Lições do Sul para uma Europa em crise?
Retomar a ofensiva, sair da zona euro, romper com a armadilha neoliberal
A extrema gravidade da crise que atinge actualmente a Europa, em particular a
zona euro por via das dívidas ditas "soberanas", da
Grécia à Itália entre outras, leva a colocar a
questão: os povos europeus não terão lições
a retirar das experiências pelas quais certos países do Sul
estão a passar e das estratégias anti-crise que aí foram
adoptadas? Porque o que é facto é que, até ao momento,
têm sido as receitas do Norte, que se supõe serem universalmente
válidas, as que foram na generalidade administradas às economias
do Sul ainda que estas receitas não lhes tenham sido muito
convenientes, salvo raras excepções. Mas os tempos mudaram
A Europa em crise
As soluções neoliberais de austeridade generalizada e de
destruição dos serviços públicos hoje propostas (ou
melhor dizendo, impostas) para tentar salvar o capitalismo em crise e
relançar o crescimento são absurdas; elas constituem a forma mais
segura de agravar ainda mais esta crise e de precipitar mais rapidamente o
sistema no abismo. E isto ao mesmo tempo que favorecem, por todo o lado, a
subida em força das extremas-direitas, racistas, demagógicas e
sempre cúmplices da ordem estabelecida.
Neste contexto, a crise que a zona euro atravessa actualmente deve ser
entendida como em íntima ligação com as próprias
bases do processo da construção europeia. Acreditou-se ser
possível criar uma moeda única sem Estado, mesmo o de uma Europa
política que na verdade não existe. Havia aqui um erro de base
nesta Europa que pretendia fazer convergir à força economias
extremamente diferentes sem o reforço de instituições
políticas à escala regional nem a promoção de uma
harmonização social nivelando por cima. É assim que, de
forma lógica, esta "má Europa", voltada contra os
povos, anti-social e anti-democrática, é cada vez mais
abertamente rejeitada.
Continuar a acreditar num novo "compromisso keynesiano" constituiria,
entretanto, alimentar ilusões. O anterior, formulado após a
Segunda Guerra mundial, não foi concedido pelos grandes capitalistas,
foi alcançado pelas lutas populares, múltiplas e convergentes.
Hoje a alta finança, que retomou o poder, não está
disposta a nenhuma concessão. O keynesianismo que poderia de
facto desejar-se não possui nem realidade nem futuro. Doravante,
são os oligopólios financeiros quem domina e quem dita a sua lei
aos Estados, para fixar as taxas de juro, a criação de moeda ou,
quando tal é necessário, para nacionalizar.
Ruptura?
Perante a crise sistémica e os perigos que ela comporta incluindo
o de ver chegar ao poder extremistas de direita é tempo de as
forças progressistas na Europa retomarem a ofensiva, formulando de novo
propostas alternativas para uma esquerda radical e internacionalista,
orientadas no sentido da reconstrução de projectos sociais e de
solidariedades voltadas para o Sul em luta.
Entre os debates urgentes a iniciar figura o da saída da zona euro,
nomeadamente para a Europa do Sul, sob certas condições e segundo
diferentes modalidades. É evidente que uma tal decisão seria
difícil de assumir pelos pequenos países como a Grécia.
Constituiria uma falsidade afirmar que desta opção de ruptura
não resultariam dificuldades. Mas constituiria igualmente uma falsidade
afirmar-se que uma tal via conduziria à catástrofe.
E isto por três razões pelo menos. Em primeiro lugar, há
importantes economias europeias que não estão na zona euro, como
o Reino Unido. Depois, há países que foram violentamente
atingidos pela crise e que estão em vias de recuperar, fora da zona
euro, nomeadamente a Islândia. Por fim, e fora do continente europeu,
há países do Sul que ousaram a decisão de romper com as
regras do sistema monetário internacional actual sem que de tal
decisão decorresse qualquer situação de caos. Muito pelo
contrário, tem sido precisamente essa via de ruptura
temporária com os dogmas neoliberais que lhes tem permitido
autonomizar-se e recuperar.
Que lições retirar do Sul?
Numerosas experiências recentes a Sul mostraram que a reconquista de
elementos de soberania nacional monetária, entre outras e
o voluntarismo político perante os diktat dos mercados financeiros
abriram margens de manobra que permitiram a esses países sair de
situações económicas dramáticas provocadas em larga
medida pelo próprio funcionamento injusto e inaceitável
do sistema capitalista mundial. Pensamos aqui, por exemplo, no processo
de "desdolarização" em Cuba; ou no distanciamento da
Venezuela em relação ao Fundo Monetário Internacional; ou
ainda na criação do Banco do Sul (Bancosur), envolvendo
países da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA) como
a Bolívia e outros, incluindo o Brasil. Mas pode igualmente citar-se o
caso de um país com um governo menos radical como a Argentina, que em
finais de 2001 declarou a suspensão de pagamentos e que retomou com
bastante rapidez o crescimento, sem que tenha ficado isolado em
relação as ligações internacionais.
Suspensão de pagamentos, desvalorização da moeda e plano
de reconversão da dívida foram as medidas que salvaram a
Argentina do desastre neoliberal. Não há dúvida que uma
saída do euro seria mais difícil para um país como a
Grécia, que possui uma base produtiva e exportadora muito mais fraca do
que a da Argentina (que assenta sobre a agro-indústria e a energia); mas
certamente que daí não resultaria o "fim do mundo" para
o seu povo, como insistem em anunciar os media dominantes. Uma tal
decisão é difícil de tomar, tendo em conta as contas
públicas deficitárias e o risco de fuga de capitais; mas ela
parece doravante necessária como forma de saída da armadilha
neoliberal e isto antes que a Alemanha decida ela própria a
exclusão desse país!
Pensemos igualmente no Equador, cujo governo realizou uma auditoria à
sua dívida externa, anulou as dívidas "odiosas" (ou
seja, ilegais e/ou ilegítimas), utilizou a suspensão dos
reembolsos para reduzir o peso da dívida pública e libertou dessa
forma recursos para as políticas sociais e para as infraestruturas. Em
todas estas experiências, em que não se verificou qualquer
catástrofe, a reapropriação por parte do Estado do seu
poder de decisão política sobre a economia permitiu a cada
país libertar-se do atoleiro em que estava mergulhado. Como foi o caso
da Malásia, depois da crise asiática de 1998, quando o governo
(que não era "de esquerda") colocou limites às
imposições do FMI e conduziu a política anti-crise que lhe
pareceu mais conveniente.
E porque não, então, na Europa? É certo que as
situações diferem de continente para continente, mas as
alternativas existem, sob a forma de transições
pós-capitalistas, democráticas e sociais, solidárias com o
Sul. O que é necessário não é a
elaboração de soluções miraculosas ou
prontas-a-usar, mas o reabrir dos espaços de debate à esquerda.
É portanto mais do que tempo de falar, finalmente, sem tabus nem
complexos, de soluções anti-crise colocadas ao serviço dos
povos europeus: saída controlada da zona euro,
desvalorização monetária (ou de uma eventual nova moeda
comum), restabelecimento do controlo das variações dos fluxos
financeiros, redefinição do papel político dos bancos
centrais, nacionalização do sistema bancário e de certos
sectores estratégicos da economia, anulação parcial das
dívidas públicas, redistribuição acrescida da
riqueza, reconstrução dos serviços públicos,
desenvolvimento da participação popular, mas também o
relançamento de uma regionalização europeia progressista e
aberta ao Sul
Porque, na verdade, são os povos que são
soberanos, não as dívidas.
29/Fevereiro/2012
[*]
Economista, Investigador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS)
Do mesmo autor:
Cuba e o projecto comunista
A propósito dos motins nos subúrbios franceses
Crise financeira ou... de superprodução?
As ideias feitas e a verdade escondida sobre Cuba
Depois do não francês
Os Fórums de Mumbai 2004: Que lições tirar?
O original encontra-se em
http://www.granma.co.cu/2011/12/02/interna/artic01.html
,
a versão em português foi extraída de
http://www.odiario.info/?p=2397
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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