a acção sindical politicamente motivada"
como categoricamente inadmissível "numa sociedade
democrática".
Tanto o reformismo como as suas realizações necessariamente
precárias foram resultados dessa articulação dividida do
movimento trabalhador como "braço político" e
"braço sindical". Dentro da estrutura de comando global do
capital, como estrutura racional da legitimidade e da autoridade
democráticas, a operação desse modelo dividido trouxe
consigo a necessária aceitação e
internalização das
coacções objectivas materiais do capital.
Concomitantemente, o trabalhismo reformista manteve por algum tempo a ideia
contraditória de que os objectivos socialistas eram inteiramente
compatíveis com as coacções materiais do capital. Nesse
espírito, Harold Wilson e outros líderes trabalhistas afirmaram
que a conquista "dos altos escalões de comando da economia"
tornará possível que "um dia" o socialismo se realize.
Na verdade, "conquistar os altos escalões" revelou ser nada
mais do que a nacionalização dos sectores falidos da
indústria capitalista, compensando generosamente os seus antigos
proprietários pelos seus bens inúteis: um processo que poderia,
de qualquer forma, ser facilmente revertido por actos parlamentares de
"privatização", uma vez que a sua lucratividade para o
capital tivesse sido assegurada por meio de generosos investimentos estatais,
financiados por impostos extorquidos das pessoas comuns. Ironicamente, esse
caminho, com as suas curvas e oscilações
auto-contraditórias, conduziu da armadilha reformista do movimento do
trabalho à completa desintegração do próprio
reformismo social-democrata, por meio do qual não somente se renunciou
aos professados "objectivos últimos" socialistas, mas
até mesmo às referências ao termo "socialismo",
que passaram a ser evitadas como praga.
Outra ironia que sublinha a lógica perversa da acomodação
parlamentar dentro dos limites anti-trabalho da estrutura de comando
político global do capital é o destino dos partidos
"revolucionários" da Terceira Internacional. Aí se
coloca nitidamente que determinações
estruturais
fundamentais estavam em actividade nas clamorosas derrotas sofridas pela
esquerda institucionalizada no decorrer do século. E para piorar a
situação essas derrotas aconteceram apesar das crises profundas
da ordem socioeconómica e política em vigor. Nesse sentido, o
"caminho italiano do socialismo" e o subsequente "grande
compromisso histórico" do Partido Comunista Italiano, no contexto
das mesmas amarras da representação e da acomodação
parlamentares, com uma idêntica divisão do movimento dos
trabalhadores italianos entre o "braço político" e o
"braço sindical", tal como visto nos países onde havia
partidos social-democratas e trabalhistas, revelaram ser tão desastrosas
para o movimento socialista quanto a desintegração das variantes
social-democratas do reformismo.
Assim, diante da dolorosa experiência histórica à qual o
trabalho tem sido sujeitado pelo fracasso dos partidos parlamentares tanto da
Segunda como da Terceira Internacionais, não é muito
difícil perceber que não existe esperança de uma efectiva
re-articulação do radicalismo socialista sem que se superem as
contradições que necessariamente nascem da fracassada
divisão entre o "braço político" e o
braço sindical" do trabalho. Paradoxalmente, a
separação e a compartimentalização reformistas dos
"dois braços" do trabalho só podem resultar numa
paralisante "acefalia" do movimento: ou seja, a mais ou menos
consciente internalização da lógica do capital, tanto em
termos do seu constrangimento material como também dos seus
princípios reguladores político-democráticos
legislativamente protegidos. Isso porque a conformidade com as regras do
sistema determina aprioristicamente em favor do capital o que pode e o que
não pode ser "racionalmente disputado e contestado",
não apenas no domínio político, mas ainda mais em
relação à viabilidade de questionar e desafiar a estrutura
estabelecida do processo de reprodução social. Assim, como
resultado da divisão sintonizada com essas regras, o "braço
político" perde o poder material por meio do qual o movimento dos
trabalhadores poderia efectivamente opor-se à lógica do capital e
à sua força de auto-afirmação. Perde ainda o poder
de lutar não apenas por concessões mínimas, que podem ser
contidas e, se necessário, revertidas na moldura estrutural existente,
mas pela instituição de uma ordem alternativa da
reprodução social. Ao mesmo tempo, enquanto o "braço
político" se tornou impotente por privar-se da força
combativa material do trabalho produtivo que é vitalmente
importante para a continuação da reprodução do
capital , o "braço sindical" foi obrigado a abandonar
inclusive a
preocupação legítima não só com uma
mudança estrutural maior, mas até mesmo com qualquer objectivo
político. Ao contrário, foi constrangido a resignar-se com
melhorias marginais. E mesmo a busca por tais melhorias marginais e parciais
precisa de ficar estritamente subordinada às mudanças
conjunturais
e às limitações das unidades
particulares
do capital com as quais as unidades locais do "braço sindical"
são, por lei, autorizadas a entrar em "disputa
económica".
18.4.5
Aqui o problema insuperável é a natureza do poder sob a
dominação do capital problema que permanecerá caso
não haja uma reorientação fundamental do objectivo
estratégico da transformação socialista. Políticos
reformistas, seja do tipo social-democrata, seja do daqueles que fantasiam o
"caminho italiano para o socialismo" dentro dos limites paralisantes
do capitalismo actualmente existente, nunca encararam este problema. De facto,
não poderiam encará-lo porque, se o fizessem, poderiam expor o
carácter irrealizável das suas estratégias
auto-contraditórias. Ao tentarem
reformar o incontrolável,
também pressupunham
um poder que não existia nem poderia existir
como alavanca para a prometida transformação da ordem social
estabelecida. Tal alavanca não poderia existir pela simples razão
de que
o poder de capital social total, como controlador do processo de
reprodução sócio-metabólica, é
indivisível,
apesar das mistificações perpetuadas pela ideologia burguesa
sobre "a divisão de forças" na esfera política.
Compreensivelmente, portanto, as estratégias construídas sobre os
dois pilares de 1)
reformar o incontrolável
e 2)
"conquistar os mais altos postos de comando"
do sistema estabelecido, por meio da alavanca de um
poder inexistente,
teriam que terminar com a derrota auto-imposta da esquerda histórica.
Como vimos acima, isso necessariamente aplicou-se,
mutatis mutandis,
também às sociedades pós-revolucionárias "do
socialismo realmente existente" de tipo soviético. Pois, as
"personificações do capital"
pós-revolucionárias das sociedades de tipo soviético,
embora não funcionassem em e por meio de um ambiente parlamentar
deixaram de enfrentar a
incontrolabilidade do capital
onde ela se afirmava maciçamente: isto é, como o regulador do
processo de reprodução sócio-metabólica. Assim,
dada a sua incapacidade de identificar no nível
sócio-metabólico o verdadeiro objecto de
intervenção e reestruturação estratégicas,
tentaram exercer o poder de forma extremamente voluntarista, numa tentativa de
solucionar a sua verdadeira
falta de poder
com respeito aos imperativos materiais objectivos e às necessidades
expansionistas cegamente seguidas
porém cumpridas cada vez com menos eficiência do sistema do
capital pós-capitalista.
O facto de o capital, como um modo de reprodução
sócio-metabólico, ser incontrolável a verdadeira
causa sui
compatível com "melhorias e correctivos" dos
efeitos
e
consequências,
mas não da base causal do sistema, como já vimos em vários
contextos significa não somente que o capital é
irreformável,
mas também que não
pode compartilhar o poder,
mesmo a curto prazo, com forças que pretendam transcendê-lo como
"objectivo final", não importa quão longo seja o prazo.
Esta é a razão pela qual as estratégias de "reforma
gradual" da social-democracia tinham que resultar em absolutamente nada em
termos de potencial transformador socialista. Enquanto o capital permanecer
como o regulador efectivo do sócio-metabolismo, a ideia de "luta
igual" entre capital e trabalho está destinada a permanecer uma
mistificação. Isso porque essa é uma ideia perpetuada e
realçada pelos rituais de enfrentamento parlamentar dos
"representantes do trabalho" com os seus adversários
legislativos: um enfrentamento sem competição", cuja
premissa auto-contraditoriamente aceite é a permanência da
posição material do capital. As limitadas disputas
políticas no Parlamento, estritamente reguladas por instrumentos e
instituições da "violência legítima" que
se apoiam na estrutura global de comando político do capital, não
podem ser um
enfrentamento contra o capital,
mas entre alguns dos seus
componentes
mais ou menos diferenciados. Os membros do Parlamento que professam a sua
submissão quer aos variados interesses empresariais, quer às
secções do trabalhismo reformista, de boa vontade se submetem aos
constrangimentos necessários à definição de seus
objectivos legislativos de acordo com as regras auto-beneficentes do
"Estado constitucional" do capital social global. Ao mesmo tempo, os
representantes do trabalho que tentam manter uma postura crítica radical
ou são mantidos fora do Parlamento, ou são totalmente
marginalizados no seu interior. Em contraste com o sistema parlamentar, nas
sociedades pós-capitalistas as "personificações do
capital" funcionaram sob mistificação bem diferente, mas
igualmente prejudicial. Tentaram tratar o capital ou como uma
entidade material
o depositário neutro da "acumulação
socialista"
ou como "mercado social",
mecanismo
igualmente
neutro:
ignorando que o capital, na verdade, é sempre uma
relação social.
Assim, mesmo que a nova legalidade do capital tivesse que assumir uma forma
diferente, o
fetichismo do capital
dominou as sociedades pós-capitalistas da mesma forma que imperou sob o
capitalismo.
A relação entre capital e trabalho não pode ser
considerada
simétrica,
dada a
impossibilidade de equilibrar o poder em disputa
e muito menos de alterá-lo a
favor do trabalho.
O conceito de "equilíbrio de poder" como regulador da
força sócio-política interna pertence apenas ao mundo do
capital, influenciando com "legítimo interesse" as
inter-relações variáveis entre os menores e os maiores
constituintes do capital social total articulado em qualquer ponto particular
na história. A sempre crescente "selva legislativa",
mencionada na secção 18.4.3, é o corolário
necessário desse tipo de articulação estrutural do capital
social como um todo. A essa articulação
sujeita às limitações práticas originadas da
tendência monopolista do sistema segue-se inevitavelmente
também a luta que busca na arena legislativa alterar o equilíbrio
entre
os componentes particulares do capital. E isto inclui também as
limitadas possibilidades de acção legislativa concedidas aos
sectores do trabalhismo reformista na periferia do equilíbrio,
constantemente renovado e do mesmo modo superado, entre as cambiantes unidades
do capital. (Um bom exemplo desse tipo de melhoria marginal orientada para o
equilíbrio é a "iluminada" legislação
"em favor do trabalho" de Sir Winston Churchill, em 1906, sobre os
níveis do
salário mínimo,
bem como as últimas controvérsias na União Europeia,
solicitando igual remuneração para os grupos de trabalhadores que
se transfiram de um país-membro ao outro. Apesar da impecável
descendência legislativa churchilliana, a derrubada completa da boa e
velha "legislação sobre salário mínimo"
pela "direita radical" sob Margaret Thatcher e seus sucessores
demonstra a extrema precariedade daquelas "conquistas do trabalho"
sob circunstâncias históricas significativamente alteradas,
exactamente como a controvérsia actual esconde os interesses subjacentes
de auto-protecção do capital e a necessária fragilidade
das medidas trabalhistas a eles associadas.).
Embora os interesses dos integrantes particulares do capital possam ser
equilibrados com sucesso ainda que de maneira estritamente
temporária
, não pode haver equilíbrio entre os interesses e o poder
respectivamente do capital e do trabalho. O trabalho ou é o
antagonista estrutural e a alternativa sistémica ao capital
e, nesse caso, "compartilhar a força" com o capital
é uma auto-contradição absurda
ou permanece a parte estruturalmente subordinada (o constantemente
ameaçado "custo de produção") do processo de
auto-reprodução ampliada do capital e, como tal,
totalmente sem poder.
A força efectiva do trabalho na ordem sócio-económica
existente
parcial
e
negativa
como, por exemplo, a
arma da greve.
Por conseguinte, ele não pode ser mantido na sua negatividade
indefinidamente, porque a premissa prática necessária de tal
operação como na extraordinária greve
pacífica de um ano dos mineiros ingleses é a
continuação do funcionamento da ordem
sócio-metabólica, cujas partes não em greve devem ser
capazes de assumir a carga do trabalho temporariamente negado. A ideia de uma
greve política geral é uma proposta radicalmente diferente. Para
ser bem sucedida, deve ter por objectivo uma mudança fundamental na
própria ordem sócio-reprodutiva, de outro modo o seu impacto,
como nas greves gerais do passado, fatalmente será em seguida anulado.
Assim, o paradoxo do poder que desafia o movimento socialista é o facto
de, mesmo na sua
parcialidade,
o exercício da força
negativa
do trabalho actualmente existente ser insustentável a longo prazo.
Somente a sua força
potencialmente
positiva é verdadeiramente sustentável porque, pela sua
própria natureza, não se limita à busca de objectivos
parciais.
A condição da sua realização é a
força positiva do trabalho, entendido como alternativa
sistemática ao modo de controlo do capital, que deve considerar-se a si
próprio como o princípio estrutural radical do
sócio-metabolismo como um todo. Assim, qualquer que seja a maneira com
que o olhamos quer na sua negatividade parcialmente contestadora, quer
como a potencialidade
positiva da completa transformação socialista ,
toma-se claro que sob nenhuma circunstância pode alguém pensar no
poder do trabalho compartilhado com o capital (ou ao contrário), apesar
das ilusões tão bem conhecidas e das resultantes e
inevitáveis derrotas do reformismo parlamentar.
Da relação assimétrica entre o capital e o trabalho
também decorre que
em completa contradição com as práticas de
representação associadas às relações
internas da pluralidade do capital o
trabalho não pode ser representado.
De certo modo, é verdade que o capital também
não pode ser representado,
mas existe uma diferença radical em relação à
posição do trabalho. A ideia de o próprio capital ser
representado no domínio parlamentar pode apenas projectar a
ilusão do
poder compartilhado e equilibrado com o trabalho,
como encontramos nos inumeráveis contos de fadas da ideologia burguesa e
reformista. Mas o postulado de "igualdade" e
"imparcialidade", com base no qual nem o trabalho nem o capital
estão directamente representados no domínio legislativo,
supostamente regulado por algum misterioso "processo próprio da
lei", em sintonia com a ideia de Marx Weber de que os "juristas"
são os criadores autónomos do "Estado ocidental",
não é nada mais que uma camuflagem mentirosa e interesseira das
relações de poder existentes. A grande diferença é
que o capital como um todo não é representado porque
não precisa de representação,
visto que já
está no controlo completo do processo sócio-metabólico,
incluindo o controlo efectivo extra-parlamentar da sua
própria estrutura de comando político, o Estado. O trabalho, de
outro lado,
em princípio
não pode ser representado porque as suas formas possíveis de
"representação" mesmo que fosse possível
organizá-las na esfera política
com base na "igualdade" e na "justiça", o que
é impossível em vista das relações materiais e
ideológicas de poder
teriam que ser completamente estéreis, pois não podem alterar as
determinações estruturais extra-parlamentares do modo fortemente
arraigado de reprodução sócio-metabólica do capital.
Naturalmente, isso não significa que o sistema historicamente
desenvolvido de representação parlamentar seja irrelevante para a
afirmação das regras do capital sobre a sociedade. Nem se pode
considerar o seu valor para o capital somente pela sua indubitável
força de mistificação ideológica. Longe disso, pois
a representação parlamentar é capaz de realizar algumas
funções vitais na ordem sócio-metabólica existente.
Em parte, o papel regulador essencial do Parlamento consiste em legitimar (e,
desse modo, também "internalizar") a imposição
das severas regras da "legalidade constitucional" sobre o trabalho
potencialmente recalcitrante. Mas o papel do Parlamento não está,
de modo algum, limitado a isso. No seu desenvolvimento histórico,
sujeitar o trabalho à auto-legitimação da "legalidade
constitucional" ficou em segundo plano em relação à
sua função crucial, original e primeira, que consistiu e consiste
em permitir
à pluralidade de capitais
encontrar, em todos os momentos do desdobramento da dinâmica do sistema,
o necessário (mesmo que sempre temporário)
modus vivendi
e o
equilíbrio de poder entre os seus componentes.
É assim que o capital social total pode afirmar as suas regras na esfera
política sob as condições da "democracia
parlamentar".
Como vimos acima, o sistema do capital é constituído de
componentes incorrigivelmente
centrífugos,
em cuja base se encontra a igualmente incorrigível ligação
estrutural
conflictiva
comum a todos os seus componentes, desde o microcosmo até às
maiores corporações transnacionais. O capital, como totalidade
social, mantém a força centrífuga sob controlo (e
deve
fazê-lo de uma forma adequada) por meio das regras universalmente
dominantes e das determinações estruturais que objectivamente
definem o próprio capital como um modo de controlo
sócio-metabólico. As determinações em
questão são
internas
não apenas ao sistema como um todo, mas também a cada um dos seus
componentes. Por outras palavras, elas devem ser
compartilhadas
por todos os diversos componentes particulares do capital, não obstante
os interesses conflituantes de uns
vis-à-vis d
os outros. Sem compartilhá-los o que simultaneamente
também significa compartilhar o
vital interesse comum
de serem partes do sistema de controlo da reprodução
sócio-metabólica, do qual emerge a consciência de classe
auto-centrada das "personificações do capital"
, não poderiam operar entre si como uma pluralidade de capitais
afirmando
os seus interesses particulares dentro das restrições estruturais
globais e da auto-preservação dinâmica do seu sistema em
toda a situação histórica dada. Eis como o capital em si,
articulado como o modo de reprodução
sócio-metabólica actualmente existente, pode manter sob controlo
a intransponível força centrífuga das suas partes
constituintes. Não simplesmente
anulando
esta força com o que o sistema do capital deixaria de ser um
sistema viável
sui generis
, mas
complementando-a
por meio dos imperativos da reprodução sistémica global e,
desse modo, apenas impedindo o impacto
desintegrador
das insuperáveis interacções
de conflito.
É assim que o Estado do sistema do capital alcança a sua enorme
importância, não somente como a estrutura reguladora global das
contingentes relações
políticas,
mas também como um constituinte material essencial do sistema no seu
todo, sem o qual o capital não poderia afirmar-se como a força
controladora do modo estabelecido de reprodução
sócio-metabólica. Dessa maneira, nas circunstâncias da
"democracia constitucional", o sistema parlamentar é uma parte
essencial na manutenção, sob um controlo adequado, da
força centrífuga da pluralidade do capital. Nesse processo, os
interesses da multiplicidade dos capitais podem ser adequadamente
representados, pois a representação dos mais diversos interesses
do capital no Parlamento, sob o comando estrutural global político do
capital, está completamente em sintonia com as
determinações gerais do controlo sócio-metabólico.
Apesar do antagonismo estrutural entre o capital e o trabalho, que
também afecta os constituintes particulares do capital, os conflitos
entre a pluralidade dos capitais sujeitos aos limites globais das
determinações mencionadas acima
compensam-se mutuamente. Eles
nunca
podem ser dirigidos contra o
sistema
do capital, sem o qual a pluralidade dos capitais divergentes não
poderia sequer ser imaginada e muito menos existir. Assim, a força
reguladora da representação parlamentar, até onde a
pluralidade do capital diz respeito, é completamente adequada como
representação
genuína e também como
preservação
(ou "eternização") de um poder
a força de controlo sócio-metabólica
já existente.
Mas, precisamente por essa razão, o trabalho não pode, por
princípio, ser representado, na medida em que o seu interesse vital
é a
transformação radical
da ordem sócio-reprodutiva estabelecida, e não a sua
preservação:
a única compatibilidade possível com a
representação parlamentar sob a estrutura de comando
político global do capital. É assim que na esfera
política, sob todas as formas históricas conhecidas do sistema
parlamentar, a relação assimétrica entre o capital e o
trabalho anula os interesses emancipatórios do trabalho.
Há uma outra maneira pela qual a política parlamentar serve aos
interesses do capital como sistema metabólico, assim como aos interesses
dos seus múltiplos constituintes. De acordo com a dinâmica
mutável do desenvolvimento do capital social total, o Parlamento oferece
a estrutura que permite deslocamentos de longo alcance na
operação estratégica do sistema
vis-à-vis d
o trabalho. Isso aconteceu nas décadas do pós-guerra com o
movimento do "butskellismo" (ou "uma única
nação conservadora" paternalista) até as
estratégias selvagens da "direita radical" de Thatcher. Muito
revelador nesse particular é o nítido contraste entre duas
soluções parlamentares para a crise estrutural do capital, tal
como percebidas e aconselhadas por diferentes secções do capital
inglês em 1979. O primeiro dos quinze longos anos de
dominação do Parlamento inglês pelo governo de Margaret
Thatcher também testemunhou o eclipse da linha política anterior
do Partido Conservador, resumido numa nostálgica entrevista concedida em
Fevereiro de 1979 à rede de televisão BBC pelo antigo
primeiro-ministro Harold Macmillan. Foi assim que "Super-Mac"
que mais tarde iria denunciar sarcasticamente como vulgares e míopes,
por "vender a prata da família", as corruptas políticas
de privatização do governo Thatcher resumiu a sua proposta
de solução para a crise, já então evidente,
tentando manter-se em sintonia com o espírito do "consenso
político" do Estado keynesiano orientada para o bem-estar social,
seguido pelas secções dominantes do capital inglês por duas
décadas e meia depois da Segunda Guerra Mundial:
Talvez o caminho fosse colocar, de algum modo, todos juntos e dizer,
"Rapazes, tudo depende de nós;
vamos pôr mãos à obra e aumentar a produção
total da
riqueza comercial".
Isto é o que queremos... Estou certo de que no nosso país as
pessoas receberiam bem uma verdadeira liderança
"garotos e garotas, vamos nos reunir
e construir aquele mundo maravilhoso que está ao nosso alcance"...
Estou certo de que existem forças agora que, pudéssemos ao menos
unir, quer no governo, quer numa unidade das grandes organizações
dos empregadores e sindicatos,
quer nas igrejas todas as pessoas que formam a opinião
diriam "Basta; nós precisamos
começar de novo". É
uma
questão de moral;
precisamos ter determinação e precisamos recuperar a coragem.
[36]
Poucos meses depois dessa entrevista, o Partido Conservador, sob a
liderança de Margaret Thatcher, foi eleito para o governo. Num curto
período de tempo
todos
os membros parlamentares do Partido Conservador, a favor da
"nação única",
foram taxados de incapazes e brutalmente afastados da política,
exactamente como seriam mais tarde os membros da ala esquerda do Partido
Trabalhista sob a liderança dos ex-esquerdistas Michael Foot e Neil
Kinnock. A intenção já não era estimular os
"garotos e garotas" a unir-se com o governo e com as "grandes
organizações de empregadores e sindicatos", para a causa da
"questão moral" de buscarem juntos "um novo
começo" sob a forma do aumento da "produção de
riqueza comercial". Longe disso, a
mudança de guarda
no Partido Conservador (e não apenas naquele partido) colocou como item
principal na agenda política a opressão
"constitucional" dos órgãos de defesa da classe
trabalhadora. "Os garotos e garotas" no Parlamento antigos
colegas de Macmillan ocupavam-se com leis punitivas anti-trabalho e
medidas industriais e financeiras concebidas e instituídas no mesmo
espírito em favor do capital. E a mudança do domínio
político de algumas secções do capital para outras mais
agressivas não foi, de modo algum, um aperfeiçoamento
exclusivamente inglês. Pelo contrário, o desdobramento estrutural
da crise do sistema do capital provocou em todos os países
"capitalistas avançados" medidas políticas, industriais
e financeiras muito semelhantes, bem como as racionalizações
ideológicas correspondentes.
Por mais difícil que seja acreditar no que os nossos olhos lêem na
passagem abaixo, temos que lhe dar a atenção devida como um
exemplo típico originário da "direita radical" dos
Estados Unidos. Sintetiza a "teoria económica objectiva" de um
importante e expert/especulador financeiro e influente
lobbista,
James Dale Davidson
[37]
. Em prol dos méritos "científicos" da linha
anti-trabalho, ele argumenta:
Como investidor, você deve ser sempre cauteloso com as
suposições correctas acerca das relações
económicas. Isso é especialmente verdadeiro num tópico
como [surpresa, surpresa!] salários, quando súplicas e
considerações políticas se transformam em
obstáculos no caminho da verdade. A verdade é que quaisquer que
sejam as suas intenções, é tremendamente difícil
para os empregadores nas sociedades de mercado "explorar" os
trabalhadores. Isso é quase impossível quando os trabalhadores
são livres para desenvolver os seus talentos e movimentar-se de uma
oportunidade para outra. [Isto é, na terra-do-nunca da utopia do
"capitalista do povo".] Surpreendentemente [desta vez, uma surpresa
real], é muito mais comum os trabalhadores explorarem os capitalistas.
Em geral, essa é a função dos sindicatos dos
trabalhadores. Eles aumentam o nível de salário acima do
nível de mercado. O resultado é que os investidores recebem uma
porção menor da renda da empresa do que receberiam se as coisas
fossem diferentes. ... a existência de instituições
democráticas durante períodos em que o aumento da tecnologia
impulsiona a economia mais ou menos garante que os trabalhadores explorem os
capitalistas.
[38]
De modo característico, a descrição das mudanças
favoráveis ao capital nem sequer menciona a cruel
intervenção dos "parlamentos democráticos", que
solapa a limitada força defensiva dos sindicatos, por meio da
debilitação em larga escala da força de trabalho e da
concomitante criminalização da luta contra ela. Tudo é
atribuído, com a costumeira objectividade científica, aos
factores
tecnológicos
estritos. Como se nem as forças políticas que o autor, na
condição de
lobbista,
tenta ansiosamente influenciar com todos os meios à sua
disposição existissem. É assim que se supõe que as
leis anti-sindicato do passado recente se tornam completamente irrelevantes
para a compreensão desses desenvolvimentos. Dizem-nos que
tão-somente a tecnologia racionalmente inquestionável explica por
que
"os sindicatos estão agora a coxear
nas sociedades do Ocidente, pois a tecnologia está a reduzir as
economias de escala. Isso explica por que os
diferenciais de renda estão novamente aumentando,
visto que trabalhadores não-especializados são obrigados a
procurar emprego com salários de liquidação"
[39]
. Na verdade, eles são "obrigados a encontrar emprego
se puderem,
não com salário de liquidação", mas
frequentemente com salário bem abaixo do nível de
subsistência, dado o impacto devastador do
desemprego crónico
nas idealizadas "economias de escala correctamente ajustadas" do
sistema do capital contemporâneo. Evidentemente, tudo isso nada tem a ver
com a selvajaria das leis anti-sindicatos, nem com a desumanizante brutalidade
do "desemprego estrutural". Na verdade, o próprio desemprego
deve ser o artifício mais astuto já imaginado pelo trabalho para
"explorar os capitalistas e investidores", pobres desamparados,
obrigando-os a "receber uma porção menor da receita do que
eles poderiam receber de outro modo"; "outro modo" que seria
possível se os desempregados lhes permitissem fazer a economia funcionar
sob as condições mais generosas de geração de renda
do pleno emprego.
Mas, saindo do mundo da fantasia cuidadosamente construído pelos
cínicos apologistas do capital para voltar à realidade, existem
mais duas condições agravantes a ser consideradas aqui. A
primeira é que a acomodação do trabalho às
coacções paralisantes da estrutura parlamentar no momento do
aprofundamento da crise estrutural do capital faz com que ele seja gravemente
afectado pelo impacto negativo das mudanças ocorridas na estrutura de
poder do capital social total e pela pequena margem de acção que
elas lhe podem oferecer, mesmo para os mais limitados ganhos defensivos. A
actual submissão do trabalhismo reformista às forças
radicalmente opostas aos interesses da classe trabalhadora demonstra que a fase
histórica das estratégias defensivas já se esgotou.
Paralelamente à transformação dos tradicionais partidos
social-democratas e trabalhistas em mansos defensores da tímida
e, em seus próprios termos de referência, ineficaz reforma
socioeconómica e política do trabalhismo liberal, a social
democratização dos partidos comunistas do Ocidente oferece
exemplos dolorosamente óbvios da derrota sofrida pela esquerda
histórica em razão desses deslocamentos e mudanças no
interior dos limites da acomodação parlamentar. Uma
mudança irónica nessa infeliz, mas eloquente, história
é o facto de que alguns proeminentes políticos da ala direita do
Partido Trabalhista britânico se encontrem agora marginalizados por suas
"inaceitavelmente francas opiniões esquerdistas", que, dizem,
prejudicam as perspectivas do "novo trabalhismo no governo; tais
opiniões são, de facto, inaceitáveis a tal ponto que eles
próprios se sentem obrigados a anunciar a sua retirada da
política na próxima eleição geral, evitando assim a
humilhação da "derrota eleitoral". À sua
maneira, essa mudança histórica acentua, por meio da
"preparação para governar" adoptada pelos
líderes do partido, o facto de não se poder tolerar nem mesmo as
promessas não cumpridas da velha cláusula IV, pois sempre que o
trabalhismo reformista assume o governo o capital continua no comando.
A segunda condição agravante é ainda mais séria,
já que coloca em questão a própria sobrevivência da
humanidade. A despeito da pioria das condições
sócio-económicas e até da eliminação da
margem para ajustamentos menores a favor do trabalho
com o activo envolvimento de medidas autoritárias legislativas e a
cumplicidade do seu próprio partido ,
o capital é incapaz de resolver as suas crises estruturais e de
reconstituir com sucesso as condições da sua dinâmica
expansionista. Ao contrário, para permanecer no controlo do
sócio-metabolismo, ele é compelido a invadir territórios
que não pode controlar nem utilizar para os fins da
acumulação sustentável de capital. Além disso, para
permanecer no comando da reprodução social, por maior que seja o
custo para a humanidade, o capital deve minar até mesmo as suas
próprias instituições políticas, que no passado
funcionaram como um correctivo parcial e como uma espécie de
válvula de segurança. Nesse passado, ainda estava mais ou menos
aberta a via do deslocamento expansionista das crescentes
contradições do capital que se acumulavam. Hoje, pelo
contrário, as opções do sistema do capital estreitaram-se
em todo o mundo, inclusive na esfera da política e da
acção parlamentar correctiva. Essa redução das
opções de recuperação da expansão traz
consigo o imperativo de dominar directamente também a política
por um cruel "consenso político" entre o capital secular e o
"novo trabalhismo num complemento apropriado às tendências
autoritárias da "nova ordem mundial" que não se
restringe apenas ao Partido Trabalhista inglês. A
consumação desse consenso cruel
longe de ser o último triunfo do capital, como afirmam as fantasias
absurdas sobre o "fim da história conflitual"
antes prenuncia o perigo de um colapso maior, que afectaria não apenas
um número limitado de elementos centrífugos do capital,
não apenas um sector chave como a finança internacional, por
exemplo, mas o sistema global do capital na sua totalidade. Precisamente por
causa desse perigo adquire relevância e urgência a necessidade de
contrapor à força destrutiva extra-parlamentar do capital a
correcta acção extra-parlamentar de um movimento socialista
radicalmente re-articulado.
18.4.6
Quando a fase histórica de conquistas defensivas estiver exaurida, o
trabalho, na condição de antagonista estrutural do capital,
só poderá fazer avançar a sua causa
mesmo minimamente
na medida em que assumir uma postura ofensiva e, mesmo quando estiver lutando
por objectivos mais limitados, encarar como seu objectivo a
negação radical e a transformação positiva do modo
de reprodução sócio-metabólica. Somente a
adopção de uma estratégia global viável permite que
os passos parciais se tornem cumulativos, em nítido contraste com todas
as formas conhecidas do trabalhismo reformista que desapareceram sem deixar
traços, como gotas de água nas areias do deserto.
No passado, as conquistas defensivas sempre estiveram estreitamente ligadas
às fases de expansão do sistema do capital. Eram retiradas da
margem de concessões de que dispunha o sistema, e que também
podiam ser positivamente transformadas em vantagens para si próprio.
Mesmo sob as mais favoráveis circunstâncias, elas não
poderiam trazer a prometida realização "gradual" do
socialismo. Devido à sua própria natureza, eram apenas
concessões conjunturais
realizadas sob condições favoráveis ao próprio
capital e somente na qualidade de "glória reflexa" eram
proveitosas também para o trabalho. Uma vez, porém, que a fase
histórica das concessões expansionistas do capital ficou para
trás, também a acompanha a capitulação total do
trabalhismo reformista que testemunhamos nas últimas décadas. Sob
as actuais condições, não apenas novos ganhos defensivos
do trabalho estão fora de questão, como muitas das
concessões do passado devem ser gradualmente extorquidas, dependendo
este gradualismo apenas do potencial impacto desestabilizador na continuidade
da auto-reprodução do capital no caso de muitas serem retomadas
num pequeno intervalo de tempo. É isto o que torna moderada a
tendência à equalização da taxa diferencial de
exploração nos países de capitalismo avançado, ao
menos enquanto o capital social total dos países envolvidos tiver
fôlego para compensar essas concessões por meio da
dominação neo-colonial sobre áreas do planeta que oferecem
ao "capital metropolitano", graças à margem mais
elevada de exploração praticável, uma margem de lucro bem
mais alta. Contudo, mesmo esses factores paliativos actuais deverão ser
temporários e removidos com o desdobramento da crise estrutural do
capital.
Alguns "realistas" insistem (com
slogans
como "acabou a festa") que os constrangimentos que afectam o sistema
devem ser aceites como permanentes, instando também a que aceitemos a
permanência da subordinação estrutural do trabalho ao
capital. Eles pensam que acabou a fase radical da militância do trabalho,
acrescentando que no passado tudo não passou de uma grande ilusão
romântica; isso para não mencionar os "teóricos"
e "doutores vira-casacas" do "novo trabalhismo" que
atribuem as aspirações revolucionárias passadas do
movimento socialista às habilidades "literárias" dos
jovens Marx e Engels.
A dificuldade daqueles que defendem a submissão permanente do trabalho
ao capital é que eles são forçados a hipostasiar a
permanência absoluta do sistema do capital. Isso só é
possível desde que se escondam totalmente, inclusive dele
próprios, os aspectos mais destrutivos do controlo
sócio-metabólico do capital que não apenas são
visíveis aos socialistas mas a todos aqueles que se disponham a fazer os
cálculos ambientais mais elementares. No passado, a perspectiva
estratégica do trabalhismo reformista não se angustiava com essas
preocupações, portanto a distinção entre o
"domínio da sociedade sobre a riqueza" em vez do
"domínio alienado da riqueza sobre a sociedade" não
poderia ter absolutamente nenhum significado para ele. Porém, nos dias
de hoje estes problemas não devem mais ser ignorados. Nem é
possível identificar o trabalhismo reformista que necessariamente se
esvazia e se desintegra, com o próprio trabalho. Hoje é
óbvia a constatação de que a história do
trabalhismo reformista se caracteriza por sua integração
progressiva à estrutura de comando político do capital e pela sua
completa desintegração, por meio de sua acção
capituladora mesmo como reformismo.
Desse modo, os "realistas" que projectam a harmonia tranquila entre o
capital e a força de trabalho social-democrata simplesmente ignoram a
questão, pois somente o reformismo acomodado pode ser visto em tranquila
harmonia com o capital, desde a supremacia histórica do sistema
até à sua fase de desenvolvimento destrutivo e desintegrador.
Esta concepção também mostra uma singular incapacidade de
enxergar que a própria classe do trabalho não tem como evitar o
facto de ser
antagonista estrutural do capital,
mesmo que em condições favoráveis à perspectiva
reformista aquelas em que as demandas da força de trabalho
social-democrata "tem ser adequadamente conciliadas e contidas nos limites
do sistema e usadas para fins da sua expansão dinâmica acumuladora
, o capital conceda prontamente ganhos defensivos ao trabalho.
Porém, tudo isso é radicalmente alterado quando, por qualquer
razão, a via de expansão dinâmica sofre algum bloqueio. Do
trabalho então se espera que limite as suas aspirações
inclusive as que surgem directamente das suas necessidades mais
elementares
aos imperativos da "razão" do capital, pregada por seus
próprios lideres reformistas como um "realismo
necessário".
Sob essas condições alteradas, caso elas se prolonguem (como deve
ocorrer devido à crise estrutural do sistema), o antagonista do capital
é compelido a contemplar a viabilidade de uma ofensiva
estratégica que vise à transformação radical da
ordem sócio-metabólica estabelecida. Será compelido a
fazê-lo mais cedo ou mais tarde, mesmo que o processo de
reavaliação da orientação estratégica do
movimento socialista seja muito difícil, pois deverá considerar
(e aprender com) as experiências frustradas e as expectativas negadas;
ainda que, esperamos, também da progressiva melhoria da estrutura
organizacional adequada e das medidas tácticas pelas quais os objectivos
estratégicos adoptados podem ser alcançados.
Outro argumento frequentemente usado a favor da acomodação
permanente alerta para o risco de um movimento revolucionário socialista
ter de enfrentar medidas autoritárias extremas. Este argumento é
apoiado pela ênfase que dá ao imenso poder destrutivo ao alcance
do capital e ao inegável facto histórico de que nenhuma ordem
jamais cede de boa vontade a sua posição de comando na sociedade,
utilizando, se necessário, a forma mais violenta de repressão
para conservar o seu domínio. A fraqueza deste argumento é dupla,
apesar das circunstâncias factuais que parecem apoiá-lo.
Primeiro, desconsidera que a confrontação antagónica entre
capital e trabalho não é um confronto político/militar no
qual um dos antagonistas possa ser preso ou trucidado no campo de batalha. Se
há grilhões nesta luta, estão aplicados ao trabalho,
já que o único tipo de grilhões compatível com o
sistema deve ser suficientemente "flexível" para habilitar a
classe do trabalho a produzir e ser explorada. Nem se pode imaginar que o poder
autoritário do capital seja usado exclusivamente contra um movimento
revolucionário socialista. As medidas repressivas sobre o trabalho das
duas últimas décadas
para não mencionar os muitos exemplos de emergências
históricas passadas sob o sistema do capital que foram caracterizadas
pelo uso da violência
fornecem uma indicação do que de pior poderá advir de
futuras confrontações mais agudas. Mas esta não é
uma questão do tipo ou isto ou aquilo, que ofereça alguma
garantia de tratamento justo e benevolente no caso de submissão e
acomodação deliberada do trabalho. O assunto depende da gravidade
da crise e das circunstâncias nas quais os antagonismos se desdobrem. Por
mais desagradável que esta verdade possa parecer aos socialistas, o
grilhão mais pesado que o trabalho tem que suportar, enquanto o
movimento não conseguir operar uma ruptura estratégica de
transição para uma ordem sócio-metabólica
radicalmente diferente, é o fito de continuar
atado ao capital
para a continuidade da sua sobrevivência. Mas isso é tão ou
mais verdade para o capital, com a diferença qualitativa de que ao
capital é impossível realizar uma ruptura para o estabelecimento
de uma outra ordem social. Para o capital, realmente, "não
há alternativa" e nunca poderá haver
à sua dependência estrutural da exploração do
trabalho. Este facto fixa limites bem demarcados à capacidade de o
capital subjugar permanentemente o trabalho pela violência,
forçando-o a usar contra a classe trabalhadora os
"flexíveis" grilhões mencionados. A violência
pode ser usada selectivamente, contra grupos limitados do trabalho, mas
não contra a organização de um
movimento de massa
revolucionário. Por isso é tão importante o
desenvolvimento da "consciência comunista de massa" (para usar
a expressão de Marx), em contraste com a vulnerabilidade da
orientação sectária estreita.
A segunda observação é igualmente importante porque se
refere às determinações mais íntimas do sistema do
capital como ordem sócio-metabólica necessariamente orientada
para a expansão e dirigida para a acumulação. Ainda que o
uso do poder por meio do equipamento repressivo possa, em
situações de
emergência,
servir ao propósito de recompor as relações de poder a
favor do capital, o facto de que ele é extremamente perdulário
mesmo nos próprios termos de referência do sistema. É
fundamental que se leve em conta ser impossível assegurar a
expansão e a acumulação necessárias de capital com
base na perpetuação da emergência economicamente
perdulária, para não mencionar os perigos políticos
associados a ela e que não são de forma alguma
desprezíveis. A ideia de um "Big Brother" permanente que
domina com sucesso o trabalho já é fantástica demais
até mesmo para a ficção orwelliana, quanto mais para a
realidade do modo de reprodução sócio-metabólica do
capital, pois este estará necessariamente condenado ao desaparecimento
se não puder assegurar permanentemente a sua própria
reprodução pela apropriação dos frutos do trabalho
cada vez mais produtivo e a concomitante realização ampliada de
valor, inconcebível sem um processo dinâmico de "consumo
produtivo" Contudo, nem a melhoria da produtividade do trabalho, com o
necessário crescimento da socialização do processo de
trabalho como sua condição prévia, nem a necessária
expansão do "consumo produtivo" são compatíveis
com a ideia de um estado permanente de emergência. Além disso,
como argumentou correctamente Chomsky há muitos anos atrás, o
sistema de vigilância que acompanha a manutenção bem
sucedida de um domínio autoritário permanente envolve o absurdo
(e, claro, o custo correspondente) da
regressão infinita
associada à obrigação de monitorar não apenas toda
a população, mas também o próprio pessoal
encarregado do monitoramento, além dos monitores dos monitores
[40]
etc. Devemos acrescentar ainda que a ideia da dominação
permanente do capital pelo uso da violência como premissa
necessária à
unidade
total do
capital global
contra as forças de trabalho
nacionais
que estão efectivamente sob o controlo das unidades particulares do
capital na ordem global existente (que não é unificada). Este
postulado vazio de unidade e uniformidade global do capital ignora
arbitrariamente
a lei de desenvolvimento desigual.
Não só ela, mas também a evidência histórica
de que o exercício da força em grande escala por meio da
guerra
nunca prescindiu de massas geralmente motivadas por séculos de
rivalidades nacionais para poder impor violência contra os seus iguais do
lado dos inimigos. De facto, a articulação nacional do sistema
global do capital, longe de ser um acidente histórico, foi incentivada
pela necessidade de um grau mínimo de consenso que permitisse ao capital
manter o controlo sobre a força de trabalho. Caso contrário, as
rivalidades inter-capitalistas, inclusive as conflagrações
internacionais mais abrangentes, passariam a ser riscos inadministráveis
do ponto de vista do capital social total, anulando a lógica interna do
sistema de intensificar ao máximo o conflito de interesses e fazer
prevalecer os mais fortes no
bellum omnium contra omnes
hobbesiano. Pois, na ausência de um grau suficientemente alto de consenso
entre capital e trabalho no mesmo país
geralmente presente em alto grau nos conflitos entre nações em
toda a situação de significativa disputa inter-capitalista
, o próprio sistema do capital correria o perigo de ser vencido
pelo trabalho, seu antagonista. (De facto, alguns socialistas radicais tentaram
sem sucesso combater este consenso com o programa que conclamou os
trabalhadores, quando da irrupção da Primeira Guerra Mundial,
"a voltar as suas armas contra as burguesias nacionais".) Em resumo,
todos os argumentos a favor da manutenção da
dominação permanente do capital pela imposição da
violência em massa definem de modo auto-contraditório as suas
condições de realização. Como foi mencionado na
secção 18.2.5, é insana a ideia de projectar a
dominação do capital, na sua confrontação directa
com o trabalho, pela via de um estado de
emergência
completamente
instável,
e
necessariamente passageiro,
como
condição permanente
da sua
normalidade
futura. Certamente, ninguém duvida que o uso da violência pode
adiar,
por um período de tempo mais ou menos longo, o sucesso dos
esforços positivos de emancipação do trabalho; mas
não pode
evitar
o esgotamento das potencialidades produtivas do capital. Mais do que isso, ao
contrário, o uso da violência em massa arruína as
condições objectivas do domínio do capital,
apressando o
seu esgotamento.
Como antagonista do capital, a grande dificuldade do trabalho é que,
apesar de o único objectivo viável da sua luta transformadora ser
o poder sócio-metabólico do capital com o seu controlo
estrutural/hierárquico, não simplesmente pessoal, mas objectivo,
sobre a esfera produtiva material, do qual outras formas de
"personificação" podem (e, sob as estratégias
mal concebidas, com o tempo
devem)
nascer , esse objectivo fundamental não pode ser alcançado
sem a conquista do controlo da esfera política. Além disso, essa
dificuldade é intensificada pela tentação de se acreditar
que, uma vez neutralizadas as instituições políticas do
sistema capitalista herdado, o poder do capital estaria firmemente sob
controlo; uma crença fatal que só poderia acabar nas conhecidas
derrotas históricas do passado.
Como vimos no capítulo 2, o sistema do capital é composto de
elementos incorrigivelmente
centrífugos,
complementados pela dimensão
coesiva
do poder de controlo da "mão invisível", e das
funções legal e política do Estado moderno. O fracasso das
sociedades pós-capitalistas está no facto de terem se oposto
à determinação centrífuga do sistema herdado
sobrepondo
aos seus elementos particulares conflituantes a
estrutura de comando extremamente centralizada
de um Estado político autoritário. Elas, ao contrário,
deveriam ter atacado o problema crucial de como
solucionar
por meio da reestruturação interna e da
instituição do
controlo democrático substantivo
o carácter contraditório e o correspondente modo
centrífugo de funcionamento das unidades reprodutivas e distributivas
particulares. Portanto, a simples remoção das
personificações privadas capitalistas do capital não
poderia cumprir esse papel, nem mesmo como um
primeiro passo
a caminho da prometida transformação socialista, pois a natureza
contraditória e centrífuga do sistema herdado foi de facto
mantida pela imposição da política de controlo
centralizada em prejuízo do trabalho. O sistema
sócio-metabólico tornou-se, assim, mais incontrolável do
que antes, devido à incapacidade de substituir produtivamente a
"mão invisível" da antiga ordem reprodutiva pelo
autoritarismo voluntarista das novas personificações
"visíveis" do capital pós-capitalista. Inevitavelmente,
isso provocou a crescente hostilidade dos castigados sujeitos do trabalho
excedente politicamente extraído contra a ordem
pós-revolucionária. O facto de a força de trabalho ter
sido submetida a um cruel controlo político e, às vezes,
até à desumana disciplina dos campos de trabalho das massas
não significou que as personificações do capital de tipo
soviético estivessem no controlo do sistema. A incontrolabilidade do
sistema reprodutivo pós-capitalista manifestou-se pela incapacidade
crónica de alcançar os objectivos económicos, escarnecendo
das decantadas vantagens da "economia planejada". Isso selou o seu
destino ao privá-lo da sua alegada legitimidade e fazer do seu colapso
uma simples questão de tempo. Nos estágios finais de
existência do sistema de tipo soviético, as
personificações pós-revolucionárias do capital
tentaram desesperadamente contrabandear a "mão
invisível" para dentro das suas sociedades, rebaptizando-a
para torná-la aceitável
de "socialismo de mercado"; isso apenas acentuou o facto de que,
mesmo depois de sete décadas de "controlo socialista", o
sistema pós-capitalista permanecia irremediavelmente
incontrolável, e absolutamente incapaz de produzir um controlo de
democrático substantivo das suas unidades produtivas e distributivas.
É claro que a reconstituição e a substantiva
democratização da esfera política são a
condição necessária para uma intervenção
sobre o controlo sócio-metabólico do capital, pois o poder do
capital não está, e nunca estará, limitado a estritas
funções produtivas. Para controlá-las, o capital deve ser
complementado pelo seu próprio modo de controlo político. Isso
significa que a estrutura material de comando do capital não pode
afirmar-se sem a estrutura de comando político global do sistema. Assim,
uma alternativa ao controlo sócio-metabólico do capital deve
abranger todos os aspectos complementares do processo de
reprodução social, desde as funções estritamente
produtivas e distributivas até às dimensões mais amplas da
direcção política. Como está no controlo
real
de todos os aspectos vitais do sócio-metabolismo, o capital pode dar-se
ao luxo de definir a esfera de legitimação política como
questão estritamente
formal,
eliminando desse modo,
a priori,
a possibilidade de ser legitimamente contestado na sua esfera de
acção
substantiva.
Ao dobrar-se a tais determinações, o trabalho, como
real
antagonista do capital existente, pode apenas condenar-se à permanente
impotência, pois a instituição de uma ordem
sócio-metabólica alternativa só será viável
pela articulação da
democracia substantiva,
definida como actividade auto-determinada dos produtores associados tanto na
política como na produção material e cultural.
É característica singular do sistema do capital que, na sua
normalidade, as funções materiais reprodutivas sejam executadas
num compartimento separado, sob uma estrutura de comando substancialmente
diferente da ampla estrutura de comando político do capital
corporificada no Estado moderno. Essa separação e essa
"disjunção", constituídas ao longo da supremacia
histórica do capital dirigida para a auto-expansão do valor de
troca, de modo algum são desvantajosas para o próprio sistema. Ao
contrário, as personificações económico-gerenciais
do capital podem exercer a sua autoridade sobre as unidades reprodutivas
particulares, antecipando um
feedback
do mercado a ser convertido no devido tempo em acção correctiva,
e o Estado cumpre as suas funções complementares, em parte na
esfera internacional do
mercado mundial (inclusive a garantia dos interesses do capital em guerras se
necessário
for),
em parte diante de uma força de trabalho potencial ou realmente
recalcitrante. Assim, nos dois casos, o antagonista estrutural do capital
é firmemente mantido sob controlo pela compartimentação e
pela radical alienação dos produtores do poder de tomar
decisões
em todas as esferas num sistema ajustado às necessidades da
reprodução e da acumulação ampliada do capital.
Em completo contraste, um modo de controlo reprodutivo alternativo
socialista é inimaginável sem que ocorra a
superação da
disjunção e da alienação existentes. A
condição necessária para realizar as funções
da reprodução directamente material de um sistema socialista
é a restituição do poder de tomar decisões aos
produtores associados
em todas as esferas de actividade e em todos os níveis e
coordenação, desde os empreendimentos locais até ao mais
amplo intercâmbio internacional. O "fenecimento do Estado"
não se refere a algo misterioso ou remoto, mas a um processo
perfeitamente tangível que precisa de ser iniciado ainda no presente. E
na transição para a genuína sociedade socialista é
necessária a progressiva reaquisição dos poderes alienados
de decisão política pelos indivíduos. Sem a
reaquisição desses poderes, é inimaginável o novo
modo de controlo político total da sociedade pelos seus
indivíduos, assim como a operação quotidiana
não contraditória
e, portanto,
coesiva/planeável
das unidades produtivas e distributivas particulares pela
auto-administração dos produtores associados.
A reconstituição da unidade das esferas de
reprodução material e política é a
característica definidora essencial do modo socialista de controlo
sócio-metabólico. A criação das suas
mediações necessárias não pode ser deixada para um
futuro distante, contrariando o que diz a teoria apologética do
"nível mais alto do comunismo", pois, se não forem
dados imediatamente os primeiros passos como parte orgânica da
estratégia transformadora, eles nunca serão dados. Conservar a
dimensão política sob uma autoridade separada, divorciada das
funções reprodutivas materiais da força de trabalho
significa manter a dependência e a subordinação estrutural
do trabalho e consequentemente impossibilitar a tomada de medidas subsequentes
em direcção a uma transformação socialista
sustentável. Foi nesse sentido, tão revelador quanto fatal, que o
sistema soviético, em vez de activar o poder de decisão
autónomo dos produtores,
reforçou
a disjunção entre as funções do Estado e a
força de trabalho sob o seu controlo,
impondo,
sob o pretexto de "planeamento", as ordens do seu aparato
político sobre os processos produtivos directos. Nem mesmo a eternidade
poderia transformar em sistema socialista auto-administrado uma ordem
sócio-metabólica aprisionada por determinações
estruturais tão irremediavelmente alienadas.
18.4.7
Nas circunstâncias do "capitalismo avançado" actualmente
existente, a deterioração das condições da
força de trabalho não poderá ser contestada
muito menos questionada a dolorosa submissão estrutural do trabalho
sem uma restruturação fundamental do movimento socialista,
para
transformar a sua actual postura defensiva noutra capaz de uma
acção ofensiva. Ou seja, esgotaram-se não apenas o modo
tradicional de controlo político parlamentar, mas também a
acomodação reformista do trabalho.
É importante ter em mente que se o trabalho quer conseguir alguma coisa
nas actuais circunstâncias, uma renovação da forma
parlamentar de legislação política é
inevitável. Tal renovação só se tornará
viável pela criação de um movimento
extra-parlamentar
como
força vital condicionante
do próprio Parlamento e da estrutura legislativa de uma sociedade
globalmente em transição. Considerando a situação
actual, o trabalho, como antagonista do capital, é obrigado a defender
os seus interesses não apenas com uma, mas com as duas mãos
atadas às costas. Uma delas presa pelas forças abertamente hostis
ao trabalho e a outra pelos seus próprios partidos e lideranças
sindicais reformistas, que cumprem a função especial de
personificações do capital no interior do próprio
movimento do trabalho ao serviço da acomodação total, de
capitulação aos imperativos materiais "realistas" do
sistema. O que sobra então na actual articulação
limitadora do movimento de massas do trabalho, dar murro em ponta de faca,
não pode sequer ser considerado uma arma estritamente defensiva; apesar
de os porta-vozes do "novo trabalhismo", nas suas
"Comissões de Justiça", relacionarem as benfeitorias da
"grande e boa" sociedade capitalista e proclamarem que a luta em
curso está completamente de acordo com os critérios de
"imparcialidade" e "justiça". Sob tais
condições, cabe ao movimento dos trabalhadores decidir entre
resignar-se a tais limites ou dar os passos necessários para desatar as
próprias mãos, por mais difícil que venha a ser essa
última linha de acção. Hoje, os líderes
trabalhistas admitem abertamente, como Tony Blair no discurso de Derby,
pronunciado por coincidência no dia 1 de Abril. "O Partido
Trabalhista é
o partido dos empresários e das indústrias modernas
na Inglaterra.
[41]
Isso representa a fase final da traição total a tudo o que foi
iniciado pela velha tradição social-democrata. Como podemos ler
em
The Times,
de Londres:
Na sua famosa estratégia de "
cocktails
de camarão" nos almoços da City [com o líder
anterior, John Smith, o trabalhismo já antes abordou os
empresários. Mas a nova comissão [sobre as "Políticas
Públicas e o Empresariado Britânico", estruturada pelos
trabalhistas segundo o modelo da sua "Comissão de
Justiça"], especialmente no que diz respeito à sua
relação com o partido, é diferente. "A ideia da
ofensiva dos "
cocktails
de camarão" era provar que não queríamos
brigar", afirma um dos colegas de Blair. "Agora estamos
avançando um pouco mais: queremos mostrar
que podemos fazer negócios com o empresariado."
[42]
A única dúvida é saber se a classe do trabalho vai aceitar
ser tratada como o ingénuo do 1.º de Abril, e por quanto tempo a
estratégia de capitulação ao grande empresariado
poderá ser seguida depois da próxima vitória eleitoral de
Pirro. Além de tudo isso, sabemos que Margaret Thatcher "negociou
com Gorbachev", e
vice-versa,
no mesmo espírito do "não há alternativa" que
hoje está sendo militantemente advogado pelo "novo
trabalhismo" na qualidade de "partido do empresariado moderno".
Da mesma forma que também sabemos o que, no final, ocorreu com
Gorbachev, com a baronesa Thatcher e com suas glorificadas estratégias.
Na estrutura do sistema parlamentar, a disputa entre capital e trabalho nunca
foi, nem poderia ser, "justa e igual". O capital não é
em si uma
força parlamentar,
apesar dos seus interesses poderem ser adequadamente representados no
Parlamento, como mencionamos antes. O que necessária e antecipadamente
decide contra o trabalho no confronto político com o capital, confinado
ao Parlamento, é o inescapável facto de que o capital social
total não pode deixar de ser uma força
extra-parlamentar par excellence.
É o que acontece quando os representantes da pluralidade de capitais
afirmam os interesses do seu sistema como um todo contra o trabalho, e quando
acertam entre si, com a ajuda das "regras do jogo parlamentar", os
aspectos legais e políticos das suas diferenças particulares.
Naturalmente, quando chega a hora de impor as determinações do
capital aos governos parlamentares dos trabalhistas, não se pode tolerar
a desobediência dos seus primeiros-ministros. Há aproximadamente
dez anos, o senhor Campbell Adamson um ex-director-geral da
Confederação da Indústria Britânica
fez uma confissão indiscreta numa entrevista de televisão. Contou
que havia realmente ameaçado Harold Wilson (então
primeiro-ministro trabalhista do governo britânico) com uma
greve geral de investimentos
se não respondesse favoravelmente ao ultimato de sua
Confederação. Adamson candidamente admitiu que a sua
ameaça era
inconstitucional
(nas suas próprias palavras), acrescentando que "felizmente"
não houve necessidade de prosseguir com aquela intenção,
já que o "Primeiro-ministro concordou com as nossas demandas".
Portanto, a própria
constitucionalidade
é um joguete nas mãos dos representantes do capital, para ser
rude e cinicamente utilizada como um artifício auto-legitimador contra o
trabalho. As personificações do capital, quando atropelam a
"constitucionalidade democrática", não são,
obviamente,, mandadas para a Torre de Londres
como sem dúvida seriam por um semelhante ultraje ao rei na Alta Idade
Média. Pelo contrário, são até mesmo elevadas
à condição de Cavaleiros ou à Câmara dos
Lordes, inclusive pelos governos trabalhistas. Os que pensam ser esta uma
"peculiaridade dos ingleses" devem lembrar-se do que aconteceu ao
presidente o guardião
ex officio
da Constituição americana
no tão falado caso "Irão-Contras". O Comité do
Congresso norte-americano que investigava o caso concluiu que a
administração Reagan era culpada de
"subverter a lei e solapar a Constituição".
Obviamente, esse veredicto, em que pese a gravidade das suas
implicações para o "domínio da lei" (jamais
levada em consideração pelos Hayeks da vida), não teve a
menor consequência para o "presidente Teflon", nem resultou na
introdução de necessárias salvaguardas constitucionais
para prevenir violações similares da Constituição
americana no futuro.
Quando se trata dos representantes políticos do trabalho, a
questão não se resume a simples casos de fracasso pessoal ou de
cederem às tentações das gratificações
oferecidas às suas posições privilegiadas. É muito
mais grave do que isso. O problema é que, como chefes ou ministros de
governo, eles supostamente deveriam ser capazes de controlar politicamente o
sistema, mas nada fazem de semelhante, pois operam no interior da esfera
política, pré-determinada
a priori
a favor do capital pelas estruturas de poder existentes do seu modo de
reprodução sócio-metabólico. Sem desafiar
radicalmente e desalojar materialmente as estruturas profundamente enraizadas
do modo de controlo sócio-metabólico do capital, a
capitulação
ao poder do capital é apenas uma questão de tempo, normalmente
numa velocidade que quase supera a da luz. Podemos pensar em Ramsay MacDonald,
Bettino Craxi, Felipe Gonzáles, François Mitterand ou
mesmo em Nelson Mandela, o prisioneiro que se converteu no novo defensor da
indústria bélica da África do Sul
[43]
mas a história deprimente é sempre a mesma. Frequentemente
a esperança de um "papel realista e responsável"
supostamente apropriado de futuros ocupantes de cargos nos altos
escalões ministeriais já é suficiente para produzir as
mais inesperadas surpresas. Aneurin Bevan, o então ídolo da ala
esquerda do Partido Trabalhista e o mais firme oponente da corrida nuclear na
Inglaterra, não hesitou em despojar-se dos seus princípios
socialistas e insultar os seus ex-camaradas da ala esquerda durante a
conferência anual para a elaboração da política do
partido, com a desculpa de que dele, como secretário do Exterior
designado de um futuro governo trabalhista, não se deveria esperar
"que entrasse nu no fórum de negociação internacional
e se sentasse assim à mesa de conferência para defender os
interesses do país", qual seja, a posição
privilegiada do imperialismo britânico como membro do exclusivo
"clube nuclear".
A classe trabalhadora foi um "apêndice tardio" ao sistema
parlamentar burguês sempre tratada por ele como tal depois de entrar nos
seus corredores, pois nunca pôde comparar-se mesmo que remotamente, com o
poder do capital como o fundamento efectivo do sistema político
parlamentar. Ainda que as regras formais e os custos materiais para entrar no
Parlamento pudessem tornar-se equitativos
o que claro, é impossível diante da monstruosa desigualdade de
riqueza entre as classes, assim como perante as vantagens ideológicas e
educacionais gozadas pelas classes dominantes na condição de
detentoras do controlo material e cultural da "ideologia dominante"
, a situação não seria significativamente alterada.
A questão fundamental diz respeito à relação entre
a estrutura política parlamentar e o modo de reprodução
sócio-metabólico existente totalmente dominado pelo capital.
Por outro lado, a disjunção entre economia e política,
essencial ao desenvolvimento histórico do sistema do capital, colocou um
desafio enorme, ainda não enfrentado pelo movimento dos trabalhadores. O
fracasso da esquerda histórica está inextrincavelmente associado
a essa circunstância, já que a articulação defensiva
do movimento socialista tanto
reflectiu
directamente tal disjunção como
se acomodou
a ela. O facto de a fatal aceitação de tais
determinações estruturais não ter sido voluntária,
muito menos de bom grado, mas uma
acomodação imposta,
não altera o facto de o trabalho ter caído na armadilha da margem
desesperadamente estreita para uma acção
auto-emancipatória no interior da estrutura dada. Esta
acomodação foi imposta ao trabalho como
pré-condição necessária
à autorização para entrar na esfera parlamentar da
"emancipação política" e ter acesso às
limitadas melhorias materiais reformistas, depois de as forças
originalmente extra-parlamentares de oposição radical terem
aderido a tal via. O espaço para esse tipo de articulação
reformista do movimento de massas do trabalho foi aberto "no pequeno canto
do mundo europeu" com a sua "
hinterland"
global e imperialista, pela fase de expansão dinâmica
portanto capaz de "permissividade"
do desenvolvimento do capital, na segunda metade do século XIX, levando
quase um século para esgotar-se. A separação paralisadora
entre o "braço político" e o "braço
sindical" do trabalho acima mencionada foi complemento apropriado e apoio
a esse tipo de desenvolvimento, na medida em que ofereceu, de modo muito
discriminatório, algumas vantagens materiais limitadas às classes
trabalhadoras de alguns países privilegiados à custa da
super-exploração das massas do resto do mundo. A perspectiva de
uma
radical mudança estrutural
o socialismo alcançado por mudanças graduais
resultante da
aceitação
acrítica dos
incorrigíveis limites estruturais do sistema
foi, desde o começo, apenas uma ilusão, ainda que inicialmente
alguns políticos reformistas e dirigentes sindicais acreditassem
genuinamente nela. O facto é que, depois de inícios muito
diferentes, o movimento socialista aceitou a separação entre o
seu "braço político" e o "corpo sindical" que
lhe possibilitava operar no interior da estrutura parlamentar criada pelas
personificações do capital para defender e administrar os
interesses do sistema do capital. Contudo, a vitória da
estratégia reformista dentro do movimento socialista não foi de
modo algum acidental ou a consequência de aberrações
pessoais contingentes ou, ainda, de traições burocráticas.
Foi, isto sim, o coroamento necessário da adaptação do
movimento à estrutura política parlamentar
pré-estabelecida e da sua acomodação à
disjunção estrutural peculiar entre as características
políticas e económicas do sistema do capital. O sucesso da
ofensiva socialista é inconcebível sem a recusa radical de tais
determinações estruturais da ordem estabelecida e sem a
reconstrução do movimento do trabalho na sua integridade,
não apenas com os seus "braços", mas também com
a plena consciência dos seus objectivos transformadores como alternativa
estratégica necessária e viável ao sistema do capital.
18.4.8
O problema insolúvel da estrutura das instituições
políticas actuais é a desigualdade fundamental entre capital e
trabalho existente nas relações materiais de poder do conjunto da
sociedade, que se afirma enquanto não se altera radicalmente o modo
actual de reprodução metabólica. Nesse sentido, é
importante citar uma passagem dos
Manuscritos económicos de 1861-63,
de Marx:
O trabalho produtivo como produtor de valor
enfrenta sempre o capital como trabalho de trabalhadores
isolados,
seja qual for a combinação com que esses trabalhadores entram no
processo de produção. Assim, enquanto o capital representa o
poder produtivo social do trabalho para os trabalhadores, o trabalho produtivo
representa sempre para o capital apenas o trabalhador
isolado.
[44]
Se amanhã, por um milagre, os parlamentos aprovassem unanimemente uma
lei determinando, por exemplo, que a partir de depois de amanhã o poder
social do trabalho produtivo fosse reconhecido pelo capital e que o trabalho
produtivo não devesse ser mais representado
vis-à-vis
o capital como trabalho de trabalhadores isolados, o mundo não
perceberia qualquer diferença. Nem poderia perceber, pois o capital, tal
como é materialmente constituído por meio do trabalho
alienado e acumulado , representa,
de facto
e
objectivamente,
o poder sócio-produtivo do trabalho. É essa relação
objectiva de dominação estrutural que encontra a sua
corporificação adequada também nas
instituições políticas do sistema do capital. E é
essa ainda a razão pela qual a pluralidade do capital pode ser
adequadamente representada na estrutura da política parlamentar,
enquanto o trabalho não. As relações de poder material
existentes incorrigivelmente iníquas tornam a
"representação" do trabalho
vazia
(como representação parlamentar
estritamente política
da classe
materialmente subordinada
do trabalho) ou
auto-contraditória
(em termos tanto da representação eleitoral do trabalhador
isolado,
como da "participação democrática" do radical
antagonista estrutural
do capital, que, apesar de tudo, está alegremente predisposto a aceitar
as migalhas das acomodações marginais reformistas). Nenhuma
reforma política nos parâmetros do sistema existente permitiria
sonhar em alterar essas relações de poder material.
O que torna as coisas ainda piores para os que buscam mudanças
significativas no interior dos limites do sistema político estabelecido
é que esse sistema pode reivindicar, a seu favor, genuína
legitimidade constitucional para o seu actual modo de funcionamento, com base
na
inversão
historicamente constituída do actual estado de coisas. Ou seja, enquanto
o capitalista não for apenas a "personificação do
capital", mas também "a personificação do
carácter
social
do trabalho, do
lugar de trabalho total
em si"
[45]
, o sistema pode alegar que representa o poder produtivo, vitalmente
necessário, da sociedade
vis-à-vis
os indivíduos, incorporando os interesses de todos, sendo, portanto, a
base de continuidade das suas existências. Dessa forma, o capital
firma-se diante da sociedade não apenas como poder
de facto,
mas também como poder
de jure
na sociedade, já que ele se apresenta como condição
necessária e objectiva da reprodução societária e,
portanto, como o fundamento constitucional da sua própria ordem
política. A legitimidade constitucional do capital é
historicamente baseada na expropriação directa dos produtores das
condições de reprodução
sócio-metabólica
os instrumentos e materiais do trabalho ,
portanto a alegada "constitucionalidade" do capital (como a origem de
todas as constituições) é inconstitucional; mas esta
verdade intragável perde-se nas brumas do passado remoto.
Historicamente, os
"poderes sócio-produtivos
do trabalho, ou os
poderes produtivos do trabalho social,
primeiro desenvolveram-se como o modo de produção especificamente
capitalista, por isso aparecem como algo imanente à
relação capital e dela inseparável"
[46]
. O modo de reprodução sócio-metabólico do capital
legitima-se e eterniza-se
como sistema legitimamente inquestionável. Só se aceita como
legítimo o questionamento de aspectos menores de uma estrutura global
inalterável. Desaparece a verdadeira questão que habita o plano
da reprodução sócio-económica
qual seja, poder produtivo do trabalho efectivamente exercido e a sua
necessidade absoluta para assegurar a reprodução do
próprio capital. Isso acontece, em parte, devido à
ignorância da origem histórica não legitimável da
acumulação primitiva do capital e à concomitante e
geralmente violenta expropriação da propriedade como
pré-condição do modo actual de funcionamento do sistema;
e, em parte, devido à natureza mistificadora das relações
produtivas estabelecidas. Ou seja,
as
condições objectivas do trabalho
não aparecem como subsumidas ao trabalhador, ao invés disso,
é ele que aparece subsumido àquelas. O CAPITAL
EMPREGA
O TRABALHO. Mesmo na sua simplicidade, essa relação é uma
personificação de coisas e uma reificação de
pessoas.
[47]
Nada disso pode ser contestado e solucionado por uma reforma política
parlamentar. Nem mesmo nas circunstâncias mais favoráveis, como as
da avalanche de votos, em 1945, a favor do Partido Trabalhista da Inglaterra.
Tal avalanche, no entanto, foi precedida pelo reflorescimento da crítica
do sistema em razão dos sacrifícios impostos às massas
populares durante a depressão que se abateu sobre o país durante
a longa depressão do período entre guerras e a dura realidade da
guerra que se seguiu. Seria absurdo esperar a abolição por
decreto político da
'personificação de coisas e reificação de
pessoas",
assim como seria absurdo esperar a proclamação de tal reforma nos
limites das instituições políticas do capital. O sistema
do capital não pode funcionar sem a perversa inversão das
relações entre pessoas e coisas: o poder reificado e alienado do
capital que domina as massas. Da mesma forma, seria um milagre se os
trabalhadores, que no processo de trabalho confrontam o capital como
"trabalhadores isolados", pudessem reaver o controlo dos poderes
sócio-produtivos do seu trabalho através de algum decreto
político, ou mesmo por uma longa série de reformas parlamentares
decretadas sob a ordem sócio-metabólica de controlo do capital.
Em tais questões, não há como evitar o conflito
inconciliável em torno de objectivos materiais "mutuamente
excludentes".
O capital não pode abdicar dos seus usurpados
poderes sócio-produtivos em favor do trabalho, nem pode
compartilhá-los
com ele, na medida em que eles constituem o poder global de controlo da
reprodução societária sob a forma da
"dominação da riqueza sobre a sociedade".
Por isso é impossível escapar, dentro do domínio do
sócio-metabolismo fundamental, à severa lógica dos
interesses "mutuamente excludentes". Ou a riqueza, sob a forma do
capital, continua a comandar a sociedade humana, levando-a aos limites da
auto-destruição, ou a sociedade de produtores associados aprende
a comandar a riqueza alienada e reificada usando os poderes produtivos
resultantes do trabalho social auto-determinado dos seus membros individuais. O
capital é a
força extra-parlamentar par excellence
que não pode ser politicamente limitada no seu poder de controlo
sócio-metabólico. Essa é a razão pela qual a
única forma de representação política
compatível com o modo de funcionamento do capital é aquela que
efectivamente nega
a possibilidade de contestar o seu
poder material.
E, justamente porque é a força extra-parlamentar
par excellence,
o capital nada tem a temer das reformas decretadas no interior da estrutura
política parlamentar. A questão vital, da qual tudo depende,
é que "as
condições objectivas do trabalho
não aparecem como subsumidas ao trabalhador", mas, ao
contrário, "este aparece subsumido àquelas", por isso
mesmo nenhuma mudança significativa é viável sem que se
volte a esta questão, tanto por meio de políticas capazes de
desafiar o poder e os modos de acção extra-parlamentar do capital
como na esfera da reprodução material. Portanto, o único
desafio que poderia, de modo sustentável, afectar o poder do capital
seria aquele que simultaneamente assumisse as funções produtivas
decisivas do sistema e adquirisse o controlo sobre todas as esferas
correspondentes de tomada de decisão política, em vez de ser
limitado pelo confinamento circular da acção política
legítima à legislação parlamentar.
Certamente, a castração da política socialista é
perfeitamente compatível com as relações de poder do
capital e com o seu único modo viável de operação,
em todas as suas formas.
Já que "as condições objectivas do trabalho
não aparecem como subsumidas ao trabalhador"
muito pelo contrário , o trabalhador como trabalhador isolado no
processo de trabalho pode legitimamente ser considerado como tal noutras
importantes esferas do processo de reprodução e
distribuição social. Na política, ele ou ela podem
politicamente agir como eleitores (isolados) que tomam as suas decisões
estritamente sozinhos na privacidade da cabina de votação. E na
esfera material do "consumo produtivo", da maior importância,
que completa o ciclo da reprodução ampliada do capital eles podem
novamente surgir como "consumidores soberanos"
estritamente individuais e isolados
que não mantêm qualquer relação com a sua classe. Ao
contrário, agem desta vez consultando, não as suas
consciências moral e política
na inviolabilidade da cabina eleitoral, como o fizeram na
condição de "eleitores soberanos", mas sua
"consciência racional
(ou "faculdade racional") para calcular e maximizar as
"utilidades marginais privadas". O sistema pós-capitalista de
tipo soviético manteve essa mesma relação, apesar da
abolição da forma do capitalista privado como
personificação do capital. O trabalhador permaneceu subsumido
às condições objectivas do trabalho, ao controlo
autoritário do Estado gerido pelas personificações
pós-capitalistas do capital. Na qualidade de trabalhadores isolados, que
sob nenhuma circunstância poderiam organizar a si próprios
vis-à-vis
da autoridade controladora do processo de trabalho, poderiam ser premiados como
indivíduos "stakhanovistas" exemplares (a serem emulados por
outros) ou punidos e enviados aos milhares aos campos de trabalho como
"sabotadores criminosos" e "agentes inimigos". Mas o
trabalho em si não poderia adquirir legitimidade como agente colectivo
do processo de trabalho, muito menos assumir o controlo da
reprodução sócio-metabólica como um todo. Embora,
sob o planeamento autoritário, a ideia do "consumidor
soberano" não pudesse ser mantida, a questão do consumo
também era regulada numa base individual profundamente
discriminatória mesmo no caso de "stakhanovistas" e
"trabalhadores exemplares". Foi mantida inclusive a
ficção do "voto secreto", pela qual os
"indivíduos socialistas" deveriam consultar as suas
"consciências moral e política" na privacidade da cabina
de votação, e chegar às esperadas respostas unânimes
que legitimavam o estado de coisas. Tudo isso de modo algum é
surpreendente, pois diferenças substantivas do campo da política
e no "consumo produtivo" só seriam viáveis caso se
alterasse radicalmente o princípio estrutural do sistema do capital, que
deve manter os trabalhadores de um modo ou de outro
subsumidos às condições objectivas do seu próprio
trabalho.
O poder extra-parlamentar do capital só pode ser enfrentado pela
força e pelo modo de acção extra-parlamentares do
trabalho. Isso é ainda mais importante se levarmos em conta a completa
desintegração do reformismo parlamentar do movimento do trabalho,
proclamado e seguido no passado, com o fito de fornecer o trabalho ao capital
sob a forma de substância eleitoral fragmentada. Rosa Luxemburgo escreveu
há muito tempo, profeticamente, que
o parlamentarismo é o viveiro de todas as actuais tendências
oportunistas da social-democracia ocidental. ... fornece fundamento às
ilusões do oportunismo actual, tais como a valoração
exagerada das reformas sociais, a colaboração entre partidos e
classes, a esperança de um desenvolvimento pacífico para o
socialismo etc. ... Com o crescimento do movimento do trabalho, o
parlamentarismo transformou-se na mola impulsionadora dos carreiristas
políticos. É por isso que tantos ambiciosos fracassados da
burguesia afluem para os estandartes dos partidos socialistas ... [O objectivo
é]
dissolver
o sector de classe activo e consciente do proletariado na
massa amorfa de um 'eleitorado'.
[48]
A dissolução, tratada por Rosa Luxemburgo como uma ameaça,
foi completamente realizada nos nossos dias, utilizando a noção
de "eleitorado amorfo" como o seu fundamento ideológico
legitimador. Por esse processo, não apenas a social-democracia ocidental
claramente reformista, mas também os afiliados anteriormente
revolucionários da Terceira Internacional, se transformaram em partidos
liberais burgueses, consumando dessa forma a capitulação do
"braço político" do trabalho aos imperativos
"racionais" e "realistas" do capital. Tudo isso veio a
ocorrer de um modo muito mais fácil do que se poderia imaginar
previamente, pois o processo de dissolução das estratégias
defensivas do trabalho foi objectivamente auxiliado e sustentado pelas
relações de poder material do sistema do capital, que, no
processo de produção e consumo, pode apenas reconhecer o
trabalhador e o consumidor isolado e, na esfera política, o eleitor
equivalente ao trabalhador impotente. Essa é a razão pela qual a
política "representacional", ao invés de efectivar a
prometida "via italiana para o socialismo"
teve finalmente que se degradar em todas as suas partes até ao
nível do exercício de relações públicas
comuns, excretando das suas entranhas e catapultando para o ápice da
política parlamentar criaturas "representativas", como o
magnata da media Silvio Berlusconi, exactamente no país do, outrora,
Partido Comunista de Gramsci.
Naturalmente, nos países de "capitalismo avançado",
contra o pano de fundo do clamoroso malogro histórico do reformismo e da
política representacional em geral, qualquer mudança é
impensável sem a reconstituição radical do movimento do
trabalho na sua integridade e em escala internacional
como força extra-parlamentar. A separação, que cava a sua
própria sepultura, entre o 'braço político" e o
"braço sindical" do trabalho comprova todos os dias nada mais
ser do que um anacronismo histórico irremediável. Isso ocorre em
relação não apenas ao seu óbvio fracasso na arena
política ao longo de todo o século, mas também devido
à sua incapacidade de atrair para si os milhões de "pessoas
supérfluas"
desempregadas,
expulsas do processo de trabalho a uma velocidade alarmante pelos imperativos
desumanizadores do "capital produtivo". Ao definir as suas
estratégias como movimento político organizado, a força de
trabalho ainda empregada não pode dar-se ao luxo de desconsiderar por
mais tempo as aflições profundas assim como a grande
força potencial
desses incontáveis milhões, mesmo porque amanhã o mesmo
destino deve atingir crescentes parcelas da força de trabalho ainda
empregada. Dado o papel facilitador e servil da política a favor do modo
de controlo sócio-metabólico do capital
ideologicamente racionalizado e justificado por
slogans
do tipo "aumento da produtividade", "vantagem competitiva",
"disciplina de mercado", "globalização",
"eficiência de custos", enfrentar o desafio dos "cinco
pequenos tigres", ou qualquer outro , muito pouco se pode esperar
das instituições parlamentares como estão hoje
articuladas. Somente uma intervenção radical na
"economia" perdulária do processo reprodutivo material da
ordem estabelecida pode rectificar com sucesso a impotência do trabalho,
desde que ela consiga afirmar-se contra os factores mais desfavoráveis
hoje dominantes pela acção articulada de um maciço
movimento extra-parlamentar. É isto que põe em relevo a
actualidade histórica da ofensiva socialista.
Devemos enfatizar novamente que, como mencionamos na secção
18.1.1, a actualidade histórica da ofensiva socialista
dada a exaustão das concessões interesseiras que o capital podia
fazer no passado a um movimento do trabalho defensivamente articulado
não significa que o sucesso esteja assegurado nem que a sua
realização esteja próxima.
"Histórica",
aqui, significa, por um lado, que a necessidade de instituir algumas
mudanças fundamentais na organização e a
orientação do movimento socialista se apresentou na agenda
histórica; e, de outro lado, que o processo em questão se
desdobra sob a pressão de determinações históricas
poderosas, empurrando a função social do trabalho na
direcção de uma ofensiva estratégica prolongada caso
queira realizar não apenas os seus objectivos potencialmente globais,
mas também os seus objectivos mais limitados. O percurso à frente
é
provavelmente muito árduo e ,
certamente, não tem atalhos nem pode ser evitado.
As
mediações
históricas necessárias, vistas como passos viáveis para a
realizada ordem sócio-metabólica alternativa do trabalho
são inerentes tanto à perseguição do objectivo
uma intervenção radical, não confinada à esfera
política, que constitua uma contestação directa das
estruturas materiais da própria relação capital que
subsume o trabalho às condições reificadas e alienadas do
seu exercício, condenando o sujeito do processo de
produção à total impotência dos trabalhadores
isolados
como à forma de acção necessariamente extra-parlamentar
pela qual este objectivo pode ser progressivamente traduzido em realidade.
Pois, dada a própria natureza deste empreendimento, para haver qualquer
possibilidade de sucesso, é necessário enfrentar e superar
já nos
primeiros passos
ainda que no início apenas em contextos limitados
a perniciosa disjunção entre economia e política, que
serve apenas ao modo sócio-metabólico de controlo do capital,
assim como a separação entre os seus braços
"político" e "sindical", que por si própria
derrota o trabalho, como se comprovou com dolorosa contundência nos
últimos cem anos.
Devemos também salientar que a negação prática
materialmente efectiva das estruturas reprodutivas dominantes por meio de
acção e organização extra-parlamentar não
implica a ausência de leis nem mesmo a rejeição
apriorística do próprio Parlamento. Envolve, contudo, a
contestação organizacionalmente sustentada dos limites
cerceadores favoráveis ao capital, que as
tendenciosas
"regras do jogo" parlamentar impõem ao trabalho, como
antagonista do capital. Naturalmente, mesmo numa genuína sociedade
socialista do futuro, não se pode ignorar a questão da
legislação nem agir como se fosse inexistente. O que
decidirá a questão será a relação entre os
produtores associados e as regras que eles definirão para si
próprios graças a formas apropriadas de tomada de decisão.
Certamente, Marx estava convencido de que, numa sociedade socialista
desenvolvida, muitas das inevitáveis
exigências de regulamentação exigidas poderiam ser
atendidas por meio dos
costumes
e
tradições
estabelecidos pelas decisões autónomas e
inter-relações espontâneas dos indivíduos que vivem
e trabalham numa estrutura de sociedade não concorrencial. Sem isso,
é inconcebível a supressão da política como esfera
alienada, tornando impensável também o "fenecimento do
Estado". Mas também é claro que, para o futuro
previsível, muitas das exigências de regulamentação
geral devem permanecer associadas a procedimentos legislativos formais. Por
isso, "a sabedoria parlamentar de iludir os outros e iludir-se ao
iludi-los", citada na secção 18.1.3, deve ser considerada
"tanto pior" e não "tanto melhor".
Portanto, o papel do movimento extra-parlamentar do trabalho é duplo. Em
vez de auxiliar a reestabilizar o capital nas crises, como ocorreu em
situações importantes do passado reformista, ele deve, por um
lado, afirmar os seus interesses estratégicos como alternativa
sócio-metabólica pelo confronto e pela necessária
negação, em termos práticos, das
determinações estruturais da ordem estabelecida que se manifestam
na relação capital e na concomitante subordinação
do trabalho no processo sócio-económico de
reprodução material. Por outro lado, o poder político do
capital dominante no Parlamento precisa e deve ser contestado por meio da
pressão que as formas de acção extra-parlamentar podem
exercer sobre o Legislativo e o Executivo, como testemunhamos pelo impacto
causado pelo movimento de "uma única questão" contra a
taxação por cabeça, que desempenhou papel decisivo na
queda de Margaret Thatcher do cimo da pirâmide política. Sem a
contestação extra-parlamentar estrategicamente orientada e
sustentada, os partidos que se alternam no governo podem continuar a oferecer a
si próprios
alibis
recíprocos para o fracasso estrutural do sistema em
relação ao trabalho, confinando efectivamente o movimento do
trabalho ao papel de um
apêndice
inconveniente, mas
marginalizado,
no sistema parlamentar do capital. Portanto, em relação tanto ao
domínio reprodutivo material como ao político, a
constituição de um movimento socialista extra-parlamentar de
massas
estrategicamente viável
em conjunção com as formas tradicionais de
organização política do trabalho, hoje
desesperançadamente sem rumo e fortemente necessitadas do
apoio
e da
pressão radicalizantes
de tais forças extra-parlamentares
é uma pré-condição vital para a
contraposição ao maciço poder extra-parlamentar do capital.
NOTAS
(1) Lenine, "On the Slogan for a United States of Europe",
Collected Works, vol.
21, pp. 339-40 (escrito em Agosto de 1915) [ed. port.
Obras escolhidas em três tomos,
op. cit, tomo 1, p. 569)]. Também vale mencionar que, neste contexto,
segundo
The Times
(22 de Julho de 1995), com base numa informação da AP de Moscovo,
A Corte Suprema (russa) premiou, com 9.400 libras esterlinas, por danos,
Valentio Varennikov, um participante do golpe soviético de 1991 que foi
absolvido no ano passado das acusações de traição.
É significativo nesta pequena notícia que Varennikov tenha
insistido na época do projectado mas, claro, jamais realizado,
julgamento, que ele queria ser julgado publicamente pela sua alegada
participação no golpe falso e mal conduzido de Gorbachev, de modo
a ser capaz de revelar o que realmente tinha acontecido e quem deu as ordens.
Não poderia, portanto, ter sido mais apropriado que o "golpe que
nunca existiu" fosse seguido por um "julgamento que nunca
existiu", e que todo aquele assunto sórdido tivesse por
conclusão o pagamento de uma grande soma de dinheiro
em termos de rublos russos uma verdadeira fortuna a um
acusado pela Corte Suprema do país, em vez de uma sentença de
prisão.
(2) Marx,
The Poverty of Philosophy.
Londres, Lawrence & Wishart, s.d., p. 123.
(3) Marx,
Lohn, Preis, und
Profit, (Wages, Price and Profit).
MEW. vol. 16, p. 153 [ed. bras.
Salário, preço e lucro,
op. cit., p. 337].
(4) Id., ibid., itálicos de Marx, [ed. bras., op. cit., p. 377].
(5) "Tirando o facto que era apenas o levante de uma cidade em
condições excepcionais, a maioria da Comuna não era, de
modo algum, socialista nem o poderia ser. Com um pouco de bom senso,
porém, eles poderiam ter chegado a um acordo com Versalhes útil
para toda a massa do povo
a única coisa que poderia ser alcançada na ocasião"
(Marx, Carta a Domela Nieuwenhuis, 22 de Fevereiro de 1881).
(6) Id. ibid.
(7) "Discurso pronunciado numa reunião de activistas da
Organização de Moscovo do PCR(b)", 6 de Dezembro de 1920.
Lenine,
Collected Works.
vol. 21. pp. 44 1-2.
(8) Anotações de
um repórter sobre o discurso feito por Marx na reunião celebrada
em Amesterdão a 8 de Setembro de 1872 (cf. MEW, vol. 18, p. 160).
(9) Marx, Carta a N. F. Danielson, 19 de Fevereiro de 1881 (MEW, vol. 35, p.
157, itálicos de Marx).
(10) Marx, Gründrisse, pp. 408 e 410 (edição alemã:
pp. 311 e 313-4).
(11) Id, ibid., pp. 409-10 (edição alemã, p. 313).
(12) Estes problemas foram discutidos nos capítulos 15 e 16. O facto de
o fim da Guerra Fria não ter permitido a distribuição dos
"dividendos da paz". deixando o complexo industrial-militar em
posição dominante nos países líderes capitalistas,
acentua a importância destas arraigadas conexões económicas.
(13)
The Times,
22 de Setembro de 1981.
(14) Engels, Carta a A. Bebel, 1.ª2 de Maio de 1891.
(15) Marx, Carta a Wilhelm Bracke, 5 de Maio de 1875.
(16) Lukács, "Tactics and Ethics" (1919),
Political Writings,
1919-1929. Londres, NLB, 1972, p. 31.
(17)
The Sunday Times,
21 de Fevereiro de 1982. Podemos ver novamente, o quanto se utiliza o
imperativo desesperado de uma cega submissão ao determinismo
económico do capital para decretar o reconhecimento de que
"não há alternativa" (uma vez mais, apenas uma outra
"lei" burguesa da "natureza") como critério
incontestável da "sanidade" e da liberdade.
(18) É profundamente enganoso representar estes dois como polaridades
opostas, com a sugestão de que o segundo introduz algumas
inovações importantes em relação ao primeiro. De
facto, por muito tempo, cada variedade de keynesianismo foi uma aventura
quixotesca que carregava dentro de si o seu Sancho Pança friedmanesco
na fase "
stop
" da sua política semafórica de "
stop and go
" e vice-versa. Mas talvez um modo mais adequado de captar a sua
verdadeira significação e o seu impacto seja reconhecê-los
como um cancro nos intestinos um do outro, intensificando reciprocamente as
consequências das suas acções separadas. O facto de que o
cancro do monetarismo teve que emergir recentemente de forma particularmente
funesta das entranhas keynesianas apoiando abertamente com a sua alegada
visão "iluminada" a maioria das brutais ditaduras militares,
do Chile a El Salvador, para não mencionar o todo poderoso complexo
industrial-militar norte-americano só mostra que o
desenvolvimento que se pretende não problemático (na verdade
desenvolvimento modelo) já não se sustenta mais. Enquanto isso,
lenta mas seguramente, aumenta a aceleração, na
direcção oposta, de mais uma oscilação do
pêndulo: sem dúvida, em pouco tempo seremos apresentados à
outra variante keynesiana de milagre, mesmo que por um período muito
mais curto do que os "dias felizes" da expansão do
pós-guerra. Neste sentido, os apologistas do capital continuam a
lembrar-nos a frase que verdadeiramente "não há
alternativa". Mas esperar pela restauração da saúde
do capital ao seu estado vigoroso anterior pela acção de qualquer
um dos dois, ou realmente os dois juntos, é ao lado do
fiat
de "sanidade" outro notável exemplo da perigosa
doce ilusão
que domina a nossa vida sócio-económica na actualidade.
(19) Imagine o governo, na
sua sabedoria, a montar um grupo de trabalho de peritos cuja tarefa seria
inventar um sistema para dar má fama à
privatização. O primeiro passo seria transferir o
monopólio dos serviços públicos para o sector privado com
um mínimo de competição e, pelos primeiros cinco anos, um
regime de preços muito generoso. O segundo passo seria designar
reguladores que, tendo permitido a esses serviços públicos
amealhar uma enorme base de lucros, se inclinariam mais para os interesses
accionistas que dos clientes ao decidir a estrutura de preços da
indústria. O terceiro passo, vital, seria permitir aos directores e
presidentes destes serviços privatizados confirmarem que tais
indústrias monopolistas negociam com dinheiro do Banco
Imobiliário, pagando a si próprios enormes salários,
opções em acções e aposentadorias privilegiadas.
Não importa que muitas destas pessoas não tenham sequer um
único osso empresarial nos seus corpos. Não importa que a maioria
nunca sequer tenha assumido um risco em suas vidas. Elas parecem ser motivadas
pelo lema do filme
Wall Street,
de 1980. 'A ambição é boa'. O governo, então,
não teria nenhuma necessidade de um tal grupo de trabalho. O sistema
já existente cumpre muito bem esta tarefa." Se alguém pensa
que esta citação vem de uma publicação socialista
pequena, prepare-se para uma grande surpresa, pois ela foi retirada do artigo
editorial sob o título "Privatization is now a dirty
word" (Privatização é agora um palavrão), que
apareceu em 14 de Agosto de 1994 no jornal conservador britânico de maior
circulação,
The Sunday Times.
De facto o editorial termina com um lamento: "Este jornal apoia a
privatização. Nós não temos nada com aqueles que
criticam os ganhos financeiros que se concedem àqueles que exibem
genuína iniciativa. Infelizmente, o governo fez tudo muito fácil
para que o nome de privatização, respeitado no passado fosse
arrastado em infâmia".
(20) "Burden of opposition",
The Times,
1 de Agosto de 1995.
(21) Hegel,
The Philosophy of Right,
p. 201.
(22) Robert Taylor, "Blow for unions in derecognition case",
Financial Times,
17 de Março de 1995.
(23) Id., ibid.
(24) Attila József,
Eszmélet
("Consciência" ou, mais precisamente. "Tomada de
consciência")
(25) Rousseau,
The Social Contract,
Everyman Edition, p. 78 (ed. bras.
O contrato social,
S. Paulo, Abril Cultural, 1978, p. 108).
(26) Id., ibid., p. 79. (ed. bras. op. cit., p. 109).
(27) ld., ibid., p. 42. (ed. bras., op. cit., p. 66).
(28) Hugo Chávez Frias,
Pueblo, Sufragio y Democracia,
Yara, Ediciones, MBR-200, 1003, pp.5-6
(29) Id., ibid., p. 9.
(30) Id, ibid, p. 11
(31) Id., ibid., pp. 8-11.
(32) Id., ibid., p. 9.
(33) Ver Norberto Bobbio:
Política e cultura,
Einaudi, Torino, 1955.
De Hobbes a Marx,
Napoli, Morano Editore, 1965.
Saggi sulla scienza política in Italia,
Roma & Bati, Editori Laterza, 1971.
Quale Socialismo? Discussione di un'alternativa,
Torino, Einaudi, 1976.
Dalla strutura alla funzione: Nuovi studi di teoria del diritto,
Milão, Edizioni di Comunitá, 1977;
The future of democracy: a defense of the rules of the game,
Oxford, Polity Press, 1987.
(34) Nas palavras de Bobbio: "Actualmente estão em primeiro plano
não só os direitos à liberdade, ou o direito ao trabalho e
à segurança social, como também, por exemplo, o direito da
humanidade actual, e ainda das gerações futuras, a viver num
ambiente não contaminado, o direito à procriação
auto-regulada, o direito à privacidade diante da possibilidade que hoje
o Estado tem de saber exactamente tudo o que fizemos. Além disso, queria
assinalar a gravíssima ameaça à conservação
do património genético gerada pelo progresso técnico da
biologia, ameaça à qual não se poderá responder
senão pelo estabelecimento de novos direitos", Bobbio. "
Nuevas fronteras de la izquierda
", in: Leviatán, n.º
47, Madrid, 1992, apud Lozano, Gabriel Vargas,
Más allá del derrumbe: Socialismo y democracia en la crisis de
civilización contemporánea,
México & Madrid, Siglo XXI Editores, 1994, p. 117. Atentar
especialmente nos capítulos 'Opciones despois del derrumbe" e
"El socialismo liberal" para os inteligentes comentários do
autor sobre o trabalho de Bobbio.
(35) Peter Keller. "Blair can reinvent socialism if he finds the
right words",
The Sunday Times,
9 de Outubro de 1994.
(36) "Harold Macmillan at 85: An interview",
The Listener,
8 de Fevereiro de 1979. p. 209.
(37) James Dale Davidson
é criador e presidente da "União Nacional dos
Contribuintes", organização de direita "e a
força dirigente da Convenção Constitucional para o
equilíbrio do orçamento", de acordo com a publicidade
enfática do seu livro citado a seguir. O seu sucesso em equilibrar o
orçamento dos Estados Unidos também é uma boa medida da
qualidade das suas teorias.
(38) James Dale Davidson e Sir (agora Lord) William e Rees-Mogg,
Blood in the
streets:
investment profits in
a
World
Gone
Mad,
Londres, Sidgwick & Jackson, 1988. pp. 156-7. O título do livro
refere-se a um famoso ditado do barão Nathan Rothschild: "A
época de comprar é quando o sangue corre nas ruas".
(39) Id., ibid., p. 157.
(40) Ver Noam Chomsky, "The responsibility of Intellectuals", in
The Dissenting Academy,
Nova Iorque, Theodore Roszak, Random House, 1967,-e Harmondsworth, Penguin
Books, 1969.
(41) Philip Basset, "Labour shows it means to do business with
business",
The Times,
7 de Abril de 1995. Blair fez esta confissão, de estar na chefia do
partido das empresas inglesas, durante uma festa perante a Conferência
Feminina Trabalhista em Derby no 1.º de Abril de 1995.
(42) ld., ibid., A
"Comissão sobre Políticas Públicas e Negócios
Britânicos", recentemente inaugurada pelo Partido Trabalhista, como
nos informa o artigo de Phillip Basset do
Times,
incluirá entre uma pletora de luminares: David Sainsbury, líder
do grupo de supermercados (o conselheiro de Yeltsin), professor Richard Layard
da London School of Economics, e Sir Christopher Harding, ex-presidente da
British Nuclear Fuels e, por vinte anos, director da Hanson, um dos maiores
contribuintes do Partido Conservador e mais activos sustentáculos dos
empresários".
(43) "O presidente Mandela deu ontem um importante impulso à
multimilionária e crescente indústria de armamentos da
África do Sul oferecendo-lhe, pela primeira vez publicamente, a sua
bênção pessoal
O endosso público foi bem
recebido pelos fabricantes de armas da África do Sul, que acreditam que
o seu apoio os ajudará a assegurar transacções futuras.
Abba Omar, falando em nome da Armscor, a agência bélica estatal,
disse: "O presidente deu pela primeira vez inequivocamente o seu apoio
à indústria de armamentos. Não é exagero dizer o
quanto este seu selo de aprovação nos é
importante"" (Inigo Gilmore, "Mandela applauds South Africa's
rising arms trade",
The Times,
23 de Novembro de 1994).
(44) MECW, vol. 34, p. 460. Itálicos de Marx.
(45) Id. Ibid., p. 457. Itálicos de Marx.
(46) Id.. ibid., p. 456. Itálicos de Marx.
(47) Id., ibid., p. 457. Maiúsculas e itálicos de Marx.
(48) Rosa Luxemburgo, "Organizational questions of the "Russian Social
Democracy"", publicado sob o título "Leninism or
Marxism?", em
The Russian Revolution and Leninism or Marxism,
introdução de Bertram D. Wolfe, The University of Michigan Press,
Ann Arbor, 1970, p. 98.
[NT]
"Whip" é chicote ou, também, um membro de um partido
que,
no parlamento, é responsável pela disciplina partidária,
desde a comparência às votações e comissões
até ao voto de cada parlamentar nas questões em disputa;
"three line" refere-se ao ritual de controlo que ocorre no interior
do parlamento inglês (N.T.).
[*]
Capítulo 18 de
Beyond Capital.
Texto em português elaborado com base na edição
brasileira (Boitempo, S. Paulo, 2002), cotejado com a edição
original (Merlin Press, Londres, 1995, 994 pgs.).
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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