por João Varela Gomes
[*]
Estamos no ano em que por suposto se comemora o centenário
do regime republicano em Portugal. Assim sendo, tratar-se-ia de evocar os 100
anos da sua existência e não apenas celebrar o dia da
proclamação, um determinado período ou valorizar qualquer
aspecto e acontecimento em prejuízo de outros. Co-memorar, em termos de
rudimentar semântica, significa trazer à memória colectiva,
fazer lembrar algo, na totalidade e em conjunto. Parece de simples
entendimento; mas, de facto, está-se revelando de complicada
interpretação.
No plano individual, toda a gente conhece por experiência própria,
as "partidas" que a memória prega a cada um. São os
lapsos de memória que aumentam com a distância no tempo e com a
idade; mas são ainda mais, as distorsões que o ego subjectivo
provoca, voluntária ou inconscientemente. Contudo, no plano colectivo,
os caminhos da memória atravessam terrenos bem mais
problemáticos, aleatórios e muitas vezes traiçoeiros.
É o caso da histórica de povos e nações, dos
grandes movimentos de massas, das rupturas sociais transformadoras. É o
caso particular da histórica da República Portuguesa trazida
à memória colectiva neste preciso centésimo ano, nesta
precisa sociedade demo/republicana do século XXI.
Dir-se-á que a história é mister dos historiadores, por
suposto profissionais competentes, conhecedores prevenidos dos terrenos
armadilhados por onde passam os caminhos da memória. Mas há quem
recomende menos credulidade, considerando que "Os historiadores mesmo
antes de começarem a escrever história já são o seu
produto". Mesmo até o cognominado pai da História,
Heródoto, deixava transparecer o seu cepticismo enquanto relatava as
memórias/lendas que tinha recolhido no seu labor!
A partir desse longínquo passado amontoaram-se milhões de
páginas cognominadas de História (com H maiúsculo),
incluindo alguns milhares de filosofia, onde a sua pretensa natureza
científica é questionada. Pessoalmente, como simples amador, o
meu bordão preferido para me orientar nessa imensa floresta tem sido a
obra do pensador britânico E.H. Carr (1892-1982), marxista e
céptico q.b.
Diz ele no seu ensaio O que é a História?: "A (particular)
dificuldade da história contemporânea reside no facto de as
pessoas (os próprios historiadores) recordarem o momento em que todas as
opções foram possíveis". No caso português,
essa particular dificuldade encontra-se particularmente agravada devido ao
facto de o regime democrático vigente ser um produto
contra-revolucionário; acresce o país estar dominado, vai para
mais de três décadas, por uma classe burguesa que se recorda (que
não esquece), em termos de desforço, "o momento em que todas
as opções foram possíveis", momento, para essa gente
traumático, que foi o Grande Cagaço de Abril mais o processo
revolucionário subsequente.
Com efeito, a postura desforrista que fatalmente incorpora o
restauracionismo filofascista faz parte integrante da
"ideologia" (passe o tropo) da burguesada local que ocupa o poder.
Como tal, o desforço contra-revolucionário tornou-se doutrina
oficial do regime e é servilmente aceite por largos sectores da
sociedade. Com especial destaque pela comunicação social; quer,
obviamente, a pública, quer a privada. Sem esquecer pois de
história estamos tratando o sector académico da
especialidade; onde brilha, como farol guia da ideologia do regime no campo da
História Contemporânea, o departamento respectivo integrado na
Universidade Nova de Lisboa e gerido por uma equipa do partido
socialista/desforrista agora no poder, cujo catedrático é
António Reis, também grão-mestre da Maçonaria
Lusitana.
Este exórdio que já vai longo pretende ser
também uma advertência relativa às
comemorações (oficiais/oficiosas) do Centenário da
República. A respectiva preparação tem merecido honras de
assunto de Estado, desde 2005 (!), ano em que o presidente da República
J. Sampaio nomeou uma "comissão de projecto" dirigida por
Vital Moreira, contando com uma numerosa "comissão consultiva"
donde fazia parte o bispo do Porto (!), o inevitável António
Reis, Inês Pedrosa e quejandos. Dos seus labores, ao fim de um ano,
terá resultado um relatório sem consequências.
A actual "Comissão Nacional do Centenário da I
República" (designação já por si restritiva)
tomou posse em Junho de 2008, presidida por Artur Santos Silva, de linhagem
republicana, cujo bisavô participou na primeira revolta armada contra a
monarquia a 31 de Janeiro de 1891, na Cidade do Porto. Foi exactamente nesta
cidade, e assinalando essa efeméride, que tiveram lugar a
cerimónia inaugural e os primeiros actos oficiais das
Comemorações do Centenário, incluindo a
reconstituição daquela tentativa revolucionária e a
abertura duma exposição subordinada ao tema,
"Resistência. Da alternativa republicana à luta contra a
ditadura (1891-1974)".
Ora aqui esbarramos com a indefinição capital que parece pairar
sobre as comemorações oficiais (no plural). De que estamos afinal
falando, o que é que se pretende, oficialmente, comemorar? Somente a I
República, isto é os anos de 1910 a 1926? Então a
resistência contra a ditadura está apócrifa. Mas a
confusão alastra. Um membro da actual Comissão Nacional, a
historiadora Fernanda Rollo, afirma (
Público,
31 de
Janeiro): "trata-se de olhar para um ano da história do
País". Apenas o ano de 1910? Então o 31 de Janeiro
está apócrifo. Mas a confusão continua a todos os
níveis. O supremo magistrado da Nação, vem usando a
designação de "comemorações da
implantação da República". Está querendo
limitá-las aos acontecimentos do dia 5 de Outubro de 1910, sem mais? Mas
é o próprio Cavaco Silva (
Expresso,
20 de
Março) que inaugura em Loulé uma exposição da sua
biografia, no âmbito das comemorações do centenário!
Dentro desse âmbito alargado têm-se situado várias
iniciativas e outras estão programadas, provavelmente ignorando a
Comissão Nacional. Quem a ignora e ao centenário é o
inefável Alberto João no seu feudo madeirense. O homem é
totalmente pré-histórico e assim se assume. Mas conta com a
complacência e a empatia dos modernos republicanos do
"cótinente" cuja memória ideológica parece estar
mais próxima dos 40 anos fascistas e suas perversidades, de que dos 100
da República e seus ideais.
Com efeito, aberto oficialmente em 31 Janeiro 2010 o ciclo das
comemorações e decorridos entretanto dois meses, os
comentários, referências e opiniões que surgem
através da comunicação social não denotam
particular simpatia para com a I República Portuguesa. Pelo
contrário. A tónica predominante é de
apreciação negativa (depreciativa) com reticências
várias e mesmo repúdio.
Semelhante posição sem dúvida, ideológica
é, só por si, paradoxal e extraordinária num
contexto que se supõe celebrativo; mas, muito pior que isso, corresponde
exactamente à posição oficial do regime fascista sobre a I
República; martelada durante 50 anos (metade do centenário) na
cabeça dos paizinhos da actual sociedade soi-disant democrática.
Constatação estarrecedora que importa denunciar como
advertência, em relação ao que poderá aí vir
até o culminar das celebrações, a 5 de Outubro
próximo.
Na realidade, o teor dos sinais já emitidos suscita a maior das
apreensões. O próprio presidente da comissão, segundo
entrevista (
Público,
31 de Janeiro), lança um olhar
crítico às realizações dos primeiros anos do regime
republicano; embora afirme que "as comemorações
justificam-se para divulgar a memória da I República". Num
artigo de opinião (idem) pergunta-se em parangonas: "Uma
revolução democrática ou a vitória dos
extremistas?". Noutro texto salienta-se a violência da
perseguição à Igreja, a permanente instabilidade, os
radicalismos, etc., que marcaram os primeiros 16 anos do republicanismo.
Trata-se de saudar a República como um avanço
político/social ou de enterrá-la democraticamente?
Ora, além da advertência e da denúncia que esta abordagem
exige, há que esquadrinhar e pôr em relevo as
motivações ideológicas que ditam a complacência das
autoridades demo/republicanas perante o que parece mais uma campanha anti-I
República do que uma homenagem comemorativa. Devendo destacar-se, em
primeiro lugar, o Governo e o Partido Socialista que ocupam o poder neste ano
do centenário e muito se ufanam duma suposta estirpe republicana; na
circunstância cabe-lhes o dever e a responsabilidade de garantir que seja
respeitado o sentido da comemoração tal como o Estado o assumiu.
Deixando correr a campanha de desvalorização da I
República, em termos de divulgação pejorativa, a II
República (democrática) assume como sua a memória
ideológica da República fascista. Ainda faltam seis meses para o
5 de Outubro, é certo. A ver vamos, como diz o desconfiado.
A publicação de histórias contemporâneas, trabalhos
afins, pesquisas e testemunhos avulsos multiplicam-se numa
produção transbordante a partir de 1974. A esse fenómeno
faço referência nos dois artigos publicados em Fevereiro do
corrente ano no
Alentejo Popular
, onde examino a mais recente obra
sobre o tema, lançada com grande estrépito mediático no
final do ano transacto. (Com a 3.ª edição, datada de
Fevereiro 2010, logo à venda!).
Nessa obra
, o autor da III Parte (séc. XIX a XXI) Rui Ramos adopta
em relação
à I República a perspectiva desvalorizadora "politicamente
correcta", que por aí corre livremente como doutrina oficial do
regime burguês/democrático da II República.
Entretanto, antes de escalpelizar essa oficial doutrina histórica,
procurando expor o vírus ideológico fascista que a contamina,
permitam-me os leitores um intermezzo, um tanto ou quanto pessoal. Mas vem a
propósito, pois também me calhou ter presidido a uma
comissão comemorativa de um aniversário da República. O
sexagésimo quarto (64.º), ou seja, em 1974.
Na verdade, tanto quanto me lembro, foi uma daquelas nomeações ad
hoc fruto do tempo, entre o "28 de Setembro" (com a demissão
de Spínola) e a efeméride do 5 de Outubro. Meia dúzia de
dias para "desenrascar" a incumbência (sorrio-me ao ler o agora
presidente do centenário lamentar a pressão temporal a que
estará sujeito... tendo sido nomeado em Junho de 2008!). Não sei
bem como, houve contactos, efectuaram-se reuniões. Numa delas, lembro a
presença do jovem Marcelo Rebelo de Sousa. E, claro está, lembro
o encontro com o lendário Sarmento Pimentel, nos seus magníficos
86 de idade com 46 de banimento e exílio. Logo aí ficou decidido
que seria ele a abrir a nova proclamação de República da
mesma varanda donde fora proclamada a primeira. Decidido foi também
limpar de imediato o ominoso nome de Salazar que ainda conspurcava a ponte
sobre o Tejo e a cidade capital, seis meses após Abril. Pois tive que
contornar reticências do poder revolucionário!, resolvidas,
aliás, de forma expedita em 24 horas, com o concurso de dois piquetes de
metalúrgicos.
As cerimónias do dia estão registadas na imprensa, decerto com
maior fidelidade que na minha mente. Sarmento Pimentel hasteou a bandeira da
República, lembrou-se cadete aos 22 anos do reduto da Rotunda, saudou o
seu camarada de armas e luta César de Almeida ali também
presente; e foi o primeiro a dirigir-se aos populares reunidos na Praça
do Município. "Quero desejar à II República que agora
renasce, apoiada na experiência da I, uma vida longa e sem recuos".
(Ainda ia viver o suficiente para ver concretizados os recuos que tanto temia).
Depois falou Caldeira Rodrigues, democrata e oposicionista da longa data, na
direcção da Câmara de Lisboa desde Abril. Por fim Costa
Gomes, recém-empossado Presidente da República.
À tarde, pelas 16 horas, em Alcântara, no sopé do
ancoradouro, foi a ponte crismada em homenagem ao 25 de Abril. Na mesa
cerimonial, Salgado Zenha, ministro da Justiça, eu próprio
como militar antifascista ex-preso político, representando a
Comissão Nacional das Comemorações , dois
capitães de Abril pela 5.ª Divisão, vários veteranos
antifascistas que quiseram marcar presença, entre os quais Mayer
Garção, José Tengarrinha, Raul Rego, Armando Bacelar,
Carlos Brito pelo PCP; e ainda Artur Santos Silva, pai do agora presidente da
Comissão do Centenário. Disse ele, na altura, segundo o jornal
que estou consultando: "Tanto no 25 de Abril como antes no 5 de Outubro, a
intenção foi a mesma: acabar com uma sociedade corrupta e
contribuir para a sólida reconstrução do País
através da substituição das elites". (Faleceu nos
anos 80, já as elites da corrupção estavam de regresso,
vitoriosas).
Mal tinha terminado a sagração da "Ponte 25 de Abril",
fui chamado à Margem Sul onde estava em curso uma iniciativa local
paralela. Escreve o jornal: "(...) vibrantemente aplaudido, salientou a
luta travada por todos os antifascistas e invocou a memória daqueles que
não tiveram a felicidade de viver a libertação".
Confesso que não guardo recordação nítida dessa
intervenção. E também de outra, na noite desse dia, no
Pavilhão dos Desportos, num grande comício promovido pelos
"velhos" centros republicanos, a cuja tenaz e heróica luta de
sobrevivência prestei homenagem (garante o jornal), depois de estabelecer
o paralelo entre a acção popular em 1910 e em 1974. Os escritores
José Saramago e Mário Castrim foram também oradores nessa
sessão. Estou-me fiando no registo do "DN" de 6 Outubro 1974,
pois a minha mnemónica já não dá para tanto.
Creio que esta "reconstituição" das
comemorações do dia 5 de Outubro 1974, primeiro
aniversário festejado em liberdade ao fim de 50 anos de ditadura, embora
relatado como vivência pessoal, ilustra bem a continuidade
histórica entre as três gerações republicanas;
além do que, mais significativo ainda, isso atesta "ao vivo"
uma continuidade ideológica que se quer afirmar. A saber:
entre a geração de 1900/1930 simbolizada (dificilmente
melhor) pela presença de Sarmento Pimentel na varanda do
município lisboeta, local donde fora proclamada a I República, 64
anos depois de ter estado em pessoa no reduto da Rotunda (Lisboa), onde se
decidiu a vitória revolucionária de 5 Outubro 1910;
a geração da resistência antifascista (1930/1960) a
que eu pertenço, representada por milhares de participantes quer na
remoção/substituição do nome maldito do ditador na
"Ponte 25 de Abril", quer no comício do Pavilhão dos
Desportos nesse mesmo dia de 5/10/74;
a geração seguinte (1960/1990), esta retalhada pela
ruptura ideológica de 75/76. Até aí, a trilogia
Liberdade-Igualdade-Fraternidade constituía tradição comum
da República de 1910 e da democracia reconquistada em Abril 1974; a
partir do triunfo da contra-revolução em Novembro 75, a II
República renega essa memória, iniciando um recuo
ideológico que a conduziu à restauração de uma
sociedade dual, de exploradores e explorados, de privilegiados/abusadores
esmagando/desprezando a classe trabalhadora. Uma sociedade de arrivistas
corruptos, de incompetentes e vigaristas, antítese daquela intentada
pelos republicanos de 1910 e pelos resistentes e revoltosos antifascistas de
1974, representada pelos militares de Abril, pelos estudantes
contestatários, pelos comunistas saídos da clandestinidade, pelos
democratas regressados do exílio.
Resumindo: em Outubro de 1974, a celebração do aniversário
da implantação da República de 1910 ocorreu numa
situação político/social que se orgulhava da sua
ascendência oitocentista liberal, dos seus antecessores na propaganda e
revoltas republicanas, dos seus contemporâneos da resistência e das
lutas contra o fascismo e o colonialismo. Glorificava-se a República.
Presentemente, em 2010, em regime for-mal-mente republicano e
democrático, a situação é inversa. Menospreza-se a
República. Situação paradoxal, que à
Comissão Nacional das Comemorações do Centenário
compete superar; tarefa difícil, sem dúvida, para o seu
presidente, pessoalmente herdeiro e legatário do projecto fundador
republicano.
Para uma situação aberrante, como a que está criada, a
teoria marxista fornece uma pista de explicação, bem conhecida: a
ideologia dominante em cada circunstância histórica e cada
determinada sociedade é a ideologia da classe dominante (aquela que
exerce o poder efectivo). No entanto, no caso do republicanismo
português, algo parece fugir à regra marxista; na medida em que a
classe burguesa/liberal que comanda os destinos do País desde 1976,
apresenta os mesmos sinais identitários de classe que os seus
avós de 1910. Até à Maçonaria voltaram!
Parece pois, contraditória a aversão da burguesia actual
relativamente à burguesia fundadora de 1910. Em teoria seriam farinha do
mesmo saco. Mesma classe, mesma ideologia. Mas, na verdade, entre a classe
burguesa do princípio do centenário e a que tem governado o
País no último terço, existe um abismo histórico
48 anos de fascismo; e uma dramática ruptura ideológica
a contra-revolução de 1975/76. Além disso, a I
República de 1910 foi produto de uma revolução, gerada
pelo espírito de revolta e insubmissão; enquanto esta II
República que estamos vivendo é um produto
contra-revolucionário de intenção restauracionista e
desforrista. Os revolucionários de 1910 eram patriotas idealistas,
homens de palavra e honra, que intentaram pôr em execução o
programa com que tinham mobilizado as massas populares; enquanto os contras de
75/76 são gente sem palavra e de honra discutível que se
colocaram debaixo da protecção do imperialismo sob a
orientação do embaixador USA em Lisboa doublé agente da
CIA.
A memória ideológica que a actual classe burguesa dominante
revela nas suas atitudes e declarações pouco ou nada tem a ver
com o republicanismo fundador, com a decência e a elevação
ética dos revolucionários de Outubro 1910. As
comemorações do Centenário da República arriscam-se
assim a converter-se num dos tradicionais exercícios da hipocrisia
burguesa, fingindo homenagear a memória daquilo e daqueles que abomina.
Ou pior ainda: dando azo a novo surto de revivalismo filofascista.
Ao assunto voltaremos.
15/Abril/2010
[*]
Coronel na reserva. Obras do autor:
http://openlibrary.org/a/OL851476A/Varela_Gomes
O original encontra-se em
http://www.alentejopopular.pt/pagina.asp?id=4262
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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