Sobre o euro
Considerações, uma proposta, mas nenhuma descoberta...
por Vaz de Carvalho
1 REFORÇADA A ESPECULAÇÃO EM CURSO
Imaginemos um navio governado por pilotos incompetentes e gananciosos, que
carregaram a embarcação para além de todos os limites de
segurança, ficando em risco de naufrágio ao avançarem para
afloramentos rochosos. Que fazem os pilotos depois enganarem passageiros e
tripulantes dizendo que tudo ia bem e de muito discutirem entre si? Invertem o
rumo? Não, limitam-se a desviar a rota, indiferentes ao facto de que
naquele rumo terão pela frente mais escolhos. Isto não os
preocupa, sabem que serão salvos, as suas riquezas
"resgatadas" e acrescentada com prémios de seguro. Esta a
imagem da UE na sua deriva neoliberal.
É ponto assente que no neoliberalismo a economia é movida pelo
endividamento: dos Estados, das empresas, das famílias. Tem duas fases
em alternância: juros baixos, juros altos. Uma simples evidência
empírica desde os anos 60-70 do século XX. Para o endividamento
prosseguir é estabelecida uma condição de base: o
máximo de riqueza produzida é concentrada nas mãos dos
credores, não dos Estados, nem das famílias nem das empresas
exceto as ligadas à finança.
A divida pública na zona euro entre 2000 e 2012 cresceu 88% e na UE-27
cresceu 97%. Com a agravante de entre 2008 e 2012, o aumento registado ser de
36%, (base de dados da CE, AMECO)
isto apesar das austeridades, e de muitas "decisões importantes e
positivas". Diga-se ainda que o endividamento total dos países da
UE terá atingido 417% do PIB em meados de 2012.
[1]
Dados apontam para a nível mundial o endividamento em 2011 ser 2,5 vezes
maior que em 2003 com mais desemprego, mais pobreza, mais fome, etc.
Na UE perante o afundamento das economias espanhola, italiana, francesa, belga,
etc, o BCE, contra o que andou propalar durante anos, teve de se tornar o
garante das dívidas públicas. Um único objetivo: assegurar
que a especulação e os lucros financeiros prossigam.
O futuro do euro, continua assim colocado nas mãos dos
"mercados", ou seja, nunca é de mais lembrar: nas mãos
de especuladores, percorridos por casos de corrupção, fraude,
má gestão.
O BCE força a repetição do cenário de juros baixos
de há 7 ou 10 anos atrás. Apenas vai fazer crescer a bolha
financeira especulativa, e não se vê que meios terá para
suportar as consequências daqui resultantes.
A questão que ninguém ligado ao sistema parece pôr
é: como vão ser pagas as dívidas, numa economia sem
crescimento, desemprego endémico e quando de uma forma generalizada,
Estados, MPME e famílias, estão na maioria dos países no
limite da falência?
Em Portugal, dentro deste panorama como vão ser pagas as dívidas?
Como vai ser feito investimento com taxas de juro de 5% + risco + lucro? Sem
aumento da procura agregada e nas condições de uma
globalização acéfala para os povos.
É bom recordar aos que acham "positivo" o atual falso
"regresso aos mercados", a situação que os
países em desenvolvimento experimentaram sob a agiotagem internacional
protegida e incentivada pelo FMI: entre 1970 e 2009 pagaram 110 vezes o que
deviam em 1970, no entanto durante este mesmo período a sua
dívida externa foi multiplicada por 50.
(www.cadtm, Les Chiffres de la Dette, 2011)
Pensamos que, antes de abordar a questão do euro, será bom ter em
conta as condicionantes da dívida já que, moeda sem contrapartida
de produção valor-trabalho é dívida.
2 O EURO, E DEPOIS
Dizer que as soluções para Portugal passam pela Europa. É
o que se pode classificar de tautologia. Qualquer criança do
preparatório sabe que somos um país europeu. Dizer isto é
uma forma de não querer discutir mais nada e fazer a propaganda de todas
as "soluções" da UE, via BCE ou CE, sempre consideradas
"positivas" sem avaliar resultados anteriores. Entra-se assim no
campo da hipocrisia ou do cretinismo político.
A discussão sobre o euro parece razoavelmente inquinada. Isso
começa pelos que oscilam entre o catastrofismo (face aos que discordam
das atuais orientações) e as loas a um inexistente
"europeísmo" sob a égide de tecnocratas ao
serviço da finança. Neste europeísmo os cidadãos
são tolerados só enquanto deixarem iludir pelos ajudantes da
pilotagem ao comando da UE.
"As crises financeiras têm sido tão devastadoras
economicamente
quanto uma guerra mundial e podem ser ainda um fardo para os nossos
netos",
observou recentemente Andrew Haldane, responsável do Banco da Inglaterra.
"Em termos de perda de rendimento e produção, isto é
tão mau quanto uma guerra mundial",
disse ele. Mas enquanto o sector financeiro estiver a vencer a sua guerra
contra a economia como um todo, ele prefere que as pessoas acreditem que
Não Há Alternativa.
[2]
Ou aceitamos no fundamental estas afirmações ou as recusamos. Se
as recusamos então prossegue a especulação, a rota
neoliberal de
endividamento especulação endividamento
, acreditando que D D' (D>D') sem passar por M mercadoria
é uma transformação consistente. Assuma-se e
demonstre-se. Ouve-se dizer, sem contraditório como é habitual,
que não importa o défice da balança comercial desde que o
fluir de entradas de capital o supere. Mas capital que entra é
dívida, ou seja:
endividamento especulação endividamento,
para que D > D'.
Se a seguir se disser que a solução é "atrair
investimento" e "exportar mais" entra-se no regime de
deflação fiscal e laboral (mais ainda?!)
[NR]
. A questão a pôr é: quanto disto será
necessário para se atingirem os louvados "estabilizadores
automáticos" dos mercados? Não dizem, nem o podem dizer com
mínimo de rigor, pois é algo que apenas existe nas cabeças
da metafísica neoliberal, neoclássica ou outra "farinha do
mesmo saco". Não passa, de repetições requentadas do
que já em meados dos anos 60 os chamados "liberais do regime"
defendiam. Mas agora são apresentadas com fanfarronice como decisivas
descobertas e inovações da "nova economia"!
Tomando como correta a citação acima mencionada, então
reconhecemos que estamos numa guerra, sem bombardeamentos mas sujeitos
às condições impostas pela troika. Dela fazem parte o BCE
e a CE, o que mostra o nível de europeísmo com que podemos
contar
Tais condições só têm semelhança
às impostas a países sujeitos a agressão e
ocupação externa.
Como numa guerra, foram destruídas fábricas e estaleiros,
inutilizada parte da agricultura, navios de pesca e mercantes tornaram-se meros
destroços, desapareceram linhas férreas, a maioria das
auto-estradas estão vazias, parte do território está
desertificado, da vida ativa foi eliminada mais de 10% da
população total, fogem do país como refugiados dezenas de
milhares de cidadãos, etc. Como em todas as guerras, perante o
empobrecimento da população em geral, uma minoria enriqueceu
fabulosamente.
Esta destruição teve como arma principal um míssil chamado
euro. Quem tiver dúvidas veja as estatísticas da economia
portuguesa pós adesão.
Ora, convenhamos, não há maneira de sair de uma guerra nem bem
nem a bem. De modo que a discussão sobre o euro não pode fazer-se
de forma consistente apontando as dificuldades
da situação
contrária. Terá de se começar por definir as
condições necessárias para Portugal fazer a paz. Isto
é, parar a agressão e a ocupação externa e
começar a desenvolver-se económica e socialmente. Isto significa
crescimento (um termo que só por si nada quer dizer, muitas vezes
utilizado como via escapista da discussão) acompanhado de direitos
sociais, laborais, criação de emprego. E se se responder que a
solução é "mais Europa" voltamos a:
endividamento especulação endividamento
Para definir as condições para o desenvolvimento não
será despiciendo começar por definir os objetivos que se
pretendem alcançar, ter uma visão de futuro. E a que nos parece
mais consistente e mais consensual é a consignada na
Constituição. Estabeleçam-se então as
condições de partida necessárias para se definirem as
políticas e as estratégias coerentes com os objetivos. Não
devemos porém confundir condições com políticas e
estratégias.
Sem dúvida que a auditoria cidadã à dívida é
uma condição de partida para renegociação da mesma
(montantes, prazos, juros). Outra condição será reconhecer
que sem soberania monetária e financeira o país não pode
desenvolver-se. Ou se se preferir, que grau de soberania nestes campos
será necessário. Outra questão será ainda assumir
se é ou não possível o desenvolvimento sem planeamento
macroeconómico de natureza democrática.
Dá a ideia, talvez, que estamos a propor ou defender dilemas Ao
contrário, devemos ter em mente em qualquer negociação
nunca aceitar dilemas, há sempre uma terceira solução,
pelo menos. Porém, para a(s) encontrar e negociar recordo que
queremos sair de uma guerra que foi movida ao povo português, como a
outros da UE é preciso conhecer e avaliar bem os riscos de ambas
as partes, não aceitando nem cair no lume nem ficar na frigideira
Definidas as condições económicas, chega a altura de
perguntar como vão ser concretizadas. É aqui que pode
começar a discussão sobre o euro, pelo menos para quem
reconheça que deflação fiscal e laboral e "
endividamento especulação endividamento"
não são soluções. É preciso ter plena
consciência que sendo um imperativo sair de uma guerra isso não se
faz sem sacrifícios e sem lutas.
Há então que unir trabalhadores e todas as camadas sociais
não monopolistas, passando a defender na Europa soluções
patrióticas. A menos que fugindo às questões se prefira
dizer que precisamos é de "mais europa". Mas qual Europa? Um
paraíso fiscal para especuladores? Aos que dizem
"a minha pátria é a Europa"
deve-se responder:
"A vossa pátria é a banca e não a Europa".
Notas
[1] A crise ideológica subjacente à actual política fiscal
e financeira, em
O enganoso abismo orçamental dos EUA (parte 4)
, Michael Hudson,
[2] A austeridade orçamental de hoje recorda os mal entendidos
económicos da I Guerra Mundial, em
O enganoso abismo orçamental de 2012 dos EUA (parte1)
, Michael Hudson,
[NR] Ver
Flexibilidade e desvalorização interna
, Jacques Sapir
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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