A globalização neoliberal
por Fidel Castro
entrevistado por Ignacio Ramonet
[*]
Ramonet - Você acredita que a globalização está
destruindo até o próprio capitalismo?
Fidel -
Hoje não há capitalismo, não há
concorrência. Hoje o que há é o monopólio em todos
os grandes setores. Há algumas concorrências entre vários
países na produção de televisores ou computadores,
até automóveis o Banco Mundial os fez produzir, mas é que
o capitalismo já não existe mais. Quinhentas empresas globais
dominam hoje 80 por cento da economia mundial. Os preços não
são competitivos, veja os preços a que se vendem, por exemplo, os
medicamentos contra a SIDA... Os medicamentos constituem um dos mais abusivos,
extravagantes e exploradores ramos econômicos do mundo; o medicamento que
vendem às pessoas vale, em muitos casos, dez vezes os custos de
produção.
A publicidade praticamente determina o que se vende e o que não se
vende, quem não tem muito dinheiro não pode fazer nenhum tipo de
publicidade para seus produtos, ainda que sejam excelentes. Depois da
última chacina mundial na década de 1940, prometeram-nos um mundo
de paz, a diminuição da distância entre ricos e pobres e
que os mais desenvolvidos ajudariam os menos desenvolvidos. Tudo não
passou de uma enorme falsidade. Impuseram-nos uma ordem mundial que não
se pode sustentar nem suportar. O mundo está sendo conduzido para um
beco sem saída. Nenhuma daquelas categorias em que acreditávamos
que se baseava o capitalismo existe mais; não existe, portanto, a teoria
que os Chicago Boys ensinam às pessoas. E, por outro lado, a teoria e a
prática do socialismo ainda estão por ser desenvolvidas e
escritas.
Ramonet - Você me disse em outra ocasião que já não
havia "modelo" em matéria política e que, atualmente,
ninguém sabia muito bem o que o conceito de socialismo significava.
Você me contou que, em uma reunião do Fórum de São
Paulo que se realizou em Havana, e que reuniu todas as esquerdas da
América Latina, foi necessário ter cautela para não
pronunciar a palavra "socialismo" porque é uma palavra que
"divide".
Fidel -
Veja só, o que é o marxismo? O que é o socialismo? Isso
não está bem definido. Em primeiro lugar, a única economia
política que existe é a capitalista; mas a capitalista de Adam
Smith. Então andamos fazendo socialismo muitas vezes com as categorias
adotadas do capitalismo, o que é uma das grandes
preocupações que temos. Porque se utilizarmos as categorias do
capitalismo como instrumento na construção do socialismo, acaba
obrigando todas as empresas a competir entre si, surgem empresas desonestas,
piratas, que se dedicam a comprar aqui e acolá. Seria necessário
fazer um estudo bem profundo. Uma vez Che criou algumas polêmicas sobre
as conseqüências do uso do financiamento orçamentário,
diante do uso do autofinanciamento. Ele, como ministro, estudara a
organização de alguns grandes monopólios e viu que eles
utilizavam orçamentos.
Na União Soviética se empregava outro método: o
autofinanciamento, e ele tinha fortes convicções sobre isso. Marx
fez apenas uma breve tentativa na
Crítica do programa de Gotha
de definir como seria o socialismo, porque era um homem muito sábio,
muito inteligente e realista para imaginar que se poderia escrever uma utopia
sobre como seria o socialismo. O problema foi a interpretação das
doutrinas, e foram feitas muitas. Por isso os progressistas permaneceram tanto
tempo divididos, e as polêmicas entre anarquistas e socialistas, os
problemas depois da Revolução Bolchevique de 1917 entre
trotskistas e stalinistas ou, digamos, para os partidários daquelas
grandes polêmicas que foram geradas, a divisão ideológica
entre os dois grandes dirigentes. O mais intelectual dos dois era, sem
dúvida, Trotski. Stalin foi um dirigente mais de ordem prática,
como conspirador, não foi um teórico e, uma vez ou outra, depois,
quis agir como teórico... Lembro-me de uns livretos que eram
distribuídos em que Stalin explicava o que queria dizer o materialismo
dialético, e usava o exemplo da água... Quiseram transformar
Stalin em um teórico.
Ele era um organizador, de grande capacidade, penso que era um
revolucionário, não acredito que alguma vez tenha estado a
serviço do czar. Depois cometeu os erros que todos conhecemos, a
repressão, as "limpezas" e tudo aquilo. Lênin era o
gênio, morreu relativamente jovem, mas teria podido... Nem sempre a
teoria ajuda. Na época da construção do Estado socialista,
Lênin aplicou desesperadamente, a partir de 1921, a NEP [Nóvaya
Economícheskaya Polítika], a nova política econômica
Já falamos disso, e eu disse que o próprio Che não
simpatizava com a NEP. Mas Lênin teve uma idéia verdadeiramente
engenhosa: construir o capitalismo sob a ditadura do proletariado. Lembre-se de
que as grandes potências queriam destruir a Revolução
Bolchevique, o mundo todo a atacou.
Não se pode esquecer da história da destruição que
fizeram naquele país subdesenvolvido; a Rússia era o país
menos industrializado da Europa, e Lênin, além disso, acreditava,
seguindo a linha de Marx, que não podia haver revolução
apenas em um país e que a revolução tinha de ser
simultânea em muitos lugares, a partir de um grande desenvolvimento das
forças produtivas. Por isso o grande dilema, depois que se estabeleceu
essa primeira revolução, foi seguir ou não em frente.
Quando o movimento revolucionário fracassou no resto da Europa,
não restou a Lênin mais que uma opção: construir o
socialismo em um só país, a Rússia. Imagine a
construção do socialismo em um país com 80 por cento de
analfabetos e em uma situação na qual teriam de combater todos os
que os atacassem, e na qual os principais intelectuais, todos os que tinham
mais conhecimentos, se retiraram ou foram fuzilados. Percebe?
Ramonet - Foi uma época terrível, com intensos debates.
Fidel -
Houve tantas polêmicas. Eu, por exemplo, vejo na União
Soviética uma perda de tempo absurda nos dez anos que aplicaram a NEP
sem sequer tentar cooperativizar pouco a pouco os camponeses. Como a
produção individual deu o máximo que podia dar naquelas
condições, quiseram fazer uma coletivização
forçada. Perceba que nós nunca... Em Cuba sempre houve, no campo,
mais de 100 mil proprietários individuais. A primeira coisa que fizemos,
em 1959, foi conceder a propriedade aos que eram arrendatários e
trabalhadores precários.
NÃO HÁ SOLUÇÕES LOCAIS PORQUE A
DOMINAÇÃO É GLOBAL
Ramonet - Você considera que estamos atualmente em um momento de grande
confusão ideológica?
Fidel -
Sim. Há na ideologia uma confusão extraordinária. O
mundo em que vivemos é muito diferente do de antes. Há muitos
problemas que os grandes pensadores políticos e sociais não
podiam, em tão longo prazo, prever, ainda que seus conhecimentos tenham
sido decisivos para nos transformar em pessoas com idéias
revolucionárias. As pessoas lutam contra o subdesenvolvimento, as
doenças, o analfabetismo, mas o que se pode chamar de
solução global dos problemas da humanidade ainda não foi
encontrada. Os problemas da humanidade não têm
solução em níveis nacionais porque a
dominação se dá hoje em níveis globais: a chamada
globalização neoliberal.
A OMC [Organização Mundial do Comércio], o Banco Mundial,
o Fundo Monetário Internacional estabelecem as regras de uma
situação de dominação e exploração de
fato, que pode ser escravista, feudal. E muita gente está procurando
maneiras de se livrar dessa dominação. Você é
testemunha de quantas pessoas foram ao Fórum Social Mundial de Porto
Alegre ou de quantas foram a Bombaim em 2004. E nem sei quantos artigos sobre a
globalização liberal já li na sua revista
[Le Monde Diplomatique].
Também li artigos das publicações norte-americanas, das
inglesas, leio todas. Durante muitos anos nossos companheiros selecionavam, de
revistas como a sua, de revistas de centro, de revistas de direita
também, durante toda a semana, os artigos fundamentais sobre os
problemas econômicos. De forma que, sim, podemos dizer que é muito
difícil para as pessoas entender os problemas, porque, na maioria dos
países, não recebem uma educação econômica,
não recebem uma educação histórica, não
recebem uma educação política.
Ramonet - Contudo, você não tem a impressão de que a
globalização liberal recebeu golpes duros e já é
menos arrogante que há alguns anos?
Fidel -
Sim, eu também tenho essa impressão, porque houve o caso da
Argentina, a vitória em maio de 2003 de Néstor Kirchner, e a
derrota do símbolo da globalização neoliberal que houve
ali, precisamente, nesse momento crítico, de crise econômica
internacional. E já não é apenas uma crise no Sudeste
Asiático, como a de 1997, é uma crise mundial, mais a Guerra do
Iraque, mais as conseqüências de uma enorme dívida, mais o
fatalismo de que o dinheiro fuja. O problema é mundial, e por isso
mundialmente também se está formando uma consciência, e por
isso será um dia de glória esse dia em que outro mundo seja
finalmente possível. E observe que vem ganhando força essa frase
que acho que você mesmo propôs: "Um mundo melhor é
possível". Mas quando tivermos alcançado um mundo melhor,
que é possível, teremos de continuar repetindo: um mundo melhor
é possível. E tornar a repetir depois: um mundo melhor é
possível.
Porque sempre será preciso melhorá-lo. Eu acredito nas
idéias e acredito na consciência, nos conhecimentos, na cultura e
especialmente na cultura política, tenho uma fé cega nisso.
Nós dedicamos muitos anos à formação de uma
consciência, e temos uma grande fé, digamos, na
educação e na cultura, sobretudo na cultura política.
Vivemos em um mundo carente de cultura política. Você deve saber
melhor que ninguém, porque lutou para semear uma cultura política
em meio a problemas tão complicados como a nova ordem econômica, a
globalização neoliberal. O que se ensina, em quase todas as
escolas do mundo, são dogmas; até aqui se ensinaram dogmas.
Ramonet - Você é sensível ao problema da
proteção do meio ambiente?
Fidel -
Há trinta anos não se falava do que hoje sabemos sobre esse
tema. Havia o Clube de Roma10, que reunia algumas pessoas que faziam
previsões e falavam de diferentes temas, eram criticados, diziam que
eram "utópicos", catastrofistas etc. Foram os primeiros. E
acho que isso não tem mais de trinta anos. A questão
ecológica foi-se desenvolvendo verticalmente, a toda velocidade, no
último quarto de século. E talvez o verdadeiro drama esteja na
ignorância sobre esses riscos na qual vivemos durante tanto tempo.
Ramonet - Você acredita que não se sabia, ou não se queria
saber, porque havia uma confiança cega na ciência e na
técnica?
Fidel -
Veja, penso que a totalidade das pessoas que, 25 anos depois de terminada em
1945 a Segunda Guerra Mundial, fazia uso da razão e sabia ler e
escrever, nunca escutou uma única palavra sobre a cega marcha humana,
inexorável e acelerada rumo à destruição das bases
naturais de sua própria vida. Nenhuma outra das muitas
gerações que precederam a atual conheceu o amargo risco, nem
sentiu sobre si uma responsabilidade tão grande. Há apenas trinta
anos, insisto, a humanidade não tinha a menor consciência da
grande tragédia. Na época se acreditava que o único perigo
de extinção estava na quantidade gigantesca de armas nucleares
prontas para ser disparadas em questão de minutos.
Hoje, sem que no entanto tenham cessado ameaças desse tipo, um perigo
adicional, aterrador e dantesco a ronda. Você mesmo só deve ter
ouvido falar da camada de ozônio e das mudanças climáticas
[1]
vários anos depois de se ter formado na universidade. São muitos
os problemas novos. Hoje se sabe que o petróleo, que foi uma maravilha
da natureza, e que levou 300 milhões de anos para se formar, terá
liquidadas as suas reservas comprovadas e prováveis em apenas 150
anos...
[2]
Esse desastre é tão grande como o maior dos desastres
ecológicos, porque, se de repente faltar energia, todos os
automóveis do mundo vão parar. E ainda não existe um
substituto para o petróleo; já se chegou a acreditar que seria a
energia nuclear.
Aquelas mesmas pessoas do Clube de Roma diziam que seriam necessários
não sei quantos milhares de centrais nucleares, e os territórios
contaminados já aterrorizavam, mas ainda incentivavam a energia nuclear.
Ramonet - A França pôde desenvolver sua indústria nuclear,
mas o Irã, por exemplo, hoje quer produzir combustível nuclear, e
os Estados Unidos não permitem, originando uma crise mundial. Qual a sua
opinião sobre essa situação que se criou com o Irã?
Fidel -
O Irã reclama seu direito de produzir combustível nuclear como
qualquer nação industrializada, e não quer ser obrigado a
destruir a reserva de uma matéria-prima que serve não apenas como
fonte energética, mas também como fonte para produzir
inúmeros produtos: fertilizantes, têxteis e uma infinidade de
materiais que hoje têm uso universal. O império ameaça
atacá-lo se produzir esse combustível nuclear.
Combustível nuclear não são armas nucleares, não
são bombas nucleares. Proibir um país de produzir o
combustível do futuro é como proibir alguém de explorar
petróleo, o combustível do presente e que está destinado a
se esgotar. Que país do mundo é proibido de produzir
combustível, carbono, gás, petróleo? Com mais de 70
milhões de habitantes, o Irã está-se dedicando ao
desenvolvimento industrial e considera com toda a razão que é um
grande crime comprometer suas reservas de gás ou de petróleo para
alimentar o potencial de milhares de milhões de quilowatts-hora que
requer, com a urgência de um país de Terceiro Mundo, seu
desenvolvimento industrial. O império quer proibi-lo e o está
ameaçando com bombardeios.
Hoje [dezembro de 2005] já se discute na esfera internacional o dia e a
hora, ou se será o império ou se utilizará o
satélite israelense, do bombardeio preventivo e de surpresa, como no
Iraque, de centros de investigação que procuram obter a
tecnologia de produção do combustível nuclear. E veremos o
que vai acontecer se resolverem bombardear o Irã.
Ramonet - Vocês estão sendo acusados de ajudar o Irã com
tecnologia.
Fidel -
Sim, fomos acusados. Acusam-nos de tudo, de estarmos colaborando com o
Irã, transferindo tecnologia com esse objetivo. E o que estamos
construindo, em sociedade com o Irã, é uma fábrica de
produtos anticancerígenos! Isso é o que estamos fazendo. O
Irã assinou o Tratado de Não-Proliferação Nuclear,
como fez Cuba. Nós nunca pensamos em fabricar armas nucleares, porque
não precisamos delas. Mesmo sendo tecnicamente acessíveis, quanto
custaria produzi-las? E de que adianta produzir uma arma nuclear diante de um
inimigo que tem milhares de armas nucleares? Ninguém deve ter direito a
produzir armas nucleares. E menos ainda o privilégio que o imperialismo
assumiu de impor seu domínio hegemônico aos países do
Terceiro Mundo e de arrebatar seus recursos naturais e suas
matérias-primas.
Já os denunciamos várias vezes. E defenderemos a todo custo, em
todos os palanques do mundo, sem nenhum temor ou medo, o direito dos povos de
produzir combustível nuclear. Têm de acabar no mundo a estupidez,
os abusos, o império da força e do terror, cada vez são
mais povos que se rebelam e o império não poderá sustentar
o sistema infame que sustenta. Um dia Salvador Allende falou de "mais cedo
ou mais tarde", pois acredito que mais cedo ou mais tarde esse
império se desintegrará.
Ramonet - De certa forma, essa crise é uma primeira
conseqüência do esgotamento atual do petróleo e das
mudanças que isso está produzindo.
Fidel -
Sem dúvida, porque 80 por cento do petróleo está
atualmente nas mãos de países do Terceiro Mundo, já que os
outros esgotaram o seu, entre eles os Estados Unidos, que tinham imensas
reservas de petróleo e gás. Mas essas reservas vão durar
apenas mais alguns anos
[3]
, motivo pelo qual estão procurando garantir a posse do petróleo
onde quer que seja e da forma que puderem.
Essa fonte energética, no entanto, como já vimos, está-se
esgotando, e daqui uns 25 ou 30 anos só restará, para a
produção em massa de eletricidade além da solar, da
eólica, da biomassa etc. , uma fonte de energia fundamental: a nuclear.
Porque ainda estamos longe do dia em que o hidrogênio, mediante processos
tecnológicos muito incipientes, vai ser a fonte mais adequada de
combustível
[4]
, sem a qual a humanidade não poderá viver. Uma humanidade que
adquiriu determinado nível de desenvolvimento técnico. Esse
é um sério problema do presente. Assim anda este mundo. Há
uma série de problemas ecológicos que nem sequer são
conhecidos, as catástrofes avançam uma a uma, e há
desastres maiores, como o câncer.
Ramonet - Ou a SIDA.
Fidel -
Há 25 anos, a SIDA não existia, e hoje há mais de 40
milhões de doentes ou infectados pelo vírus HIV da SIDA. E os que
possuem os melhores laboratórios estão dedicados à
terapêutica, não à prevenção, não
às vacinas, porque um tratamento sabemos muito bem que é vendido
a 10 mil dólares por ano, e que a cada ano o doente tem de repetir, gera
mais lucros. A medicina terapêutica gera muito mais lucros do que a
medicina preventiva.
E agora também apareceu o vírus da pneumonia atípica, a
SARS [Síndrome Respiratória Aguda Grave], quando ninguém
esperava; ou o da febre do Nilo, que veio do noroeste dos Estados Unidos,
evidentemente trazido de algum lugar do mundo; ou a famosa dengue, tão
mencionada, que tem quatro formas diferentes de vírus, e a
combinação entre eles dá lugar a complicadas
doenças como a dengue hemorrágica; e pode se alastrar o
vírus da gripe aviária e provocar uma epidemia terrível,
inédita... Todos esses problemas não eram conhecidos; hoje se tem
consciência de que há uma forte relação entre todos
esses temas: economia, indústria, demografia, desenvolvimento, ecologia
Ramonet - Você estabelece alguma relação entre a
globalização liberal e a aceleração da
destruição do meio ambiente?
Fidel -
Penso que todo esforço para preservar o meio ambiente é
incompatível com o sistema econômico imposto ao mundo, essa
impiedosa globalização neoliberal, com as
imposições e condicionamentos com que o FMI sacrifica a
saúde, a educação e a segurança social de milhares
de milhões de pessoas. E com a forma cruel pela qual, mediante a livre
compra e venda de divisas entre as moedas fortes e as fracas moedas do Terceiro
Mundo, arrebatam deste fabulosas somas todos os anos.
Em síntese, acredito que preservar o meio ambiente é
incompatível com a política da OMC, concebida para que os
países ricos possam invadir o mundo com suas mercadorias sem
restrição alguma, e para liquidar o desenvolvimento industrial e
agrícola dos países pobres, sem outro futuro senão o de
fornecer matérias-primas e mão-de-obra barata; com a ALCA
[Área de Livre Comércio das Américas] e outros acordos de
livre comércio entre os tubarões e as sardinhas; com a monstruosa
dívida externa, que algumas vezes consome até 50 por cento dos
orçamentos nacionais, absolutamente impagável nas atuais
circunstâncias; com o roubo de cérebros, o monopólio quase
total da propriedade intelectual e o uso abusivo e desproporcional dos recursos
naturais e energéticos do planeta. A lista de injustiças seria
interminável. O abismo se aprofunda, o saque é maior
Ramonet - Devemos desacreditar do ser humano? Ou ainda podemos conservar um
pouco de esperança na sua capacidade de deter a corrida para o abismo?
Fidel -
Hoje sabemos o que acontece. Do meu ponto de vista, não há
tarefa mais urgente do que criar uma consciência universal, levar o
problema à massa de milhares de milhões de homens e mulheres de
todas as idades, incluindo as crianças, que habitam o planeta. As
condições objetivas e os sofrimentos de que padece a imensa
maioria deles criam as condições subjetivas para a tarefa de
conscientização. Tudo está associado: analfabetismo,
desemprego, pobreza, fome, doenças, falta de água potável,
de moradias, de eletricidade; desertificação, mudanças
climáticas, desaparecimento de áreas verdes,
inundações, ciclones, secas, erosão dos solos,
biodegradação, pragas e demais tragédias que você
conhece bem. Que resultados conseguimos desde a Cúpula do Rio em 1992?
Quase nenhum. Ao contrário. Enquanto o Protocolo de Quioto é
vítima de um arrogante boicote, as emissões de dióxido de
carbono, longe de diminuir, aumentaram 9 por cento; e as do país mais
poluidor, os Estados Unidos, em 18 por cento! Os mares e os rios estão
hoje mais envenenados do que em 1992; 15 milhões de hectares de
florestas são devastados a cada ano, quase quatro vezes a
superfície da Suíça. A sociedade humana cometeu erros
colossais e continua cometendo, mas estou profundamente convencido de que o ser
humano é capaz de conceber as mais nobres idéias, conservar os
mais generosos sentimentos e, superando os poderosos instintos que a natureza
lhe impôs, é capaz de dar a vida pelo que sente e pelo que pensa.
Assim demonstraram muitas vezes ao longo da história.
Ramonet - Quantos estudantes há em Cuba?
Fidel -
Atualmente há mais de 500 mil estudantes em nossas universidades, de
todos os ramos da ciência, e que podem ser qualificados e requalificados,
podem passar de uma atividade para outra e serão capazes de muitas
coisas. Entre esses estudantes, mais de 90 mil eram jovens que não
tinham matrícula nem emprego, muitos deles de origem humilde, que hoje
estão obtendo excelentes resultados nos estudos universitários.
Existem já 958 universidades. Há 169 universidades municipais, do
Ministério de Educação Superior; há 84
universidades em comunidades açucareiras; 18 em prisões, unidades
de ensino superior que têm centenas de matriculados em licenciatura de
estudos socioculturais. E isto é novidade: universidades nas
prisões.
Existem também 169 universidades de saúde pública, 1352
unidades de clínica geral, unidades de saúde e bancos de sangue,
nos quais se estudam diferentes licenciaturas associadas à saúde
pública. E há quase 100 mil professores entre titulares e
assistentes. Muitas pessoas que faziam parte da máquina
burocrática das centrais açucareiras e de outros lugares hoje
estão dando aula, são professores-assistentes. Entre ambos,
estudantes e professores sem mencionar os funcionários das universidades
há em torno de 600 mil.
Notas
1- Resistir.info abordou o mito das supostas mudanças climáticas
em
A fabricação do pânico climático
e em
Aquecimento global: uma impostura científica
2- O Comandante é excessivamente optimista. O prazo mencionado
deve ser reduzido em pelo menos dois terços.
3- O pico da produção petrolífera nos Estados Unidos
verificou-se em 1971.
4- Trata-se de um equívoco pois o hidrogénio não é
uma fonte de energia e sim um vector. É discutível que na
produção do hidrogénio o rácio da Energia Retornada
sobre a Energia Investida possa ser superior a um.
[*]
Fragmentos da entrevista de Fidel Castro a Ignacio Ramonet, publicada em
Fidel. biografia a duas vozes,
Boitempo Editorial
, S. Paulo, 2006, 636 pgs., ISBN 85-7559-047-2. Tradução de Emir
Sader.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
|