Teses ao XIV Congresso do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
Socialismo: Balanço e Perspectivas
Introdução
1. Passadas quase duas décadas após a queda da União
Soviética, a questão do Socialismo volta a ocupar uma
posição de destaque nos debates em diversos segmentos da classe
trabalhadora e nas agendas de luta dos partidos comunistas e outros grupamentos
que compreendem que o capitalismo não resolverá os problemas da
maioria da população do planeta e já ameaça a
continuidade da espécie humana.
2. A elaboração de uma proposta para a construção do
Socialismo no século XXI, com a superação
revolucionária do capitalismo, coerente com as condições
históricas dos dias de hoje, e a formulação da
estratégia para a sua conquista devem levar em conta uma
avaliação crítica das experiências concretas da
construção do Socialismo no século XX, na União
Soviética em outros países algumas das quais ainda em
curso , e do acúmulo de experiências do movimento dos
trabalhadores e dos partidos e grupamentos comunistas e socialistas que atuam
nos países capitalistas.
3. Devem ser considerados, ainda, os aportes de todos os que lutam por
justiça social e que têm na luta pela superação das
desigualdades e na denúncia do capitalismo as principais
referências para a construção de uma nova sociedade
lastreada na igualdade e no bem-estar.
O Contexto em que se dá o debate
4. Esta discussão se dá, hoje, em um contexto bastante distinto
daquele vigente nos primeiros anos do século XX período em
que eclodiu a Revolução Bolchevique ou na década de
1950, quando muitas das experiências socialistas daquele século se
iniciaram. O capitalismo segue com mais rapidez a tendência de
mundialização dos mercados e da produção, com a
alta concentração e centralização do capital
forjando grandes conglomerados e empresas trans e multinacionais que operam
mundialmente. Cada vez mais são introduzidas novas tecnologias na
produção, processo este que só fez reforçar, nas
últimas décadas, a tendência à queda nas taxas de
lucros e o movimento de financeirização da riqueza.
5. O contexto atual de crise econômica, uma crise de
acumulação, de superprodução, estrutural e
sistêmica, cujo efeito mais evidente e imediato foi o estouro, há
muito previsto e anunciado, da bolha especulativa do capital financeiro
mundial, deflagrada com a quebra do setor imobiliário norte-americano,
mostra que os limites históricos do capitalismo podem estar
próximos. Mesmo que os impactos da crise, assim como sua extensão
e duração não estejam, ainda, claramente determinados, a
resposta dos governos dos países desenvolvidos, com enormes
inversões de capital no sistema bancário e em grandes empresas em
geral, com nacionalizações de bancos e empresas industriais e com
grandes programas de investimentos públicos, atesta que o ideário
neoliberal, vigente de forma hegemônica na maioria dos países, nos
anos 90, está superado ainda que uma gigantesca herança de
formas diferenciadas de expropriação econômica, social e
política dos trabalhadores esteja presente e que a burguesia
seguirá buscando novas formas de garantir a sobrevivência do
capitalismo, na mudança do papel do Estado, na
implementação de ações para o aumento da
exploração do trabalho e outras ações.
6. A queda da União Soviética fez ruir a ordem mundial
anteriormente
estabelecida, em que a bipolaridade política, econômica e militar
entre a URSS e os EUA estimulava a formação de sistemas de
Bem-Estar Social nos países europeus e outros países, sob uma
hegemonia socialdemocrata fundada na busca do equilíbrio entre capital e
trabalho (equilíbrio este possibilitado, em certa medida, por algum
tempo, pela própria existência da URSS, pelo fortalecimento dos
comunistas, das esquerdas e dos trabalhadores organizados em geral no
pós-guerra e outras razões). A queda da URSS deu lugar a uma nova
ordem unipolar no campo da disputa entre Estados e blocos
político-econômicos - na qual o capital passou a predominar e o
ideário neoliberal se estabeleceu hegemonicamente, fortalecendo-se, no
plano mundial, com o recrudescimento da financeirização e da
globalização dos mercados e da produção, o que, por
sua vez, levou a um acirramento das contradições do capitalismo.
7. Estas contradições favoreceram a atual tendência à
multipolaridade política, econômica e cultural, que se dá
sob a hegemonia de um pólo principal, ainda que declinante, o
imperialismo estadunidense. O início do processo de
restauração do capitalismo na Rússia e nos países
do Leste Europeu foi outro elemento presente a partir de então.
8. O processo de restauração do capitalismo no Leste Europeu se
fez
da forma mais selvagem que se poderia imaginar: sem instituições
e leis para regular o capitalismo, como tribunais e bolsas de valores, sem a
cultura capitalista das relações de mercado, e construído
a partir de uma acumulação primitiva baseada no roubo e na
corrupção que surgiram no início do ocaso da era
socialista , em ambientes político-institucionais caóticos,
dada a desarticulação dos aparelhos de Estado e dos Partidos (em
geral imbricados diretamente entre si).
9. A restauração capitalista trouxe para a maioria daquelas
populações uma drástica redução da qualidade
de vida: a produção industrial de hoje, na Rússia,
representa apenas cerca de 45% do nível em que se encontrava em 1991; o
PIB dos países do Leste caiu 10% (com exceção da
Eslovênia e da Polônia). No mesmo período, a pobreza atingiu
elevados percentuais da população (chega a mais de 50% em algumas
das antigas Repúblicas da URSS). Esta situação se reflete,
entre outros elementos, nos muitos milhares de desempregados e de
crianças de rua, no aumento dos níveis de criminalidade e na
proliferação de doenças que já haviam sido
praticamente eliminadas, assim como no retorno do analfabetismo, no desmonte
das estruturas de Bem-Estar e seguridade social e na
desarticulação dos sindicatos e demais organizações
sociais. Paralelamente, por conta do processo de acumulação de
capital, iniciado, em muitos casos, ainda na era socialista, pelo acesso a
informações privilegiadas e ao comércio exterior por
dirigentes do Estado e de grandes empresas, e facilitado, após a queda
da URSS, pelas condições de superexploração da
força de trabalho, surgem meia dúzia de bilionários e
cerca de 200.000 milionários, que compõem a maior parte da nova
burguesia.
10. Os governos eleitos nos países do Leste europeu, na era
pós-socialismo, vêm mantendo, em geral, um corte
autoritário e uma postura totalmente comprometida com os interesses das
grandes corporações, do capital financeiro e mesmo dos grupos
mafiosos, em alguns casos, tendo sido implantada uma estrutura política
que restringe fortemente a participação popular e a
organização dos trabalhadores, além de limitar a
propaganda política e a ação dos partidos. A economia da
Rússia se lastreia, hoje, nas exportações de
petróleo e gás, a indústria encolheu e não se
modernizou, o capital estrangeiro entrou majoritariamente no setor de
serviços, a produção agrícola se desmantelou. Na
esfera internacional, a Rússia oscila entre um padrão de
independência e de reafirmação como potência e um
alinhamento com as potências capitalistas.
11. O processo atual de acirramento das contradições do
capitalismo
tem origem nos anos 80, quando o esgotamento do ciclo de expansão
mundial do capital iniciado no pós-guerra e razões de ordem
política e ideológica localizadas, principalmente na Inglaterra e
nos EUA, que culminariam na chegada ao poder de forças conservadores
capitaneadas por Thatcher e Reagan, contribuíram para a
formação da grande onda hegemônica do pensamento
neoliberal. Esta onda, reforçada em muito pelo desaparecimento da URSS,
levou ao enfraquecimento dos movimentos e da organização dos
trabalhadores em todo o mundo.
12. O desmonte, em graus diferenciados, dos sistemas de Bem-Estar Social
presentes
em diversos países, visando à diminuição dos gastos
públicos, o ataque aos direitos dos trabalhadores, o processo de
privatização de empresas estatais e de
desregulamentação da atividade econômica, para abrir
espaços de investimento e exploração capitalista sobre o
patrimônio acumulado pelos Estados e "destravar a economia",
facilitando a reprodução do capital, foram as principais
ações empreendidas.
13. Simultaneamente, operou-se a abertura das economias nacionais, acirrando-se
o
processo de globalização e, acompanhando todo o processo, foi
deflagrada uma violenta ofensiva ideológica e política, no plano
mundial, para reforçar os valores conservadores, o individualismo e as
proposições básicas que compõem o ideário
capitalista, que mantiveram-se hegemônicos por mais de uma década
e ainda se mantêm fortes.
14. A vigência, por quase três décadas, destas
políticas,
nos países europeus, na Rússia, nos países do antigo bloco
socialista, do Leste Europeu e na maioria dos demais países do mundo,
como no Brasil e nos demais países da América Latina, gerou um
quadro de desesperança e de crise de valores que mostra, cada vez mais
claramente, a sua verdadeira face de alienação e as mazelas
estruturais do capitalismo: o desemprego, a miséria, a exclusão,
do produto social, da maioria dos trabalhadores, a ameaça direta
à sustentação ambiental do planeta e à
própria vida, a desorganização social e a
desmobilização dos trabalhadores.
15. No entanto, vitórias eleitorais como na Bielorrússia e em
Chipre
e o crescimento das votações dos Partidos Comunistas em
países como Nepal, Grécia e Rússia, a chegada ao poder de
formações antiimperialistas e, em certa medida, anticapitalistas
por processos diversos, que incluem e combinam mobilizações e
lutas populares, em diferentes graus de organização e diferentes
composições sociais, e processos eleitorais, em países
como Bolívia, Venezuela, Equador, a vitória eleitoral de
formações antineoliberais em outros países, como a
Argentina, o Paraguai e Nicarágua, reforçam o entendimento de que
o neoliberalismo já vinha acumulando desgaste há tempo e de que
é possível caminhar para a superação do
capitalismo.
O debate
16. O debate sobre o que foi, sobre qual é a herança e qual
é
o balanço crítico que se deve fazer acerca da experiência
de construção do socialismo na URSS e nos países do Leste
Europeu já conta, hoje, com o distanciamento crítico
necessário, naquelas populações e em todo o mundo, em
relação àquelas experiências.
17. Soma-se a este elemento a retomada dos movimentos de massa em diversos
países europeus, a série de vitórias eleitorais e de
movimentos de massa antineoliberais, anticapitalistas e de esquerda em
ascensão, em diversos países. Há um também
crescente nível de mobilização dos trabalhadores para a
luta em defesa de conquistas e direitos diversos ameaçados ou retirados
pelos governos conservadores.
18. Há, em diversos segmentos das classes trabalhadoras, em todo o
mundo, um
processo de retomada da consciência da necessidade de travar-se a luta
por uma outra sociedade, não capitalista. Na Rússia e nos demais
países do Leste, é crescente a avaliação da
"era comunista" como positiva: segundo pesquisa recente, 76% dos
alemães do lado oriental concordam com o Socialismo e dizem que a
doutrina foi "mal aplicada" naquele período; 64% dos romenos
avaliam que as condições de vida eram melhores no governo
comunista. Este sentimento é encontrado, em escala crescente, em toda a
região.
19. Vale lembrar ainda que os atuais países socialistas, que, mesmo
enfrentando dificuldades sérias, como Cuba, ou com políticas
adaptativas ou mistas, de integração mundial e convívio
interno com estruturas de mercado e propriedade privada, como China e
Vietnã, que lograram superar a miséria e o atraso e apresentam
melhores condições de vida para os trabalhadores. A
existência destas formações faz o papel, em certa medida,
de contraponto aos países capitalistas desenvolvidos, além de
apresentarem, em suas experiências, elementos a serem considerados,
criticamente, em novas bases, no processo de reconstrução do
Socialismo.
20. Há diferentes olhares e referenciais quanto à forma e aos
elementos a considerar na caracterização, na análise e no
diagnóstico do que representou a experiência da URSS e dos
países do Leste Europeu, e o mesmo acontece no que diz respeito aos
atuais países socialistas.
21. Muitos segmentos da vertente socialdemocrata se manifestam pela
negação da caracterização daquelas
experiências como socialistas, fazendo, muitas vezes, a crítica ao
"Modelo de Socialismo idealizado por Marx e Lênin". Mesmo
admitindo a importância histórica da Revolução Russa
e o papel fundamental da URSS em diversos momentos do século XX, como na
Segunda Guerra Mundial, e reconhecendo algumas das conquistas da classe
trabalhadora daquele país, estes segmentos se recusam a aceitar aquelas
formações como experiências históricas de
superação do capitalismo e de construção do
Socialismo. A comparação com modelos idealizados de
participação e democracia direta, as críticas ao
planejamento econômico centralizado, a denúncia a-histórica
e acrítica da "burocracia", a falta de democracia
- simbolizada pela alusão ao modelo de Partido único (que
não foi a forma vigente em diversos países, como a Hungria, a
Polônia e a RDA, ainda que o Partido Comunista fosse o partido
responsável pela condução do poder) - e o
"mandonismo" no exercício do poder são os principais
eixos balizadores desta visão, que é utilizada, em alguns casos,
para justificar posturas anticomunistas.
22. A caracterização do sistema econômico da URSS e dos
países do Leste como "Capitalismo de Estado" é outra
crítica frequentemente presente. Esta crítica é igualmente
inconsistente, dado o caráter predominantemente coletivo da propriedade
que vigorou naqueles países, ao longo da maior parte do período
socialista, e do papel do Estado, que distribuía o produto social para o
bem estar dos trabalhadores e não para empresas privadas e seus donos,
como ocorre no capitalismo de Estado. Por outro lado, persistem, em diversos
grupamentos comunistas, as referências apologéticas,
acríticas e a-históricas ao desenvolvimento socialista da
União Soviética principalmente no período dos anos
1930 e do pós-guerra visto e defendido também como o
modelo único, acabado e definitivo de Socialismo. Esta visão foi
incorporada por muitas das formações partidárias
comunistas, desde a criação até o desaparecimento da URSS.
23. Igualmente acrítica é a adoção e a defesa da
codificação do pensamento marxista ali desenvolvida e
consolidada, muitas vezes, de forma manualística e excessivamente
simplificadora promovendo uma leitura empobrecida e, muitas vezes,
deturpada do marxismo-leninismo, a partir dos anos 1950, também
considerada única e definitiva, uma codificação que
predominou entre os partidos comunistas de todo o mundo, à época,
e influiu nas gerações subsequentes dos quadros comunistas e que
ainda é reivindicada, atualmente, por certos grupos e partidos
comunistas.
24. Os grupamentos de linha trotskista, por sua vez, vêm produzindo uma
série de críticas em relação às
experiências socialistas, centradas, principalmente, e muitas vezes de
forma reducionista, na sua burocratização, englobando os partidos
no poder e os Estados. Os Partidos Comunistas de todo o mundo, de um modo
geral, vêm elaborando análises críticas diversas sobre a
gestão política e econômica daquelas experiências,
respeitando e reafirmando, no entanto, seu caráter socialista e buscando
alternativas de ação para a conquista do Socialismo em seus
países. Nesse sentido, é importante a reflexão empreendida
pelo Partido Comunista da Federação Russa, que vem analisando
criticamente a evolução e a queda da URSS e do PCUS e formulando
uma estratégia revolucionária para a tomada do poder e a
construção do Socialismo no Século XXI.
25. A questão do caráter e grau da representação de
poder dos Parlamentos, da necessidade e presença de instâncias de
participação direta dos trabalhadores na gestão do estado,
do pluralismo político e partidário, da importância do
trabalho ideológico e cultural e da necessidade de se gerarem formas
híbridas de gestão do Estado e da economia estão entre os
principais elementos contidos nestas análises, como crítica
às experiências passadas e aportes para a elaboração
das bases teóricas para a próxima experiência socialista.
26. A crítica ao processo de industrialização e
coletivização do campo ocorrido na URSS, nos anos 1930, é
também um elemento comum em diversas análises, que, em geral,
têm por base o entendimento de que uma transição
gradualista, como se desenhou no início dos anos 1920, na vigência
da
Nova Política Econômica
consagrada pela sigla em inglês
NEP
-, seria o ideal para um processo de transição. Há
também, em meio a estes olhares, uma visão crítica do
próprio processo de industrialização em si,
independentemente de seu caráter socialista ou não.
27. Cabe, ainda, mencionar as contribuições críticas de
outros
movimentos de esquerda socialistas que centram suas análises das
experiências socialistas na identificação de problemas em
áreas como o respeito às minorias sociais e à liberdade de
expressão, entre outros pontos.
Análise e balanço das experiências socialistas do
século XX
28. Muitas e numerosas questões sobre aquelas experiências
mantêm-se abertas. A primeira delas refere-se à sua
denominação: é usada, com frequência, no ambiente
dos Partidos Comunistas, a expressão Socialismo Real. Muitos
autores, no entanto, preferem utilizar países em
transição socialista, alegando que Socialismo
Real é uma expressão imprecisa conceitualmente, que traz
uma percepção de que o socialismo é uma teoria
utópica e de que aquelas formas de Socialismo seriam as formas
definitivas. Mas o uso da expressão Socialismo Real se
fundamenta no reconhecimento de que, naquelas experiências, a partir de
um certo momento da história, houve transformações de tal
ordem, nos terrenos da estrutura de propriedade, das conquistas sociais e na
estrutura de poder político, qualitativa e quantitativamente, que as
caracterizam efetivamente como socialistas.
29. Como síntese, para deixar mais clara a distinção entre
um
período de transição caracterizado pela passagem da tomada
do poder político pelas forças revolucionárias para a
consolidação das estruturas socialistas, que exigiu e
exigirá nas próximas experiências a convivência entre
estruturas capitalistas e socialistas, por um certo tempo, e um segundo
processo o da evolução da sociedade socialista para a
construção do Comunismo referiremo-nos àquelas
formações como experiências socialistas
histórico-concretas do século XX, ou, simplesmente,
experiências socialistas.
30. Esta diferenciação dos dois momentos da
transição
exige que seja analisado em que medida e com que estratégia se deu o
esforço empreendido pelos partidos no poder e pelas lideranças
políticas daqueles países, para a operação da
transição ao Comunismo, assim como será necessária
uma avaliação acerca das possibilidades históricas de seu
sucesso. Os elementos que devem ser analisados são a busca da
superação da subordinação dos indivíduos a
uma determinada forma de divisão do trabalho, o antagonismo entre
trabalho manual e intelectual, a superação do trabalho como meio
de vida para que volte a ser a primeira necessidade da existência,
o desenvolvimento de um Novo Homem (um Novo Ser Social em todos os sentidos),
o provimento de uma fartura capaz de levar à condição na
qual cada um oferece à sociedade o esforço correspondente
à sua capacidade e recebe da sociedade em função da sua
necessidade, e a eliminação de todas as formas de
opressão, dada a não existência das classes sociais,
levando à eliminação do Estado e a uma sociedade
autogovernada.
31. A questão essencial nesta análise é buscar compreender
por
que razões não se formou, no período histórico
correspondente, uma hegemonia política e cultural socialista (e
comunista) sólida naqueles países, capaz de desenvolver e
aprofundar o ideário socialista e comunista e de sustentar a
continuidade da construção socialista no momento da crise que
levou o sistema à queda, na URSS e no Leste. Outras questões que
devem ser analisadas são listadas a seguir.
32. O socialismo funcionou? Houve avanços significativos, conquistas de
fato
da classe trabalhadora? Que elementos daquelas experiências de
condução da economia, de gestão política do Estado
e da Sociedade, de organização dos trabalhadores, de
políticas sociais implementadas, de tomada e exercício do poder
político e de geração e desenvolvimento de pensamento
revolucionário socialista e comunista podem ser utilizados como
base teórica e prática para as próximas tentativas de
superação revolucionária do capitalismo? Até que
ponto as condições de origem, a trajetória
histórica - com destaque para a II Guerra Mundial e o cerco
ideológico, econômico e militar dos países capitalistas
desenvolvidos em especial no período da "Guerra Fria",
de confrontação direta com os EUA e seus aliados
contribuíram para a derrota política daquelas
construções socialistas? Como se pode analisar a
experiência presente de países como Cuba, China e Vietnã,
enquanto contribuições para a construção de novas
experiências socialistas?
33. Como dito acima, o primeiro elemento desta análise deve ser a
própria caracterização daquelas experiências como
formações socialistas. Nosso objeto de análise é o
conjunto de experiências histórico-concretas vivenciadas na Europa
(URSS, Iugoslávia, Albânia, Bulgária, Romênia,
Tchecoeslováquia, Hungria, Polônia e RDA); na Ásia
(Mongólia, Laos, China, Vietnã e Coréia do Norte) e na
América, por Cuba, pela presença dos seguintes elementos:
-
Predominância da propriedade estatal ou coletiva dos meios de
produção;
-
Proibição da compra e venda da força de trabalho como
produto privado;
-
Conquista do poder realizada por meio de revoluções, como na
URSS, China e Cuba, e por grandes mobilizações populares, como em
quase todas as demais, tendo passado algumas delas, inclusive, por processos
eleitorais abertos e definidores do caminho socialista criando a fase
das democracias populares como na Hungria e na Tchecoeslováquia;
-
Predominância de estruturas de planejamento econômico centralizadas
(em diferentes graus, em cada país);
-
Presença de políticas sociais distributivistas fortes, gerando,
em todos os casos, conquistas materiais inegáveis para sua
população.
34. Alguns destes elementos estiveram presentes, em graus diferenciados, em um
conjunto de outros países, como Etiópia, Angola, Guiné
Bissau, Moçambique e outros que, principalmente a partir dos anos 1950,
ao libertarem-se do jugo colonial em muitos casos, com a ajuda decisiva
da União Soviética, no processo de libertação
nacional e no desenvolvimento posterior -, passaram a trilhar um caminho de
desenvolvimento não-capitalista (ainda que sem se autodefinirem como
socialistas), empreendendo ações de política externa,
planejamento, políticas sociais, com estruturas de poder popular e
outras características, sem que se possa, entretanto,
caracterizá-los como socialistas.
35. São relevantes também as experiências de governos
dirigidos
por comunistas em muitos casos contando com alianças com partidos
socialistas e partidos do campo progressista de âmbito local, em
países capitalistas como França, Portugal e Itália. Nestas
experiências, foram empreendidas iniciativas de construção
de instâncias de poder popular, de universalização do
acesso à saúde, à educação, ao abrigo
(inclusive para os imigrantes) e à alimentação.
Além da forte ênfase dada à política cultural e a
políticas sociais diversas, como o provimento de creches, a garantia do
emprego e a gestão participativa, foram algumas de suas principais
características a criação de empresas de propriedade
coletiva e a mobilização popular na luta por verbas federais e
outras demandas.
36. As origens históricas e a herança do período anterior
à Revolução Russa e aos processos de
transição socialista nos países do Leste Europeu, em seus
mais variados aspectos, são também, por sua vez, elementos de
grande importância para o entendimento das limitações e dos
obstáculos presentes no caminho de construção daquelas
formações socialistas. A Rússia, ainda que contando com
alguns setores industriais muito desenvolvidos a partir das últimas
décadas do século XIX, era, à época da
Revolução, um país agrário, semifeudal, com
numerosos contingentes populacionais vivendo miseravelmente. Séculos de
tzarismo, uma estrutura de poder de caráter religioso e extremamente
centralizado estavam presentes no dia a dia e no imaginário do povo
russo.
37. O novo poder, o poder soviético, conquistado pela
Revolução de 1917, teria que enfrentar, já no ano
seguinte, além da fome predominante em extensas regiões do
território, a agressão armada de inimigos externos e internos,
uma guerra que gerou a necessidade de adoção de um estilo forte
de exercício do poder o
comunismo de guerra,
, que adotaria medidas duras e absolutamente imprescindíveis, como o
trabalho obrigatório e o confisco de gêneros alimentícios
para o sustento do Exército Vermelho, entre outras. Esta guerra, apoiada
pelas nações imperialistas, deixaria parte significativa da
capacidade produtiva destruída e atrasaria a construção da
sociedade socialista por quase dois anos.
38. Igualmente precárias e miseráveis eram as
condições
iniciais da criação das democracias populares do Leste Europeu,
implantadas no imediato pós-guerra com a inestimável ajuda da
presença do Exército Vermelho, que os havia libertado do
domínio nazista. Posteriormente transformados em nações
socialistas, estes países tinham boa parte dos seus territórios
arrasados ou fortemente afetados pela guerra. Além disso, com
exceção de parte da Tchecoslováquia e da região
oriental da Alemanha, regiões de tradição industrial, o
Leste europeu era, basicamente, voltado à produção
agrícola.
39. Este argumento, no entanto, ainda que importante, pode levar a uma
armadilha,
pois traz um conteúdo implícito de uma
concorrência material necessária entre o socialismo e
o capitalismo e não leva em conta que, como será visto adiante, a
partir de um certo momento da história, estas condições,
em sua maioria, foram amplamente superadas, em todos aqueles países. Ou
seja, o fato de que a estratégia imperialista de cerco,
destruição, obstáculos e ameaças contínuas
aos países socialistas tenha dificultado enormemente a
aplicação e o avanço das práticas socialistas e
comunistas não anula a necessidade de focar a atenção nas
condições internas daqueles países, nas
relações econômicas e políticas, destacando o papel
decisivo do fator subjetivo no desenvolvimento das novas relações
sociais.
40. O processo de desenvolvimento da URSS, com ênfase na
industrialização forçada, erigida a partir da
indústria pesada, é outro elemento a levar-se em conta. Esta
orientação passaria a ser o eixo condutor do processo de
industrialização a partir do final dos anos 1920, com a
vitória da corrente industrialista no Congresso do PCUS,
pondo fim a cerca de uma década de experimentos de economia mista.
41. A introdução da Nova Política Econômica, a NEP,
iniciada em 1923, havia sido uma forma de facilitar a retomada da
produção industrial, de reorganização da economia
destroçada pela guerra, contando com quadros profissionais. Neste
arranjo, empresas privadas, mistas e cooperativas industriais e
agrícolas conviviam com empresas estatais na indústria e
no campo e com a estrutura de Planejamento Central que se fortaleceria
ao longo daquela década.
42. A abertura para o comércio exterior seria outro elemento presente nos
anos 1920, período durante o qual discussões e debates
extremamente ricos permeariam todo o processo de definição e
consolidação das estruturas do poder soviético,
acompanhando passo a passo a reconstrução do país, a
reorganização da economia e trazendo à tona,
principalmente, as questões de fundo quanto aos rumos e
características da construção do Socialismo, com propostas
que poderiam, grosso modo, ser concentradas em dois campos. De um lado, havia a
defesa do gradualismo, em termos da passagem de estruturas mistas de
propriedade produtiva agrária e industrial para o modelo estatal /
coletivo; de outro, a defesa da industrialização acelerada,
acompanhada da respectiva adequação dos mecanismos de
planejamento e de exercício do poder.
43. Como pano de fundo para a análise do caminho de
industrialização da URSS, situa-se o debate sobre a possibilidade
de construção do socialismo em um só país, mesmo
mantida a perspectiva de expansão mundial da revolução
socialista. O V Congresso do PCUS, realizado em 1927/28, decidiria pela
primeira vertente. O descenso do processo revolucionário, nos
países da Europa e no resto do mundo, as inumeráveis
possibilidades de desenvolvimento socialista da URSS e mesmo a necessidade de
defesa contra a ameaça nazifascista, como a história viria
confirmar alguns anos mais tarde, mostram que a decisão de levar adiante
aquela construção estava correta.
44. Do final da guerra civil até 1927-28, foi intenso também o
debate
político, travado nos organismos do Partido, nos sindicatos,
organizações de massa e nos
Soviets
sobre o processo de construção política e econômica
do socialismo, propiciando ao conjunto dos trabalhadores uma dinâmica
extremamente participativa nas decisões políticas para a
condução da luta de classes.
45. O processo de industrialização teve por base a
transferência de renda da agricultura para a indústria e foi
acompanhado pela coletivização forçada do campo, dirigida
diretamente pelo poder central soviético, iniciada nos primeiros anos da
década de 1930. As razões para esta decisão incluem,
além da filosofia de desenvolvimento industrial, então
hegemônica no bojo do PCUS, a ameaça do fascismo, em
ascensão na Europa naquele momento, fato que induziria à
priorização da indústria para o fortalecimento da defesa
do país.
46. Muitos historiadores afirmam que a opção pela
industrialização acelerada a partir da indústria de base e
pela coletivização forçada do campo foi adotada pelo
governo soviético a partir da necessidade de armar o país, em
função da ameaça nazifascista na Europa. Esta
opção gerou elevados custos sociais e desgaste político
para o governo, mas erigiu a base material que viabilizaria a vitória da
URSS na Segunda Guerra Mundial e assentaria o caminho para o desenvolvimento
pleno do país nas décadas seguintes. É preciso atestar as
conquistas do período: a produção planejada atingiu ritmos
impressionantes, desenvolvendo as capacidades produtivas em todos os ramos
industriais. As cooperativas de produção (kolkhozes) e as
fazendas estatais (sovkhozes) estabeleceram os alicerces da
produção socialista no campo. O feito mais importante, sem
dúvida, foi a abolição da propriedade privada e das
relações de produção capitalistas.
47. Há que reconhecer-se, entretanto, que a marcha
forçada para a industrialização deixou marcas
profundas, tendo em vista a queima de passos importantes na
superação das diferenças entre cidade e campo, além
da extrema violência empregada nas ações, em muitos casos
necessária por causa do enfrentamento aos
kulaks
(a classe burguesa das aldeias), estratos sociais que se aproveitaram da NEP
para enriquecimento privado e reagiram ao processo socializante através
de sabotagens na indústria e no campo. O problema foi, em vários
momentos, o uso exacerbado desta violência, desferida também
contra camponeses.
48. A Segunda Guerra deixaria pesadas cargas para o poder soviético, com
destaque para a devastação do território da URSS e para os
20 milhões de soviéticos mortos, incluindo-se, neste
número, grande parte da juventude e dos melhores quadros do Partido
Comunista. Com o fim da guerra, no entanto, vieram a afirmação do
Socialismo, um grande prestígio internacional para a URSS e os
comunistas e uma expansão do campo socialista, com a
fundação das repúblicas populares do Leste Europeu (que,
mais tarde, evoluiriam para formações socialistas).
49. Condições de contorno semelhantes àquelas da URSS
estariam
presentes no início da vida daquelas novas repúblicas, que, com
exceção da Alemanha Oriental e parte da Tchecoslováquia,
eram áreas extremamente pobres, de economia agrícola, herdeiras
de territórios muitas vezes divididos e de governos autoritários
e fascistas. Ao Bloco Socialista se juntaria a China, após a
Revolução de 1949. As condições da
Revolução Chinesa passaram por uma longa e intensa luta armada
contra o invasor japonês e, logo após a vitória sobre o
inimigo externo, por outra guerra, desta feita uma guerra civil
revolucionária travada entre os comunistas, liderados então por
Mao Tsé-Tung, e o movimento nacionalista (Kuomitang) de Chiang Kai Shek
dois grupamentos antes aliados na luta contra o inimigo externo
que culminaria com a vitória dos primeiros.
50. A China apresentava, naquele momento, além da intensa penúria
geral do povo, uma estrutura de produção basicamente
agrária, uma imensa população, condições de
desenvolvimento desigual entre o litoral e o interior, contando com poucos
quadros técnicos. Pesava sobremaneira, no país, a carga de sua
longa dominação por potências colonialistas. Um complexo
processo de cooperação com a URSS (mais tarde rompido) logo se
iniciaria, no bojo da constituição do campo socialista e seu
mecanismo de cooperação econômica. Cuba (1959) e
Vietnã (1975) seriam as vitórias seguintes do Socialismo
(além da Coréia, em 1956). Sua construção, naqueles
países, seria iniciada a partir, também, de
condições de pobreza. No entanto, o apoio político da URSS
e dos demais países socialistas já então com um
alto grau de desenvolvimento econômico e social se traduzia em
possibilidades reais de ajuda material e logística de monta.
51. O desenvolvimento da União Soviética e dos países do
Leste
Europeu se daria, nas décadas imediatamente posteriores ao
término da Segunda Guerra, de forma constante e intensa. Já em
meados dos anos 1950, após um vigoroso esforço econômico, a
URSS e os demais países socialistas europeus estariam
reconstruídos, com os problemas mais candentes de suas
populações - como a fome, o desabrigo e o desemprego -
resolvidos. Ao longo das décadas seguintes, o Bloco Socialista europeu
atingiria patamares de desenvolvimento elevados, mesmo tendo partido de
condições iniciais precárias, com níveis de
educação e saúde de acesso universal e gratuitas
comparáveis ou mesmo superiores aos países capitalistas
mais desenvolvidos, com sistemas de seguridade social extremamente
avançados, provendo pensões, aposentadorias, seguros e garantias
diversas para o conjunto da população. Havia ainda um
padrão de consumo médio superior aos níveis encontrados
nos países capitalistas em desenvolvimento, com o pleno emprego, intensa
vida cultural (era extensa a rede de museus, cinemas, teatros e casas de
cultura) e esportiva, incluindo significativos avanços nas
ciências.
52. Alguns números podem deixar mais evidente o caráter
universalizante e distributivo, além do nível das garantias
sociais: o desemprego foi eliminado, a diferença entre o maior e o menor
salário era de no máximo 5 vezes, em geral; o número de
aparelhos de rádios e tvs, geladeiras, fogões e outros bens de
consumo duráveis equivalia, já nos anos 1960, ao número de
domicílios; a todos era garantido o direito à compra ou aluguel
da casa própria, em condições dignas de
habitação, utilizando no máximo até dez por cento
do salário; alimentos e transportes públicos a baixo
preço; 9 anos de escolaridade mínima para todos; acesso universal
ao esporte, à cultura, ao lazer. Universidades e
instituições de ensino superior se multiplicaram, oferecendo
formação de alta qualidade e numerosos cursos de
aperfeiçoamento e enriquecimento cultural; livrarias e editoras
seguiriam o mesmo caminho, disponibilizando livros e materiais diversos a baixo
preço para toda a população. Segundo o censo
soviético de 1970, mais de ¾ da população das cidades
e 50% dos trabalhadores nas áreas rurais tinham completado
educação de nível médio ou superior.
53. Na União Soviética, em 1975, estava garantido por lei que o
número de horas de trabalho não podia exceder as 41 horas por
semana, na época uma das menores jornadas do mundo. A todos os
trabalhadores eram garantidos dias para descanso e férias anuais pagas.
O tempo livre foi alargado e o seu conteúdo mudou, deixando de ser tempo
para a reprodução da mercadoria força de trabalho, para se
transformar em oportunidade de os trabalhadores elevarem o seu nível
cultural e educacional e de se dedicarem às atividades políticas
e sindicais.
54. A Seguridade Social para os trabalhadores tinha alta prioridade para o
Estado:
foi criado um sistema integral de benefícios com baixos limites de idade
para a aposentadoria (55 anos para as mulheres, 60 para os homens).
Condições similares existiam nos restantes Estados socialistas
europeus. O poder socialista lançou os fundamentos para a
abolição da desigualdade que sofriam as mulheres, assegurando, na
prática, o caráter social da maternidade e os cuidados
socializados à criança. Eram garantidos, em média, dois
anos de licença maternidade e foram instituídos direitos iguais
para mulheres e homens no campo econômico, político e cultural.
55. O Bloco Socialista apresentava diferenciações entre seus
países membros. Quanto à propriedade, Polônia, Hungria e
Iugoslávia tinham setores privados e cooperativos em
proporção significativa, tanto no campo quanto na pequena
indústria. Estes mesmos países, acompanhados pela
República Democrática Alemã, mantiveram estruturas de
representação política pluripartidárias. Nos demais
países, a base de representação do poder era o Partido
Comunista, o partido único; Iugoslávia e Hungria experimentaram
sistemas de planejamento
indicativo,
, com estruturas de mercado convivendo com a condução
centralizada dos grandes eixos de desenvolvimento e de provimento de
infraestrutura. O sistema de autogestão das empresas esteve presente, em
maior grau, na Iugoslávia.
56. Em todos os países do bloco predominou o tipo estatal e coletivo de
propriedade. Na URSS e na grande maioria dos países do grupo,
consolidou-se o sistema de planejamento centralizado, iniciado com o Plano
Estatal de Eletrificação da Rússia, nos anos 1920
(conhecido pela sigla em russo - GOELRO), tendo sido enriquecido com modelos
matemáticos e, mais tarde, por um poderoso aparato computacional. Ao
longo do tempo, este sistema se desenvolveria significativamente do ponto de
vista técnico, mostrando ser uma ferramenta fundamental para o
provimento da infraestrutura produtiva a energia, as estradas de ferro e
de rodagem, os portos, as comunicações, para a
implantação da indústria de base e de bens de capital,
para o abastecimento básico, para o provimento da
habitação, das cidades e seus aparelhos urbanos, para a
expansão e consolidação dos serviços dos sistemas
de garantias sociais.
57. A participação dos trabalhadores era estendida aos sindicatos
e
organizações de massa, que discutiam e opinavam sobre os grandes
temas a serem deliberados pelos Parlamentos a partir de documentos e
informações distribuídos pelo Partido. As
eleições, em geral, se realizavam no sistema distrital, podendo
ser apresentados candidatos lançados pelos sindicatos e
organizações de massa.
58. O Bloco Socialista daria um grande passo na direção da sua
consolidação com a construção de um sistema
econômico internacional intrabloco, o Conselho de Ajuda Mútua
Econômica - CAME, mais conhecido como
COMECOM
, sua sigla em inglês. Este mecanismo possibilitaria a troca vantajosa de
bens e serviços entre os países membros, contribuindo para a
obtenção de ganhos de escala e de especialização,
além de maior disponibilidade de produtos em todos os países. No
terreno militar, a aliança de defesa, conhecida como
Pacto de Varsóvia
, seria também um passo importante para a afirmação do
bloco.
59. Muitos problemas e limitações surgiriam, no entanto, em todo o
sistema. É conhecido o problema da pouca variedade, baixas
disponibilidade e qualidade dos bens de consumo duráveis e mesmo dos
não duráveis à venda, da baixa qualidade de diversos
setores de serviços, como restaurantes, lojas de varejo, serviços
e outros. Também são reconhecidos os problemas advindos da
estrutura de planejamento centralizado, em geral, como a tendência ao
desperdício por parte das empresas, aos desequilíbrios entre
oferta e demanda, à morosidade na introdução de novos
produtos e processos na produção, à prática de
realização de níveis elevados de investimento na
produção em detrimento do consumo.
60. O contexto da Guerra Fria, de confronto com o bloco capitalista liderado
pelos
EUA, imporia à URSS e aos países socialistas elevados gastos
militares para a construção, desenvolvimento e
manutenção dos arsenais militares, para o treinamento e custeio
das tropas. Este contexto geraria pressões externas, exigiria o
fechamento de fronteiras e o rigor na segurança interna, provocando
descontentamentos e desgastes internos para os governos comunistas. Eventos
como o levante contrarrevolucionário da Hungria, em 1956, e
principalmente a crise das reformas de Dubcek, na Tchecoslováquia, em
1968, certamente teriam tido outro desfecho, se não ocorresse a
intervenção armada por parte da URSS.
61. Neste contexto, a URSS foi impelida a enfatizar a luta pela
distensão e
pela paz mundial, entre outras razões, pela necessidade de consolidar o
sistema socialista e evitar um novo confronto mundial, ao mesmo tempo em que
apoiava diretamente os movimentos de libertação nacional e contra
as ditaduras, e as ações dos comunistas nos diversos
países. Este movimento incluiu o reconhecimento e a
participação intensa da URSS nos organismos multilaterais, como a
ONU e suas organizações, tais como a UNESCO, a FAO, a UNCTAD e
outros, o apoio a movimentos pacifistas e desenvolvimentistas que faziam frente
à hegemonia norteamericana, como o
movimento dos não alinhados.
62. Esta necessidade, no entanto, gerou erros de avaliação e
exageros
que levaram à conciliação com alguns processos locais,
obrigando a URSS a apagar incêndios em vários
países. A ilusão com o Estado de Israel, por exemplo, levou a
URSS a aceitar a postergação da criação de um
Estado Palestino, deixando aberto o espaço para a atuação
de grupos armados israelenses, como o Haganá, que passaram a expulsar
palestinos de suas casas para facilitar a expansão de Israel. Este fato
tem implicações até hoje, na dificuldade de
implementação do estado Palestino.
63. Gastar com armas significava não gastar com o consumo social,
não
investir na modernização da indústria. Por outro lado, o
poder militar da URSS e dos demais países do Bloco Socialista, aliado
à sua grande dimensão econômica e à sua forte
influência política, garantia para todo o mundo uma ordem
econômica e política mais justa, mantinha protegidos diversos
países que, assim, puderam desenvolver-se soberanamente. China, Cuba,
Vietnã, Angola, Moçambique e muitos outros países foram
beneficiários diretos deste poder; Índia, Egito, Síria e
outros o foram de maneira menos direta; todo o terceiro mundo tinha muito a
ganhar pela presença da URSS no cenário mundial, com reflexos nos
organismos multilaterais. Mesmo nos países capitalistas desenvolvidos,
os trabalhadores podiam melhor se organizar para exigir do patronato
capitalista melhores pagamentos e condições de vida e trabalho,
para conquistarem mais direitos e mais participação na vida
política de seus países.
64. Com o tempo, o efeito do próprio desenvolvimento e a
burocratização do exercício do poder passaram a ser
elementos cada vez mais fortes na vida política dos países do
bloco. Além da morte de numerosos quadros comunistas jovens na guerra, a
perda do dinamismo e a queda na participação política dos
trabalhadores naqueles países podem ser atribuídas à
rigidez das estruturas de poder uma herança do esforço de
guerra e ao próprio processo de desenvolvimento que, ao superar
debilidades e carências sociais, tende a arrefecer, por si mesmo, o
ímpeto de participação na vida política.
65. No entanto, outras causas, mais profundas, podem ser apontadas para esta
queda.
Entre as principais razões está, seguramente, a visão e a
teorização da dinâmica da luta de classes, do
desenvolvimento do capitalismo e da construção do socialismo
surgidas ainda nos anos 1930, após a ascensão de Stálin ao
poder, que se consolidariam nas décadas seguintes, através da
codificação do marxismo produzida pelo PCUS no período,
acompanhada de uma simplificação da teoria, materializada em
manuais de marxismo-leninismo difundidos a todos os Partidos Comunistas do
mundo que seguiam a linha soviética.
66. Este pensamento surgiu em condições específicas e
marcadas
no processo histórico de construção do Socialismo na URSS.
Foi construído a partir de um contexto, nos anos 1930, em que a
coletivização dos campos e a industrialização
forçada eram vistos como imperativos, como ações que
exigiam comando unificado e firme; foi consolidado após a guerra, um
período em que se operou, na União Soviética, uma
verdadeira união nacional cobrindo todas as vertentes
políticas, todas as religiões, todas as nacionalidades da URSS
centrada na necessidade de defesa do país e das conquistas da
Revolução, uma união que teve como símbolo a
liderança carismática e decidida de Stálin. Finda a
Segunda Guerra, à euforia da vitória sobre o nazifascismo,
acompanhada da expansão territorial do socialismo e da influência
da URSS na Europa, somaram-se, nos anos seguintes, o crescimento do
prestígio internacional da União Soviética e o sucesso do
processo de reconstrução e desenvolvimento do país. Eram
tempos de ufanismo, de crença na viabilidade inexorável do
socialismo e no acerto do caminho trilhado pela URSS.
67. Claro está que todo este contexto se refletiria no trabalho de
elaboração teórica do PCUS, cuja estrutura ainda se
ressentia da perda de muitos quadros com destaque para os quadros jovens
durante a guerra. No capítulo IV da
História do PCUS
, um trabalho realizado coletivamente e coordenado por Stálin,
estão muitos dos elementos que delineariam esta
codificação do pensamento marxista, construída
principalmente a partir de citações reordenadas de elementos dos
trabalhos de Marx e Lênin: a definição da necessidade de
recrutamento de quadros com base no critério de confiança e da
fé depositada no Partido e no socialismo; a definição do
Partido como o centro condutor do processo de transformação
social e a imbricação direta e necessária entre o Partido
e o Estado; a atribuição do papel de "correias de
transmissão" do Partido aos sindicatos e organizações
de massa.
68. Estes elementos seriam a base da burocratização e do
afastamento
entre o Partido e a massa trabalhadora, com a perda progressiva do papel do
Partido como sujeito político e sua transformação em
máquina administrativa. Criaram-se também então as bases
para as enormes distorções no aparelho de Estado e para o
aniquilamento da função combativa, reivindicatória dos
sindicatos, com a perda de sua autonomia, e para o estancamento do processo de
fortalecimento do Poder Popular.
69. Ao apresentar e explicar o significado e o papel do Materialismo
Histórico e Dialético, o texto refere-se à
precisão, à previsibilidade dos processos sociais como
comparáveis à biologia e às ciências exatas. Ao
final deste capítulo, há uma recomendação para a
elaboração, pelo PCUS, de manuais de Marxismo-Leninismo
simplificados, de fácil entendimento, para os Partidos Comunistas dos
países do Terceiro Mundo. Por meio desses manuais, havia uma forte
tendência a subordinar a atividade teórica à prática
política, invertendo-se o papel da teoria: em vez de ser um guia para a
ação, ela transformou-se, em vários momentos, numa
tentativa de justificar
a posteriori
a própria ação. Deste modo, o conteúdo da teoria
ficava delimitado por sua instrumentalização, transformando em
práticas acessórias os processos de busca do conhecimento, tais
como a investigação, a pesquisa, a construção e a
crítica das hipóteses, a formulação de conceitos,
etc. A teoria, assim, corria o risco de perder o seu caráter de
cientificidade, quando passava a ser um pressuposto a ausência de
críticas às premissas utilizadas. Esta codificação
teria forte influência sobre os demais países do Bloco Socialista.
70. A concepção de manuais teóricos simplificados para os
demais PCs retratava claramente, além do mecanicismo, a
relação existente, então, entre o PCUS e os demais
Partidos Comunistas: com poucas exceções, esta
relação era de puro
seguidismo,
de dependência teórica (e muitas vezes material) e de
atrelamento, onde o PCUS, de forma inquestionável, ditava os rumos da
revolução para os demais PCs. O
seguidismo
contribuiu bastante para o empobrecimento da formulação
teórica dos partidos comunistas, como um todo inclusive no PCUS.
Por conseguinte, pela repetição acrítica e atemporal de
fórmulas prontas para o que fazer, inúmeros foram os erros
cometidos pelos comunistas em diversas partes do mundo.
71. Neste período, no entanto, não devemos desconsiderar
totalmente a
contribuição teórica do PCUS e de outras
instituições da URSS, como a Academia de Ciências, dos
Partidos e das demais instituições dos países do Leste
Europeu para o desenvolvimento da teoria e da prática do
marxismo-leninismo, em suas diferentes dimensões. Houve muitas
contribuições para o entendimento das grandes questões da
humanidade, para o entendimento da evolução do capitalismo e da
economia política do capitalismo na segunda metade do século XX,
para o aprofundamento da teoria do planejamento econômico e da economia
política do socialismo. Autores como Dimitrov, Luckács, Adam
Schaft e muitos outros são evidências desta riqueza. Muito se
formulou e se praticou para a elaboração das estratégias e
táticas dos movimentos revolucionários e de
libertação nacional em diversas partes do mundo, aos quais a URSS
apoiava intensa e diretamente, entre outros exemplos. Todo este acervo era
amplamente divulgado, na forma de manuais, livros seriados e avulsos e
documentos específicos para todo o movimento comunista internacional.
72. A opção pela industrialização extensiva, em
grandes
empresas, foi uma decisão historicamente correta. No entanto, a
filosofia de gestão da produção, administrada com
elementos do pensamento taylorista-fordista na versão local com
base na divisão do trabalho, na separação entre
planejamento e execução das tarefas, em supervisores que detinham
o poder de comando pode estar também ligada ao conjunto de causas
mais profundas da deterioração do sistema. A ausência de
participação direta no processo decisório nas empresas,
aliada ao próprio estilo tecnicista do planejamento soviético,
que, em geral, não envolvia as representações regionais ou
setoriais dos trabalhadores de forma efetiva, geraram, com certeza,
condições de alheamento e distanciamento da classe trabalhadora
do processo de construção socialista.
73. Houve ainda problemas no tocante à adoção de
posicionamentos teóricos bastante questionáveis. No XXII
Congresso do PCUS (1961), por exemplo, foram adotadas avaliações
pouco objetivas a respeito do
socialismo desenvolvido
e do
fim da luta de classes
. Em nome de
contradições não antagônicas
entre classes e grupos sociais, foi adotada a posição de
que a URSS era um
estado de todos os povos
(consolidada na revisão constitucional de 1977) e o PCUS, um
partido de todos os povos
. Esta elaboração contribuiu para alterar as
características de um Estado revolucionário dos trabalhadores e
para a crescente degenerescência da composição de classe do
Partido e dos seus quadros. Através da
perestroika
e da reforma do sistema político de 1988, o sistema soviético
degenerou em órgão burguês.
74. A experiência prática revela o afastamento gradual das massas
da
participação no sistema soviético, que, nos anos 1980,
tinha caráter puramente formal. À medida que a liderança
do PCUS adotava políticas que enfraqueciam o caráter social da
propriedade e reforçavam os estreitos interesses individuais e de grupo,
criava-se um sentimento de alienação relativamente à
propriedade social e a consciência comunista sofria erosão. Estava
aberta a via para a passividade, a indiferença e o individualismo,
à medida que a realidade ficava cada vez mais longe das
declarações oficiais, caíam os níveis da
produção industrial e agrícola, caindo também a
capacidade de satisfazer as crescentes necessidades sociais. No início
dos anos 1990, a abordagem socialdemocrata da economia planejada de
mercado (a plataforma do CC no XXVIII Congresso) foi rapidamente
abandonada em favor da posição da economia de mercado
regulada e esta foi ainda substituída pela economia de
mercado livre.
75. A direção dominante no período final da
experiência
socialista na URSS pode ser julgada hoje não só teoricamente, mas
também pelos resultados. Após duas décadas de
aplicação das reformas, os problemas tinham se agudizado
claramente. A estagnação imperava e o atraso tecnológico
continuou a ser uma realidade para a maioria das indústrias. Houve a
escassez de muitos produtos de consumo, assim como problemas adicionais no
mercado, porque havia empresas que estavam provocando uma alta artificial de
preços, acumulando mercadorias em armazéns ou fornecendo-as em
quantidades controladas. O crescente envolvimento de elementos de mercado
diretamente na produção social do socialismo fortaleceu os
interesses individuais e de grupo a curto prazo (com significativas
diferenças de rendimento entre os trabalhadores em cada empresa, entre
os trabalhadores e o mecanismo de gestão, entre diferentes empresas),
contra os interesses globais da sociedade. Com o tempo, criaram-se as
condições sociais para que a contrarrevolução
vencesse, usando a perestroika como veículo. Estas reformas acabaram por
incentivar práticas de acúmulo de riqueza por meios ilegais, como
o contrabando e o investimento no mercado negro.
76. Para responder às questões levantadas e elaborar um
balanço da experiência do
Socialismo Real
, partimos da constatação de que, pelo processo de tomada e
exercício do poder, pela predominância da propriedade coletiva e
estatal e de estruturas de planejamento centralizadas e de políticas
sociais fortes e abrangentes, em todo o bloco, aquelas experiências foram
de fato socialistas. O número, a abrangência e a profundidade das
conquistas alcançadas pelos trabalhadores organizados, naqueles
países, o peso das referências sociais do Bloco Socialista como
elemento de apoio aos movimentos de trabalhadores por todo o mundo capitalista,
a ação direta de suporte aos movimentos revolucionários e
de libertação nacional em diversos países, o
prestígio obtido e a influência exercida nos organismos
multilaterais são evidências claras de que o Socialismo funcionou,
obteve vitórias concretas e significativas.
77. Ainda neste terreno, a crítica ao "Modelo de Socialismo
idealizado
por Marx e Lênin" configura-se como uma crítica vazia, dado
que a construção socialista, no caso da URSS, se deu de forma
empírica, em meio à luta política e ideológica,
tendo sido a teoria construída passo a passo, no ritmo dos
acontecimentos. Além do mais, é uma crítica historicamente
equivocada dado que, antes da Revolução de 1917, havia poucas
referências teóricas sobre o Socialismo, à
exceção das formulações dos Socialistas
Utópicos, de uma parte do Manifesto Comunista, da
Crítica ao Programa de Ghota e a análise, por Marx,
da experiência da Comuna de Paris.
78. Dos muitos elementos presentes na construção socialista
daqueles
países, a predominância da propriedade coletiva dos meios de
produção provou sua correção, seu acerto,
claramente como uma necessidade, ao constituir a base material para a
construção do socialismo, a ser mantida nas próximas
experiências de superação do capitalismo. O Estado foi
elemento chave para a organização daquelas sociedades, e toda a
ênfase do esforço econômico voltou-se para o provimento das
garantias sociais e da defesa. Estes elementos o papel do Estado e a
ênfase nas políticas sociais universalizantes e distributivas
foram consagrados, devem ser mantidos, devem fazer parte dos programas
para a transição ao Socialismo.
79. O planejamento econômico centralizado mostrou todo o seu potencial de
constituir-se em elemento-chave para a aceleração do
desenvolvimento, com destaque para os setores de infraestrutura (transportes,
energia e outros), de indústria de base, de Ciência, para a
habitação, a Cultura, os esportes, o abastecimento, a
saúde e outras áreas de relevância social. Houve problemas,
principalmente no modelo soviético vigente a partir do
pós-guerra, com a produção e a distribuição
de bens de consumo, além de problemas relacionados com
desperdícios na produção e uma concentração
de investimentos na indústria pesada.
80. As contribuições ao pensamento marxista que se desenvolveram
em
todas as experiências socialistas, com diversos elementos de
gestão da economia, de entendimento da dinâmica e da
evolução da sociedade socialista, da constituição
de instâncias de participação e decisão
política e outros devem ser considerados, criticamente, numa
próxima experiência.
81. É fato que o cerco político e econômico externo, a
ação de difamação e contrapropaganda
ideológica, as traições e mesmo as sabotagens ocorridas ao
longo dos anos ajudaram a minar as bases do sistema, assim como as perdas da
guerra e mesmo as origens precárias daquelas sociedades.
82. A questão que fecha este rol de reflexões, no entanto,
é a
mais importante: por que não se formou, no período
histórico correspondente, uma hegemonia política e cultural
socialista sólida, naqueles países, capaz de manter e até
desenvolver e aprofundar o ideário socialista e comunista?
83. As respostas são múltiplas, e vale reafirmar que houve
vitórias e conquistas, que o Socialismo funcionou e "deu
certo" para o que se propôs, por um dado período de tempo.
Pode ser citado o tipo de gestão do planejamento no caso da URSS
e dos demais países do Leste - de natureza "técnica",
com pouca influência das estruturas de participação e poder
de exercício direto. A própria visão da
industrialização em si, voltada, após o período da
reconstrução e construção da indústria de
base e de bens de capital, de voltar-se para a busca do atendimento a
necessidades de consumo à moda "ocidental" pode ser citada
como uma causa importante da derrota política sofrida.
84. Um elemento, no entanto, se destaca: o pensamento dogmático,
através da codificação do marxismo que se desenhou,
principalmente no pós-guerra, com uma base mecanicista e idealizada,
criaria entraves e armadilhas para o desenvolvimento do Socialismo naquelas
formações e para a própria teoria marxista. A visão
dogmática conduziria a práticas que podem ser apontadas como
não marxistas, por serem de caráter antidialético ou
positivistas: a atribuição às ciências sociais da
precisão e previsibilidade das ciências exatas; a
redução da teoria a manuais oficiais, que engessariam a
criação e o debate de ideias e proposições.
85. Além disso, o recrutamento de quadros para o partido com base no
critério da confiança, a fé como elemento definidor da
adesão à causa comunista, a amarração e travamento
dos sindicatos e entidades de massa pela atribuição a eles dada
de meras "correias de transmissão" do partido ceifaram-lhes a
capacidade de tomar iniciativas, de lutar por melhorias nas
condições de vida e trabalho, de serem atores políticos
ativos na construção socialista.
86. Por último, mas nem por isso em condição inferior aos
demais elementos, a imbricação direta entre o Partido e o Estado
descaracterizaria a ambos, abriria as portas para o empobrecimento
teórico, a acomodação da militância e a
burocratização do Partido, para a sua
despolitização e desideologização e,
posteriormente, para a corrupção e mesmo a rendição
ideológica de muitos quadros. Sem intensa participação
política, sem iniciativas do Partido, ficou empobrecido o
desenvolvimento da teoria e da prática revolucionárias, e a
disputa pela hegemonia política e ideológica perderia terreno
para a pressão pelo consumo, para a alienação.
87. Estes elementos podem ser atribuídos a diversos fatores, tais como a
perda de muitos quadros do Partido, principalmente os jovens, durante a Segunda
Guerra, a euforia da vitória e da relativa consolidação do
Socialismo, nos anos 1950, a estrutura hierarquicamente rígida do PCUS
constituída nos anos 1930 e durante a guerra, a influência da
herança de poder centralizado (desde os tempos do Tzarismo) na
Rússia, a visão e o estilo carismático e personalista de
direção de Stálin (fortalecido com a vitória na
Guerra) e outros.
88. Houve momentos em que esta tendência poderia ter sido revertida.
Destaquem-se o XXVIII Congresso, em 1958, que poderia ter sido a base para uma
reforma política ampla e profunda, voltada para o fomento à maior
participação direta dos trabalhadores nas decisões
políticas, uma reforma contida, provavelmente, entre outras
razões, pela influência da visão palaciana de Krushov e
pela herança de poder do Exército Vermelho; o episódio da
Primavera de Praga, que poderia ter tido outro desfecho, voltado
para a construção do socialismo nas condições da
Tchecoslováquia; o contexto do fim da guerra do Vietnã, em 1975,
quando a URSS sairia com enorme prestígio, podendo ter empreendido uma
grande virada na estruturação da política interna. Houve
oportunidades na Polônia, com Gomulka, consenso nacional nos
início dos anos 1950, com Gierek, que teve a oportunidade de modernizar
o país, nos anos 1970, e em outros países.
89. Nas experiências de construção do Socialismo em Cuba, na
China, no Vietnã e na Coréia do Norte há elementos novos
que devem ser considerados. No caso do Vietnã, a
construção socialista se dá com políticas que
incorporam estruturas privadas na produção, em grau bastante
inferior ao da China, e dinâmicas de participação
política fortes. No caso da Coréia do Norte, ainda que
prevaleçam as formas coletivas de produção, que o
país tenha um bom nível de desenvolvimento (o país tem
energia nuclear e lança satélites, por exemplo) e que a
população tenha um bom padrão de vida, trilhou-se um
caminho de isolamento internacional, a condução política
se faz de forma autocrática, sendo adotada uma versão do Marxismo
(a chamada ideologia
Juche
) que tem elementos de construção religiosa.
90. No caso de Cuba, em que pese a discussão sobre a decisão de
postergar-se a industrialização e a autonomia econômica em
prol do alinhamento com a URSS, há que destacar-se a prioridade das
políticas de bem-estar universalizantes, a estrutura dinâmica e
participativa do Partido Comunista Cubano e das organizações de
massa, o forte trabalho ideológico, a habilidade na gestão do
planejamento econômico por exemplo, com o uso simultâneo de
estruturas distributivas para bens de consumo duráveis e não
duráveis centralizadas, em regime de quotas, e sistemas de venda a
preço livre (acima da quota mínima por pessoa) e no
convívio atual com as pressões de mercado. A capacidade da
Revolução Cubana de resistir ao perverso bloqueio que há
décadas lhe impõe o imperialismo e inclusive ao fim da
União Soviética mostra que o processo revolucionário
é obra da grande maioria do povo cubano.
91. No caso da China, que da vitória dos comunistas na guerra civil
até 1978 trilhou um caminho ziguezagueante alternando-se, no
poder, as vertentes vermelha ou ideológica e a vertente
pragmática ou técnica são elementos da
construção do "Socialismo com características
chinesas" que devem ser levadas em conta: a experiência das comunas,
das conferências consultivas, organismos que reúnem todos os
partidos e organizações políticas nacionais para debater
as grandes propostas políticas a serem enviadas ao Parlamento; o
controle político direto sobre as unidades produtivas, pelas comunas
ainda hoje existentes; a participação das regiões com mais
destaque no sistema de planejamento (de caráter participativo, em
geral); o planejamento em linha (vertical) por ramos de produção,
com controle centralizado de variáveis-chave nacionais; a
existência de microempresas e empresas individuais (como as chamadas
empresas de rua
) sob controle político direto, pelas comunas; as
relações diretas entre empresas públicas produtoras e
fornecedoras (nas chamadas conferências de harmonização) e
mesmo a grande mobilização popular à época da
Revolução Cultural (período em que o esquerdismo atingiria
seu ápice).
92. As reformas de Deng-Xiao-Ping, iniciadas em 1978, introduziram elementos de
capitalismo, como as Zonas Econômicas Especiais. São medidas que
vêm sendo adotadas em escala crescente: a atração de
empresas privadas estrangeiras, a permissão para o estabelecimento de
empresas particulares, a passagem do sistema de planejamento centralizado para
o sistema de controle macroeconômico, o convívio entre diferentes
formas de propriedade e a adoção de estruturas de mercado. Seus
resultados são o crescimento econômico acelerado, com taxas de
mais de 10% ao ano, desde 1987, e os muitos problemas existentes hoje, como a
polarização (a diferença entre ricos e pobres), a
corrupção e o avanço da ideologia burguesa, que acentuam
os riscos da restauração capitalista.
93. Mesmo assim, o Partido Comunista Chinês segue na liderança do
processo, e anuncia, para 2015, a retomada da construção de
estruturas coletivas e públicas no rumo socialista. Esta
experiência deve ser analisada com atenção, assim como a
trajetória do Vietnã, cautelosa, de modernização e
abertura com a manutenção da base socialista, e mesmo da Coreia
do Norte, que, com problemas diversos, com destaque para o seu isolamento
internacional e uma estrutura rígida de poder, atingiu um elevado
padrão de igualdade social, mantendo-se no campo socialista e fazendo um
importante contraponto à política imperialista dos Estados Unidos
e seus aliados.
94. A experiência das chamadas internacionais comunistas foi extremamente
rica, tendo buscado responder às questões de cada momento, sempre
à luz da revolução socialista e com o objetivo de
levá-la a cabo em todos os países. Hoje, passados mais de 16 anos
da queda da URSS, o Movimento Comunista Internacional vem se reorganizando, no
plano mundial, para fazer frente aos desafios dos tempos atuais. O PCB
apóia a recriação de uma organização
internacional dos comunistas, com novo formato e novas formas de
atuação, para que se evite a repetição dos erros do
passado.
95. No mesmo sentido, foram e são de fundamental importância as
entidades mundiais orientadas pelo Movimento Comunista Internacional, como a
Federação Sindical Mundial FSM, a Federação
Democrática Internacional de Mulheres FEDIM, a
Federação Mundial da Juventude Democrática FMJD e o
Conselho Mundial da Paz. A FSM, em particular, poderá vir a ter um papel
decisivo no enfrentamento da crise econômica internacional e na
construção da alternativa socialista.
96. No mesmo sentido, os comunistas temos que jogar o melhor de nossos
esforços no exercício das mais diversas formas de
ação e expressão do internacionalismo proletário e
da solidariedade entre todos os trabalhadores e todos os povos em luta contra o
capitalismo.
A construção do Socialismo no século XXI
97. As condições sob as quais se desenvolvem e se
desenvolverão no futuro próximo os processos de
transição ao socialismo e ao comunismo têm por base o novo
modo de acumulação em que o capitalismo se apresenta, que
caracterizamos nas Resoluções deste XIV Congresso, no
capítulo O Capitalismo Hoje. No contexto desta nossa análise,
consideramos como impossibilidades históricas a chamada etapa
socialdemocrata, a aliança de classes entre burguesia e proletariado,
com base no equilíbrio entre capital e trabalho, assim como a
proposição da revolução ou etapa
nacional-libertadora, uma aliança entre as burguesias nacionais e os
respectivos proletariados para enfrentar o inimigo externo o
imperialismo.
98. No período de transição para o Socialismo,
após a
conquista do poder, a luta política e ideológica a ser travada
compreenderá os seguintes eixos :
-
A construção da democracia direta, em que o poder popular se
expandirá e se fortalecerá, substituindo o sistema
partidário-eleitoral burguês e instituindo novas formas de
representação direta dos trabalhadores. Estas formas de
representação buscarão a pluralidade, com a
participação de movimentos organizados e partidos
políticos. A velocidade da implantação do novo sistema
dependerá da evolução da correlação de
forças e poderá haver um período de convívio com o
sistema atual, desde que renovado, com ampla liberdade de
organização e propaganda gratuita e fortes
restrições ao uso do poder econômico.
-
A destruição do Estado burguês e a construção
de um Estado de novo tipo são necessidades históricas e elementos
cruciais da luta pelo Socialismo. Na transição, o Estado
burguês deverá sofrer uma transformação profunda,
com a criação de novas instituições, sob controle
dos trabalhadores, acompanhada de um novo texto constitucional onde
constarão como primordiais os direitos à vida, ao trabalho,
à informação, à participação no
processo decisório político, à educação
plena e outros direitos sociais, assim como o direito à
coletivização das propriedades produtivas.
-
A substituição da propriedade industrial, comercial e
agrária privadas pela propriedade estatal ou pública
(cooperativada sem direito à venda). O caminho para este quadro
será o controle progressivo de todas as grandes empresas pelo Estado,
acompanhado do controle das demais empresas pelo Poder Popular local ou
regional.
-
A reordenação da produção deverá fazer parte
da luta ainda no capitalismo, acompanhada da reversão dos padrões
de consumo. Serão privilegiados os setores produtores de alimentos para
consumo interno, de bens de consumo essenciais, concebidos e fabricados com
ciclo de vida longo, em regime de ciclo industrial fechado e com materiais e
processos produtivos ambientalmente sustentáveis, até que todas
as famílias os possuam. Materiais de construção,
medicamentos, livros e todos os produtos essenciais para a vida serão
produzidos em larga escala e distribuídos a preço de custo ou
subsidiados, ao passo que todos os produtos considerados supérfluos
terão sua produção redirecionada. Simultaneamente, as
áreas científica, educacional e cultural, em geral,
deverão ser fortemente dinamizadas.
-
A implantação do sistema de planejamento centralizado, com uma
estrutura participativa abrangente, com a redução progressiva dos
espaços de mercado e a implementação de instâncias
decisórias nas empresas e locais de trabalho com a
participação direta dos trabalhadores. Para tal, será
necessária a formulação de um projeto para a
reordenação espacial do desenvolvimento econômico e social,
com a criação de pólos no interior e planos diretores para
as cidades visando à harmonização e
equalização do processo.
-
A questão ambiental deverá ter tratamento prioritário,
tendo como eixos a recuperação de áreas degradadas, o
reflorestamento, a reordenação da produção para a
redução dos gastos com recursos naturais e de energia, com a
retirada de todos os bens ambientais da categoria de bens econômicos.
-
A luta pela hegemonia das idéias socialistas e comunistas deverá
acompanhar todo o processo revolucionário e prosseguir, forte, ao longo
da construção do Socialismo, no rumo do Comunismo. Esta luta
será travada em todas as esferas, tendo como principais eixos a
participação de todos no processo decisório, a
ação direta e constante dos partidos comunistas e as
organizações políticas e sociais aliados, ampla
divulgação de informações, a livre
circulação das idéias, políticas culturais e
educacionais agressivas, voltados para a construção de um novo
Homem, um novo Ser Social. Todo o processo deverá ser acompanhado pelo
trabalho de formação política, com a discussão dos
textos clássicos e contemporâneos e pelo esforço constante
de formulação teórica com base na herança do
marxismo.
Medidas de primeira ordem após a tomada do poder político
99. O período imediatamente posterior à tomada do poder
político deverá ser marcado por medidas incisivas, para dar
início imediato à transição, dentre as quais
destacamos:
a) controle sobre a entrada e saída de capitais;
b) estatização do sistema bancário;
c) estatização de toda a infraestrutura produtiva;
d) estatização das grandes empresas industriais e
agrícolas;
e) estatização dos principais meios de comunicação;
f) estatização das empresas de saúde privadas;
g) expansão imediata da rede escolar e do horário noturno;
h) reforma das polícias, com sua unificação e
reestruturação;
i) construções de instâncias do poder popular;
j) elaboração e ativação de um plano emergencial
para
o provimento de alimento, abrigo e saúde para toda a
população;
k) proposição de um plano integrado de desenvolvimento para ampla
discussão;
l) convocação de uma assembléia nacional constituinte, a
ser
eleita diretamente pelo poder popular;
m) início do processo de reordenamento da produção;
n) elevação imediata do salário mínimo;
o) reforma trabalhista com a introdução da garantia do emprego;
p) criação de um organismo de planejamento econômico e
social
com participação dos trabalhadores;
q) planejamento e controle centralizado dos investimentos privados;
r) ofensiva cultural, com ampliação dos espaços culturais e
políticas de difusão e formação;
s) ofensiva político ideológica, com a promoção de
reuniões públicas, manifestações,
divulgação e discussão da plataforma política do
governo e da proposta socialista e comunista.
Índice
O Capitalismo Hoje
A Estratégia e a Tática da Revolução Socialista no Brasil
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