A recuperação do desastre neoliberal

Porque a Islândia e a Letónia não pagarão (nem poderão) as trapaças dos cleptocratas

por Michael Hudson [*]

Mural islandes denuncia o custo social de continuar o capitalismo. Podem a Islândia e a Letónia pagar as dívidas externas assumidas por uma diminuta camada da sua população?

A União Europeia e o Fundo Monetário Internacional disseram-lhes para substituir dívidas privadas por obrigações públicas e para pagá-las elevando impostos, cortando nos gastos públicos e obrigando cidadãos a esgotarem as suas poupanças.

O ressentimento está a crescer não só em relação àqueles que assumiram estas dívidas – a bancarrota do Kaupthing and Landsbanki da Islândia com as suas contas Icesave, bem como proprietários fortemente alavancados por dívida no países bálticos e na Europa Central – como também em relação aos conselheiros neoliberais e credores estrangeiros que pressionaram estes governos a venderem ao desbarato os bancos e as infraestruturas públicas a certos iniciados.

Na Islândia, o apoio para a adesão à UE caiu para pouco mais de um terço da população, ao passo que na Letónia o partido Centro da Harmonia, o primeiro desde a independência a incluir um vasto segmento da população que fala russo, ganhou a maioria em Riga e está a tornar-se o partido mais popular do país. Os protestos populares em ambos os países dispararam crescente pressão política no sentido de limitar o fardo da dívida a uma capacidade de pagamento razoável.

Esta pressão política chegou ao máximo no Parlamento de Reykjavik neste fim-de-semana. O Althing acordou uma proposta, que se espera ser formalizada hoje, pela qual restringiria severamente pagamentos ao Reino Unido e à Holanda como compensação pelo seu custo no salvamento dos seus depositantes internos no Icesave.

Este acordo é, tanto quanto estou ciente, o primeiro desde a década de 1920 a subordinar a dívida externa de um país à sua capacidade para pagar. Os pagamentos da Islândia serão limitados a 6 por cento do crescimento do produto interno bruto a partir de 2008. Se os credores adoptarem acções que sufoquem a economia islandesa com medidas de austeridade e se a imigração continuar às taxas actuais a fim de escapar da economia infestada de dívida, não haverá crescimento e eles não obterão pagamento.

Um problema semelhante foi debatido há 80 anos atrás quanto às reparações da Alemanha pela I Guerra Mundial. Mas os decisores políticos ainda estão confusos sobre a distinção entre espremer um excedente fiscal interno e a capacidade de pagar dívidas externas. Não importa quanto um governo possa tributar a sua economia, há um problema de transformar o dinheiro em divisa externa. Como explicou John Maynard Keynes, a menos que países devedores possam exportar mais, eles devem pagar tanto pela contracção de empréstimos (estados e municipalidades alemães contraiam empréstimos em dólares em Nova York e depositavam-nos no Reichsbank para obter divisas internas, o qual pagava os dólares aos Aliados) ou pela liquidação de activos internos. A Islândia rejeitou estas políticas auto-destrutivas.

Há um limite para quanto pagamento externo possa efectuar uma economia. Impostos internos mais altos não significam que um governo possa transformar esta receita em divisas externas. Esta realidade é reflectida na insistência da Islândia de que os pagamentos das dívidas do seu Icesave, e obrigações relacionadas decorrentes da fracassada privatização do seu sistema bancário, seja limitada a alguma percentagem (digamos, 3 por cento) do crescimento do seu produto interno bruto (PIB). Há a assunção de que parte deste crescimento possa ser reflectida em exportações mas, se isso não acontecer, a Islândia está a insistir em "condicionalidades" do seu lado para levar em conta a sua posição real de balança de pagamentos.

A questão da dívida externa ultrapassa a própria Islândia. Por toda a Europa, partidos políticos que defendem a condição de membro da UE enfrentam o problema de que o critério de convergência de Maastricht limite a dívida pública a 60 por cento do PIB. Mas a dívida externa do sector público da Islândia – excluindo dívida interna – saltaria para cerca de 240 por cento do PIB se o país concordasse com as exigências do Reino Unido e da Holanda de reembolsar os seus governos pelos salvamentos do Icesave. Enquanto isso, a concessão de empréstimos da UE e do FMI aos países bálticos para apoio à sua divisa externa – ameaça igualmente descarrilar o processo de ingresso que até há pouco parecia estar nos trilhos.

O problema para as economias pós-soviéticas é que a independência em 1991 não trouxe os esperados padrões de vida do Ocidente. Tal como a Islândia, estes países permanecem dependentes de importações para os seus bens de consumo e equipamento de capital. Os seus défices comerciais foram financiados pela bolha global da propriedade – contraindo empréstimos em divisas externas contra propriedade que estava livre de dívidas no momento da independência. Agora estes activos estão totalmente comprometidos, a bolha estourou e o momento do reembolso chegou. Não há mais crédito a fluir para os países bálticos a partir de bancos suecos, húngaros e austríacos, ou da Islândia para a Grã-Bretanha e a Holanda. O desemprego está em ascensão e os governos estão a cortar nos orçamentos da saúde e da educação. A contracção económica resultante está a deixar vastos conjuntos imobiliários em situação líquida negativa.

Nos países do Terceiro Mundo os programas de austeridade foram comuns desde a década de 1970 até à de 1990, mas as democracias europeias têm menos tolerância por tão destrutiva anuência a credores estrangeiros por empréstimos que no melhor dos casos eram irresponsáveis e no pior absolutamente predatórios. Famílias estão a perder seus lares e a emigração está a acelerar-se. Isto não é o que os neoliberais prometiam.

As populações estão a perguntar não só se a dívidas deveriam ser pagas, mas se elas podem ser pagas! Se não puderem, então tentar pagar só contrairá as economias ainda mais, impedindo-as de se tornarem viáveis. Foi isto que no passado levou os programas de ajustamento estrutural a fracassarem.

Será que a Grã-Bretanha e a Holanda aceitarão esta nova realidade? Ou agarrar-se-ão à ideologia neoliberal – que é pro-credor – e manter-se-ão teimosamente a insistir que "uma dívida é uma dívida" e que e que sim. Tentar espremer mais serviço de dívida do que um país pode pagar exige um regime extractivo fiscal e financeiro opressivo, advertiu Keynes, o que por sua vez inspiraria uma reacção política nacionalista no sentido de romper as exigências do país credor. Foi isto que aconteceu na década de 1920 quando a economia da Alemanha foi arruinada pela imposição da rígida ideologia da santidade da dívida.

Uma dinâmica semelhante está a verificar-se desde a Islândia até os países bálticos. A UE está a dizer à Islândia que a fim de aderir ela deve pagar à Grã-Bretanha e à Holanda as dívidas do Icesave até o fim do Outono. E na Letónia, a UE e o FMI disseram ao governo para contrair empréstimos em divisa externa a fim de estabilizar a taxa de câmbio para ajudar os devedores do imobiliário a pagarem hipotecas em divisas externas assumidas junto a bancos suecos e outros para alimentar a sua bolha da propriedade, elevar impostos e cortar drasticamente despesas públicas com educação, cuidados de saúde e outras necessidades básicas a fim de "absorver" rendimento. Impostos mais altos são para reduzir a procura de importações e também os preços internos, como se isto automaticamente tornasse o produto mais competitivo nos mercados de exportação.

Mas nem a Islândia nem a Letónia produzem muito para exportar. Os Estados Bálticos não instalaram muita capacidade de produção desde que obtiveram a independência em 1991. A Islândia tem peixe, mas grande parte das suas licenças de quota foram penhoradas em empréstimos com juros que absorvem grande parte das divisas externas provenientes da venda de bacalhau. Os encargos com juros também absorvem a maior parte da receita das suas exportações de alumínio, bem como dos recursos geotérmicos e hidroeléctricos.

Em tais condições, entra em acção um princípio económico pragmático. As dívidas que não podem ser pagar, não serão. O que permanece uma questão aberta é apenas como elas não serão pagas. Serão canceladas muitas? Ou a Islândia, a Letónia e outros devedores serão afundadas na austeridade numa tentativa de espremer um excedente económico a fim de evitar incumprimento?

O fracasso em reconhecer a capacidade limitar de pagar traz o perigo de conduzir países super-endividados para fora da órbita do Ocidente. A população da Islândia está transtornada com o apoio da UE às tácticas de intimidação da Grã-Bretanha e da Holanda para tentar extrair reembolsos pelo salvamento dos seus depositantes do Icesave – € 2,6 mil milhões para a Grã-Bretanha e €1,3 mil milhão para a Holanda. Os sociais-democratas venceram a eleição de Abril para o Althing com uma plataforma de adesão à UE, mas a sobrecarga do país com estas dívidas do Icesave o impedir de cumprir o critério de Maastricht para aderir à UE. Isto faz com a Europa pareça mais preocupada com a arrecadação da dívida do que em obter novos membros.

Dentre as preocupações mais graves estão as consequências a longo prazo de substituir incumprimentos por promotores de pirâmides de dívida e cleptocratas rematadas com uma nova dívida pública a agências internacionais de governo – dívida que é muito menos fácil cancelar. Eva Joly, a promotora francesa trazida à Islândia para destrinçar a cleptocracia bancária islandesa, advertiu no princípio deste mês que se a Islândia sucumbir às actuais exigências da UE, "Apenas umas poucas dezenas de milhares de pescadores aposentados serão deixados na Islândia, juntamente com os seus recursos naturais e uma posição geoestratégica chave à mercê do concorrente com a oferta mais alta – a Rússia, por exemplo, pode bem considerá-la atraente". [1] Os países pós-soviéticos já estão a ver os eleitores a afastarem-se da Europa em reacção às políticas destrutivas que a UE tem apoiado.

Nem a Grã-Bretanha nem a Holanda, nem a UE nem o FMI, apresentaram um cenário sobre como se supõe que a Islândia pague as dívidas que estão a ser reclamadas. Quanto terá de cair o rendimento pessoal e os padrões de vida? Que programas do governo devem ser cortados? Quantos incumprimentos sobre hipotecas internas e dívidas pessoas resultarão e quanto desemprego? Quanta emigração ocorrerá? Os modelos que estão a ser empregues tratam estas dimensões do problema económico como "externalidades", mas elas centrais para saber como o sistema económico funciona na prática.

A pergunta é se a ideologia neoliberal se renderá à realidade económica ou, em alternativa, se a política económica reterá as viseiras que tipicamente caracterizam as políticas de curto prazo orientadas para o credor. O que está a bloquear uma mais razoável política pro-crescimento, observou a Sra. Joly, é que "a presidência sueca da UE não parecer ter pressa para melhorar a regulação dos sectores financeiro e os comités do Parlamento Europeu voltados para a economia são, mais do que sempre, dominado por liberais, particularmente liberais britânicos". Assim a Europa continua a impor uma ideologia económica de vistas curtas. Portanto, concluiu ela:

"O sr. Brown está errado quando diz que ele e o seu governo não têm responsabilidade no assunto. Em primeiro lugar, o sr. Brown tem uma responsabilidade moral, pois foi um dos principais proponentes deste modelo o qual agora se despenhou. ... Poderia alguém pensar realisticamente que um punhado de pessoas em Reykjavik poderia controlar efectivamente as actividades de um banco no coração da City?.. a directivas europeias respeitantes a conglomerados financeiros parecem sugerir que estados membros da UE que permitam tais estabelecimentos de terceiros países nos seus territórios devem assegurar que eles estejam sujeitos ao mesmo nível de controle pelas autoridades do país de origem como previsto pela legislação europeia. ... uma falha da parte das autoridades britânicos neste ponto ... não seria particularmente surpreendente considerando o 'desempenho' de outros bancos ingleses ... durante a crise financeira? Em caso afirmativo, o activismo do sr. Brown em relação a este pequeno país pode ser motivado por um desejo de parecer poderoso aos olhos do seu eleitorado e dos contribuintes ..."

Algumas verdades financeiras inconvenientes e pontos cegos ideológicos

A maior parte dos pagamentos de seguros de depósitos de instituições insolventes são meramente de âmbito técnico: quantos são os depositantes segurados e quão rapidamente eles serão pagos? Mas o problema do Icesave é tão grande em magnitude que levanta questões económicas vastas legalmente mais intrincadas. A posição do Althing sobre a dívida externa da Islândia – e os abusos dos seus cleptocráticos privatizadores internos da banca – representa um grande avanço, uma mudança de fase nas relações globais devedor/credor.

Sem dúvida, por isso, os credores e os neoliberais combaterão a valente posição tomada pela Islândia veementemente, raivosamente, incorrectamente e extra-legalmente. Para começar, Gordon Brown não seguiu os adequados procedimentos legais acordados em 6 de Outubro último quando ele fechou as agências do Icesave do Landsbanki e as filiais do Kaupthing. Sob condições normais a Islândia ter-se-ia beneficiado do direito, sob a lei europeia, de pagar aos depositantes de uma maneira ordenada. Mas o sr. Brown impediu isto ao ordenar à agência de depósito de seguros britânicos que pagasse aos depositantes do Icesave como se eles estivessem cobertos pelo seguro do Reino Unido. Foi uma decisão precipitada que poderia tornar-se um dos maiores erros da sua carreira. As agências do Icesave eram legalmente extensões do Landsbanki na Islândia, cobertas pelo esquema de seguros de depósitos islandês, não pelo britânico.

O Fundo de Garantia de Depositantes e Investidores (TIF) da Islândia é financiado privadamente por bancos internos, não é público como o Federal Deposit Insurance Corp. (FDIC) dos Estados Unidos ou a Financial Services Agency (FSA) da Grã-Bretanha. Reflectindo a filosofia neoliberal da Islândia do tempo em que os bancos foram privatizados, faltava capital ao TIF para cobrir as perdas que se seguiram. Foi como o conglomerado de seguros AIG dos EUA, cujos prémios foram estabelecidos demasiado baixos para reflectir o risco real envolvido. O problema é típico da ideia neoliberal do "mercado racional" de que dívidas não podem criar um problema, mas simplesmente reflectem preços de activos que por sua vez reflectem perspectivas de rendimento.

Num ambiente em que se assistiu aos fracassos do Northern Rock e do Royal Bank of Scotland, em 5 de Outubro o ministro do Comércio da Islândia escreveu a Clive Maxwell, do Tesouro britânico, para assegurar-lhe que o governo permaneceria por trás do TIF no reembolso dos depositantes do Icesave de acordo com directivas da UE. Mas três dias depois o ministro das Finanças britânico, Alistair Darling, afirmou que a Islândia recusava-se a pagar. Com este pretexto o sr. Brown utilizou leis anti-terroristas de emergência aprovadas em 2001 para congelar fundos islandeses na Grã-Bretanha. Ele fez isso apesar da promessa da Islândia de obedecer às regras da UE. Às autoridades islandesas não foi dada oportunidade para resolver o assunto. A Grã-Bretanha e a Holanda (como reconhecem na proposta de acordo com o qual confrontaram os negociadores islandeses em 5 de Junho de 2009) simplesmente "informaram" as autoridades islandesas, sem seguirem as regras nem consultá-las a fim de obter permissão para o seu salvamento rápido de depositantes.

Isto afecta a questão de saber quem é legalmente responsável pelo reembolso britânico e holandês aos depositantes do Icesave e Kaupthing. As leis relevantes da UE dão às autoridades responsáveis um prazo de três meses para proceder ao pagamento – com novo período de seis meses quando necessário. Isto teria permitido à Islândia cobrar de bancos clientes britânicos tais como o empresário do retalho (e grande accionista do Kaupthing) Kevin Stanford, o qual contraiu empréstimos de milhares de milhões de euros, muito além do que era adequado sob as regras bancárias. Sabe-se agora que os bancos islandeses na Grã-Bretanha estavam a esvaziar os seus depósitos através de empréstimos inadequados a residentes britânicos. Mas ao invés de ajudar a Islândia a mover-se de modo atempado para recuperar depósitos que o Landsbanki e o Kaupthing haviam concedido como empréstimos, a precipitação britânica mergulhou-a na anarquia financeira. A equipe Fraudes Graves começou a ajudar a investigação e o processo de recuperação apenas depois de umas poucas semanas – no momento em que os fundos se foram!

Em 4 de Novembro, a ECOFIN, a agência de supervisão da UE, efectuou uma reunião ministerial informal e "concordou, sob circunstâncias muito inabituais", em examinar a crise financeira em que as insolvências do Icebank e Kaupthing haviam mergulhado o país. A UE propôs que o problema fosse resolvido por cinco responsáveis financeiros. Mas a Islândia preocupava-se com a possibilidade de tais indivíduos tenderem a adoptar uma posição dura orientada para o credor. Ao ver como a Grã-Bretanha e a Holanda havia actuado por si próprias sem considerar como as suas acções estavam a ferir a Islândia, o ministro das Finanças Arni Mathiese em 7 de Novembro, sensatamente, escreveu a Christine Lagarde, presidente do ECOFIN Council, que o governo da Islândia não participaria na revisão das obrigações islandesas sob a Directiva 94/19/EC.

A directiva da UE trata apenas do colapso de bancos individuais, assumindo ser este problema de âmbito meramente marginal e portanto prontamente administrável pelos governos signatários. Mas "a quantia envolvida poderia estar acima dos 60% do PIB da Islândia", explicou o sr. Mathiesen. A directiva deixava a Islândia num limbo legal quanto ao "âmbito exacto das obrigações de um Estado ... numa situação em que há um colapso completo do sistema financeiro". A directiva simplesmente não considerava o colapso sistémico de uma economia desenvolvida da Europa Ocidental. Tal é o estado da teoria do equilíbrio hoje predominante – um argumento ideológico de que as economias se estabilizam automaticamente portanto nenhuma política governamental é necessário, nem supervisão ou regulação pública.

Trata-se de um conjunto de suposições e teoria económica lixo amadas por cleptocratas, vigaristas e neoliberais, pois isso lhes permite obterem muita, muita riqueza e então correrem ao governo afirmando que um acidente como o Katrina verificou-se o qual exige que eles sejam plenamente salvo ou do contrário a economia entrará em colapso sem os seus serviços interesseiros de busca da riqueza. Este misticismo do "mercado racional" é o que agora passa por ser ciência económica. E é em nome desta ciência lixo que responsáveis financeiros da UE e, na verdade, banqueiros centrais de todo o mundo são doutrinados com viseiras que na verdade lhes permitem achar que todo o colapso das suas teorias é "inesperado".

A questão que precisava ser enfrentada frontalmente era como considerar as "circunstâncias muito inabituais" da Islândia resultantes da sua fé injustificável na teoria neoliberal, a qual assumia que as finanças e os encargos da dívida nunca colocariam um problema estrutural pois apenas serviria para facilitar o crescimento económico. Estava em causa a ideologia da "santidade da dívida" que não considerava o contexto económico amplo e as perspectivas de crescimento. "A Islândia tem de assegurar que o seu esquema de garantia de depósito tem meios adequados e está em posição de indemnizar depositantes", escreveu o ministro das Finanças. O problema era de carácter macroeconómico, mas o esquema de seguro da banca cobria apenas 1% dos depósitos – sob condições em que os três principais bancos do país foram todos dirigidos sob uma combinação de administração má ou absolutamente cleptocrática e com o congelamento pela Grã-Bretanha dos fundos islandeses na sequência do colapso do Icesave. Em 25 de Novembro uma equipe do FMI calculou que "Uma nova depreciação da taxa de câmbio de 30 por cento provocaria uma nova elevação precipitada no rácio da dívida (para 240 por cento do PIB em 2009) e seria claramente insustentável". [3]

Gordon Brown passou grande parte de 2009 a tentar pressionar o FMI para cobrar pela insolvência do Kaupthing bem como das contas Icesave do Landesbanki. A 6 de Maio ele anunciou no Parlamento a sua intenção de pedir ao FMI que pressionasse a Islândia a reembolsar depositantes nas filiais do Kaupthing. Recordaram-lhe que ao contrário das agências Icesave, estas últimas foram incorporadas como entidades britânicas, fazendo com que as suas contas fossem da responsabilidade da regulação e do seguro de depósito britânicos. O incorrecto foi o seu grosseiro tratamento do FMI como um cobrador de dívidas de países credores, utilizando-o como uma alavanca supra-legal para pressionar a Islândia a pagar dinheiro que os seus negociadores sentiam que não deviam sob as regras da UE. Esta era a posição até do antigo primeiro-ministro neoliberal e governador do Banco Central, o próprio sr. Oddson.

Por que fazer tal pressão se a obrigação está claramente especificada no contrato? Aparentemente o sr. Brown queria livrar-se de culpas por pagar aos depositantes de bancos britânicos e assegurá-los de que os estrangeiros pagariam. Ele demonstrou ser incorrigível, pressionando a UE para dizer à Islândia que não podia negociar a adesão até que estivesse arrumada a "sua" dívida do Icesave para com a Grã-Bretanha. E o ministro dos Estrangeiros holandês, Maxime Verhagen, foi igualmente explícito a 21 de Julho. Numa declaração oficial ele advertiu a sua contraparte islandesa de que era "absolutamente necessário" para a Islândia aprovar o acordo de compensação concedido a pessoas que perderam poupanças quando o banco Internet Icesave foi à bancarrota. "Uma solução para os problemas em torno do Icesave podia levar ao manuseamento rápido do pedido da Islândia para aderir à União Europeia", sugeriu o ministro. "Isto poderia mostrar que a Islândia considera as linhas de orientação da UE seriamente". [4] O que isto mostrava, naturalmente, era que a UE estava a permitir que a Grã-Bretanha e a Holanda utilizassem ameaças extorsionárias para vetá-la como membro se eles não obtivessem o que queriam: os cerca de €4 mil milhões de reembolso do salvamento mais juros a 5,5%.

Seria difícil imaginar o que poderia ter sido mais efectivo para desencorajar o desejo islandês de pertencer à UE. Em 23 de Julho a Faculdade de Direito da Universidade da Islândia discutiu os pormenores e criticou o acordo confidencial – sem sequer ter tido acesso a ele. A Grã-Bretanha e a Holanda insistiram em que os termos e pormenores do acordo não fossem publicados, sob pena de os responsáveis pela fuga de informação enfrentarem processo. Mas aparentemente através de um erro de secretariado ele apareceu na Internet a 27 de Julho! O resultado foi uma explosão de raiva, não apenas para com a Grã-Bretanha e a Holanda como também para com os seus próprios negociadores financeiros por simplesmente não abandonarem a sala quando termos autoritários foram ditados sob a mira de armas políticas e financeiras.

As chamas espalharam-se ainda mais a 31 de Julho quando Wikileaks publicou um relatório Kaupthing de 25 de Setembro de 2008, pormenorizando os empréstimos para iniciados que haviam ajudado a levar o banco à insolvência. Os principais accionistas haviam tomado emprestado contra acções do seu banco para impeli-las para cima e dar a aparência de prosperidade e solvência. (Evidentemente decidindo que chegara a hora de apanhar o dinheiro e fugir, os proprietários do banco esvaziaram os cofres fazendo empréstimos para si próprios. Isto assinalou o dobre de finados para quaisquer novas fantasias acerca de "mercados eficientes" na selva neoliberalizada da desregulação financeira de hoje.

Apesar do facto de o Kaupthing ter sido nacionalizado pelo governo da Islândia, este actuou para impedir a rede nacional de TV do país de difundir os pormenores. Isto foi um tiro pela culatra pois é o equivalente a pedir que um livro seja proibido em Boston – o sonho publicitário de qualquer editor! O escândalo fascinou todo o país, estimulando tantos islandeses a irem on-line para ler o documento que a ordem mordaça foi suspensa a 4 de Agosto. A resposta uma fúria chocada com comportamento desonesto cujas consequências ameaçavam engolfar todo o país num mau negócio quanto à dívida externa.

Dia 1 de Agosto, Eva Joly, a qual fora contratada como promotora federal no semestre anterior, publicou o seu artigo em Le Monde que apareceu em muitos outros países a criticar o comportamento britânico. Mas mais perturbador de tudo foi a publicação da minuta dura do acordo que os negociadores britânicos e holandeses haviam passado para as mãos do ministro das Finanças da Islândia no dia 5 de Junho de 2009. A minuta não reflectia absolutamente nada as advertências em que os negociadores islandeses haviam insistido na reunião prévia de Novembro. Fortalecido pela retórica estridente de Gordon Brown e pela insistência britânica em que os termos fossem mantidos secretos, a posição dura de "pegue ou deixe" da UE criou uma atmosfera na qual o Althing tinha pouca escolha além de traçar uma linha e insistir em que qualquer ajuste do Icesave tinha de reflectir uma razoável capacidade da Islândia para pagar. O Icesave foi caricaturado como "Iceslave", alusão à escravidão pela dívida que ameaçava a Islândia. O ministro das Finanças (um antigo líder comunista) pareceu aquém das suas capacidades ao ter-se submetido em face da pressão para capitular diante de inflexíveis negociadores britânicos.

Os meandros legais deste episódio provavelmente levarão a UE a clarificar as suas leis financeiras. Quanto à ideologia económica, a teoria do ciclo de negócios não considerou adequadamente mudanças no governo, retrocessos nacionalistas ou mudanças no ambiente legal e político. Assim, este pareceria ser o ano no qual o mundo escapará ao que era encarado meramente como um "ciclo" dentro de um sistema (o da transição da era pós Bretton Woods) para colocar ao próprio sistema a questão: como tratar países com dívidas para além da sua capacidade para pagar.

Os islandeses pelo seu lado sentem que a UE os tratou como uma colónia financeira enquanto apoiava uma cleptocracia neoliberal rapinando uma população cada vez mais endividada. Sob muitos aspectos a Islândia é o topo do iceberg – o proverbial canário na mina de carvão que mostra a necessidade de lidar com economias super endividadas. Os programas de austeridade da UE e no estilo FMI para pagamento de dívidas externas que iniciados corruptos assumiram não é o que foi prometido em 1991 às economias pós soviéticas ou aos devedores do Terceiro Mundo. Não é a promessa do capitalismo industrial. É uma distopia financiarizada pós industrial, um neofeudalismo imperial.

Por que o movimento da Islândia é tão importante para a reestruturação das finanças internacionais

Na década passada a Islândia foi uma espécie de experimento controlado, um caso teste extremo da ideologia neoliberal do livre mercado. O que foi testado foi se há um limite para quão longe uma população pode ser pressionada à dependência da dívida. Haverá um limite, um ponto no qual o governo traçará uma barreira impondo responsabilidade pública por dívidas privadas para além de qualquer capacidade razoável para pagar sem amputar drasticamente gastos com educação, cuidados de saúde e outros serviços básicos?

Está em causa o relacionamento entre o sector financeiro e a economia "real". Da perspectiva da economia "real", o papel correcto do crédito – isto é, da dívida – é financiar investimento em capital tangível e crescimento económico. O objectivo é criar um sistema fiscal e um sistema financeiro regulatório para maximizar a economia "real".

Afinal de contas, é a partir do excedente económico que os juros têm de ser pagos, se não forem extractivos e absolutamente predatórios. Mas os credores não têm mostrado muito interesse quanto ao bem-estar da economia no sentido basto. Administradores de bancos e correctores de hipotecas subprime, atacantes corporativos e seus detentores de títulos, e especialmente a nova raça de privatizadores cleptocráticos aplaudida tão fortemente pelos ideólogos da economia neoliberal simplesmente (e grosseiramente, acho) perguntaram quanto do excedente pode ser espremido e capitalizado no serviço da dívida. Da sua perspectiva, a riqueza de uma economia é medida pela magnitude das obrigações de dívida – hipotecas, títulos e empréstimos bancários empacotados – que capitalizam rendimento e antecipam ganhos de capital à taxa de juro corrente.

A Islândia decidiu que era errado submeter a sua banca a uns poucos oligarcas internos sem qualquer supervisão ou regulação real, com base na agora desacreditada suposição de que o seu auto-interesse de alguma forma beneficiaria a economia. A partir da posição privilegiada da teoria económica, não era loucura imaginar que o gracejo de Adam Smith acerca de não confiar na benemerência do talhante, cervejeiro ou padeiro para obter os seus produtos e sim no seu auto-interesse é aplicável a banqueiros. O seu "produto" não é um bem de consumo tangível, mas divida – na verdade, dívida que renda juros. E dívidas são direitos sobre produto, receita e riqueza, não a própria riqueza.

É nisto que fracassa o entendimento dos neoliberais pró financeiros. Para eles, criação de dívida é "criação de riqueza" (eufemismo favorito de Alan Greenspan), porque é crédito – isto é, dívida – que eleva preços para a propriedade, acções e títulos e portanto aumenta os balanços financeiros. A matematicamente distorcida "teoria do equilíbrio" subjacente à ortodoxia neoliberal trata preços de activos (riqueza no sentido financeiro da expressão) como a reflectir perspectiva de rendimento. Mas na Bolha Económica de hoje, preços de activos reflectem seja o que for que os banqueiros emprestem – e ao invés de serem baseados no cálculo racional os seus empréstimos são baseados meramente sobre o que os banqueiros de investimento são capazes de empacotar e vender para instituições financeiras crédulas que tentam pagar pensões a partir do processo de dirigir economias para a dívida, ou então dispor de crédito que os bancos podem criar livremente.

A quantia da dívida que pode ser paga é limitada pela dimensão do excedente económico – lucros corporativos e rendimento pessoal para o sector privado e o rendimento fiscal líquidos pago ao cobrador de impostos pelo sector público. Mas na geração passada nem a teoria financeira nem a prática global reconheceram qualquer constrangimento à capacidade para pagar. Assim foi permitido ao serviço da dívida comer da formação de capital e reduzir padrões de vida.

Como alternativa a tal ilegalidade financeira, o Althing afirma o princípio da dívida soberana logo no princípio ao responder às exigências britânica e holandesa ao governo da Islândia de garantir o pagamento do salvamento do Icesave:

As pré condições para a extensão da garantia do governo de acordo com esta Lei são:

1- Que ...será levada em conta a dificuldade e circunstâncias sem precedentes com a qual a Islândia é confrontada e a necessidade de decidir sobre medidas que a capacitem a reconstruir o seu sistema financeiro e económico.

Isto implica, dentre outras coisas, que as partes contratantes concordarão com um pedido fundamentado e objectivo da Islândia de uma revisão dos acordos em conformidade com as suas disposições.

2- Que a posição da Islândia como estado soberano exclua processos legais contra seus activos os quais lhe são necessários para cumprir de uma maneira aceitável as suas funções como estado soberano.

Ao invés de impor a espécie de programas de austeridade que devastaram países do Terceiro Mundo desde a década de 1970 até a de 1990 e levá-los a evitar o FMI como uma praga, o Althing está a mudar as regras do sistema financeiro. Está a subordinar o reembolso da Islândia à Grã-Bretanha e à Holanda à capacidade da economia islandesa para pagar.

Ao avaliar as pré condições para uma revisão dos acordos, também será levada em conta a posição da economia nacional e das finanças do governo em qualquer dado momento e as perspectivas a este respeito, com atenção especial sendo dada a questões cambiais, desenvolvimentos da taxa de câmbio e à balança de transacções correntes, ao crescimento económico e às mudanças no produto interno bruto bem como a desenvolvimentos quanto à dimensão da população e da participação no mercado de empregos.

A resistência deste fim de semana é um grande avanço que promete (ou, aos credores, ameaça) mudar o ambiente financeiro mundial. Pela primeira vez desde a década de 1920 o princípio da capacidade-para-pagar está a ser tornado a base legal explícita para o serviço internacional da dívida. A quantia a ser paga está a ser limitada a uma proporção específica do crescimento do PIB da Islândia (com a suposição de que este possa na verdade ser convertido em receitas de exportação). Após a recuperação da Islândia, o pagamento que o Tesouro garante à Grã-Bretanha para o período 2017-2023 será limitado a não mais do que 4% do crescimento do PIB a partir de 2008, mais outros 2% para os holandeses. Se não houver crescimento do PIB, não haverá serviço da dívida. Isto significa que se os credores adoptarem acções punitivas cujo efeito é estrangular a economia da Islândia, eles não serão pagos.

A moral é que a Terceiro Lei do Movimento, de Newton – que toda acção tem uma reacção igual e oposta – é aplicável à política e à economia, assim como à física. Como na maior parte da área de desastre neoliberalizada a fundo, a Islândia é claramente a primeira e economia a reagir. Os últimos dois anos viram o seu status mergulhar dos mais altos padrões de vida do Ocidente (financiados pela dívida, como se verifica) ao mais profundamente alavancado pela dívida. Em tais circunstâncias é natural para uma população e seus responsáveis eleitos experimentarem um choque cultural – neste caso, uma consciencialização da destrutiva ideologia do "livre mercado" neoliberal, eufemismo que levou à privatização dos bancos do país e a consequente farra da dívida.

A Islândia promete ser simplesmente o primeiro país soberano a levar a oscilação do pêndulo para longe de uma ideologia de mercados livres, para um reconhecimento de que na prática está retórica revela-se ser uma teoria económica lixo favorável a bancos e credores globais. Dívida que rende juros é o "produto" que os bancos vendem, afinal de contas. O que parecia à primeira vista ser "criação de riqueza" era mais exactamente criação de dívida, na qual os bancos não assumiam responsabilidade pela capacidade para pagar. O crash resultante levou subitamente o sector financeiro a acreditar que gostava do controle centralizado de governo afinal de contas – na medida dos exigentes salvamentos do sector público que reduziriam economias endividadas à geração de escravidão fiscal pela dívida e a resultante contracção económica.

Tanto quanto sei, este acordo é o primeiro desde o Plano Young de reparações da Alemanha a subordinar obrigações internacionais de dívida ao princípio da capacidade-para-pagar. A proposta do Althing soletra isto em termos legais claros como alternativa à ideia neoliberal de que economias devem pagar por bem ou por mal (willy-nilly, como diria Keynes), sacrificando seu futuro e conduzindo a sua população a emigrar no que se revela ser uma vã tentativa de pagar dívidas que, no fim, não podem ser pagas mas simplesmente deixam as economias devedoras irremediavelmente dependentes dos seus credores. No final das contas, países democráticos não estão desejosos de renunciar ao planeamento da autoridade política em favor de uma oligarquia financeira emergente.

Não há dúvida de que os países pós soviéticos estão a observar, juntamente com os latino-americanos, africanos e outros devedores soberanos cujo crescimento tem sido atrofiado pelos programas predatórios de austeridade que o FMI, o Banco Mundial e neoliberais da UE impuseram nas últimas décadas. A era pós Bretton Woods está acabada. Todos nós deveríamos celebrar.

17/Agosto/2009
Notas
[1] Eva Joly, "Iceland: Lessons to be Learned from The Economic Meltdown," Global Research, August 7, 2009.
[2] O Artigo 10 da Directiva 94/19/EC dispõe que "(1) Esquemas de garantia de depósito estarão em posição de pagar reclamações devidamente verificadas de depositantes em relação a depósitos indisponíveis dentro de três meses", e "(2) Em toda circunstância excepcional e em casos especiais um esquema de garantia pode ser aplicado pelas autoridades competente durante uma extensão do limite de tempo. Nenhuma de tais extensões excederá três meses. A autoridade competente pode, a pedido do esquema de garantia, conceder não mais do que duas novas extensões, nenhuma das quais excederá três meses". Por outras palavras, a Islândia dispunha de nove meses para solucionar o assunto.
[3] http://www.imf.org/external/pubs/cat/longres.cfm?sk=22513.0
[4] "Dutch minister urges Iceland to repay loans," Radio Netherlands Worldwide, July 21, 2009, http://www.rnw.nl/nl/node/13310 , e "Netherlands warns Iceland over Icesave," Dutchnews.nl, 22 July 2009, www.dutchnews.nl/news/archives/2009/07/netherlands_warns_iceland_over.php

Do mesmo autor ver também:
  • A guerra financeira contra a Islândia , 05/Abril/2009
  • Na esteira do colapso económico: As eleições da Islândia , 29/Abril/2009

    [*] Professor de Teoria Económica na Universidade de Missouri – Kansas City, autor de Super Imperialism: The Origin and Fundamentals of U.S. World Dominance , mh@michael-hudson.com

    O original encontra-se em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=14800


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  • 21/Ago/09