Não há que pagar esta dívida!
Pela criação de uma Comissão de auditoria da divida
portuguesa
por Guilherme Alves Coelho
[*]
Especialistas de vários países consideram que dívidas
externas de Estados altamente devedores, originadas por empréstimos
contraídos no âmbito de uma total desregulação dos
mercados, podem ser investigadas e, se forem consideradas ilegítimas,
ilegais ou odiosas, devem ser renegociadas ou mesmo anuladas. A divida externa
portuguesa uma das maiores da Europa
[1]
resultante de empréstimos que nenhuns benefícios
trouxeram ao povo, parece estar nessas condições. Será
portanto legitimo indagar como, quando e para quê foram esses
empréstimos concedidos e quem deles beneficiou e, se for caso disso,
fazê-los pagar a dívida. Alguns países já seguiram
este caminho com resultados positivos.
Após mais de três décadas de aplicação da
política neoliberal em muitos países, os resultados não
podiam ser piores para as suas populações: a
destruição da produção nacional, o saqueio dos
Estados, uma catastrófica redução dos direitos e
níveis de vida dos cidadãos e um obsceno crescimento do
número de multimilionários, provocando a maior desigualdade
social de sempre. Como consequência, uma crise global sem precedentes
parece ter-se instalado em definitivo.
Portugal não foi excepção. A imposição do
colete-de-forças da UE e do Euro entregou definitivamente a soberania
nacional nas mãos do capital especulativo financeiro estrangeiro e
nacional. O país ficou assim privado dos possíveis mecanismos de
equilíbrio financeiro.
Sem defesas e com a produção paralisada, Portugal tornou-se um
dos mais endividados da zona euro, com o endividamento externo crescendo a
níveis incomportáveis. A dívida externa é hoje o
maior problema que o pais enfrenta
[2]
.
A solução para sair desta crise, imposta pelos que a provocaram,
é apenas a continuação da ruinosa politica do
neoliberalismo, fazendo pagar a dívida aqueles que já eram as
suas principais vítimas: os trabalhadores e o povo em geral. Este
caminho só pode conduzir ao desastre, ao retrocesso civilizacional e ao
comprometimento das gerações futuras. O sacrifício dos
portugueses ao longo de décadas foi inútil.
Um pouco por todo o mundo onde esta politica tem sido imposta, os trabalhadores
começam a rebelar-se contra estes abusos. Os portugueses têm
resistido maciçamente, através de manifestações de
protesto, atingindo níveis de participação nunca antes
alcançados. Mas, num quadro de legalidade cujas regras são
ditadas pelo poder, os resultados estão ainda longe de fazer recuar a
classe dominante, que prossegue a sua caminhada devastadora.
Perante um cenário como este, que pode ser irreversível, muitos
crêem que não há mais lugar para
contemporizações. Que é imperioso romper com as actuais
politicas neoliberais e encontrar outros caminhos, que façam pagar a
crise aos que com ela abusivamente lucraram.
O que fazer?
Embora o pensamento único tente fazer crer na inevitabilidade da
solução neoliberal, segundo alguns autores outras
soluções existem em relação aos pagamentos das
dívidas externas.
[3]
Pelo menos três hipóteses alternativas se colocam:
- a primeira, a de austeridade para a maioria; esta hipótese favorece o
capital financeiro e corresponde à continuação das medidas
actuais.
- a segunda, a reforma da União Europeia, no sentido de a tornar
favorável aos povos; obrigaria a uma autêntica
revolução coisa que está nos antípodas do
pensamento e da acção dos actuais responsáveis
políticos, e nem os trabalhadores estão em
condições de encetar.
- a terceira alternativa, o deliberado incumprimento da dívida;
permitiria reexaminar a legitimidade da dívida e, se necessário,
não a pagar.
Só esta última solução poderia beneficiar a maioria
trabalhadora.
Alegam aqueles especialistas que será perfeitamente legítimo
não pagar aquilo que foi ilegal ou ilegitimamente emprestado, quer
devido aos juros desproporcionados, quer pela inutilidade na
aplicação dos empréstimos ou até pela sua
apropriação fraudulenta. Neste caso será mesmo de imputar
o pagamento das dívidas aos que deles beneficiaram.
Desde há vários anos que um movimento mundial, nomeadamente de
países do chamado terceiro mundo o
CADTM
(Comité para a
Anulação da Dívida do Terceiro Mundo) vem
defendendo o não pagamento aos países ricos e às
instituições financeiras internacionais das respectivas dividas
externas. Considera esse movimento que as riquezas nacionais têm sido
saqueadas ao longo dos séculos pelos actuais credores. Assim, se
alguém deve alguma coisa, são os países que enriqueceram
à custa desse saqueio e não o contrário. Por isso
contestam a legitimidade dos empréstimos dos seus países, alguns
contraídos por ditadores afectos aos países credores, e exigem
renegociar as suas imensas dívidas ou mesmo a sua
anulação.
Esta ideia começa a ganhar força por todo o mundo. Casos como o
da Rússia em 1998 e da Argentina em 2001-2005, mostram que "um
incumprimento (não pagamento da dívida) pode ter resultados
positivos, desde que seja rápido e conduzido com firmeza".
[4]
O caso recente do Equador que acaba de ver a sua dívida renegociada para
cerca de 30% do valor inicial, é o exemplo mais recente de sucesso. Uma
comissão idónea demonstrou cabalmente que a maior parte da divida
era ilegítima ou ilegal, ou mesmo odiosa porque contraída pela
ditadura. Tal operação permitiu ao Estado recuperar
financiamentos que de outro modo estariam perdidos e empregá-los no
desenvolvimento do país.
Nos países periféricos da Europa, muito endividados, como
Portugal, vítimas de ataques especulativos, começam a surgir
propostas semelhantes. A Grécia é, neste momento, um dos mais
avançados nesse processo. Deputados do Parlamento grego propuseram a
criação de uma Comissão para investigar as
condições dos empréstimos que provocaram a divida.
[5]
[6]
Na Irlanda já se advoga abertamente a saída do Euro e o
repúdio da própria dívida.
[7]
Na Islândia a situação é menos conhecida, mas
dão-se passos seguros no mesmo sentido. Em referendo, 93% dos islandeses
votaram contra o pagamento da dívida
[8]
.
Portugal está em condições semelhantes às deste
grupo de países devedores ditos periféricos na zona euro. As
soluções não poderão ser diferentes. Muitos dos
empréstimos foram negociados em condições pouco claras,
outros eram de duvidosa necessidade e ainda outros ainda terão sido
aplicados em ruinosas operações. Longe de ajudarem o povo, os
principais beneficiários deles foram os especuladores financeiros.
Parece pois legítimo, se não mesmo inevitável, que se
actue para pôr cobro a esta situação que se agrava hora a
hora e o momento de actuar é agora. Será desejável que se
crie um movimento de opinião, o mais amplo possível, dentro e
fora do Parlamento, que promova o equacionamento destas questões e
avance com uma solução alternativa ao actual modelo.
Um grupo português de acompanhamento, com a assistência
técnica do CADTM, poderia ser o embrião de uma Comissão de
Auditoria da Dívida Externa Portuguesa, de preferência
internacional e representativa das várias correntes económicas e
com a participação dos trabalhadores. Esta Comissão, teria
por objectivo promover uma investigação imparcial sobre a divida,
nomeadamente sobre as condições dos empréstimos e o uso
que deles foi feito. Esta investigação deveria criar a base
jurídica para a renegociação da dívida e permitir
imputar responsabilidades aos seus eventuais beneficiários.
[9]
Um movimento global do conjunto dos povos destes países, centrado nesta
questão concreta, seria ainda mais desejável e teria a vantagem
de criar um objectivo ofensivo bastante visível de luta, sem abdicar das
lutas de resistência diariamente prosseguidas.
Só assim os povos da Europa e os portugueses poderão retomar a
sua economia em novos moldes, rompendo com a politica neoliberal que os levou
ao desastre.
22/Fevereiro/2011
Notas e fontes
1. Dimensão da dívida
|
Dívida total
(Pública e Privada)
Milhões
|
Dívida total
(Pública e Privada)
% Do PIB
|
Dívida Privada /
Dívida Pública
|
Dívida externa /
Dívida Interna
|
Espanha
|
5315
|
506%
|
87% / 13%
|
33 / 67
|
Portugal
|
783
|
479%
|
85% / 15%
|
49 / 51
|
Grécia
|
703
|
296%
|
58% / 42%
|
51 / 49
|
Esses défices são essencialmente imputáveis ao sector
privado, uma vez que os três países têm cumprido com o PSC e
os seus orçamentos fixavam excedentes (Espanha) ou défices
moderados (Grécia e Portugal). Somente em 2008-2009, com o
declínio nas receitas do Estado, devido à crise, os
défices orçamentais se deterioraram.
"A eurozona entre a austeridade e o incumprimento"
, Stephanie Jacquemont (CADTM).
2. "A análise da situação da economia nacional revela
que o problema fundamental e mais grave do País não é o
Défice Orçamental como se pretende fazer crer. (...) É a
incomportável Divida Externa que não pára de crescer,
consequência de um elevado défice da Balança Corrente e que
persiste em plena crise.
"A Responsabilidade Social dos Economistas"
, Eugénio Rosa.
3.
"O espectro do incumprimento na Europa"
, C. Lapavitsas, A. Kaltenbrunner, G. Lambrinidis, D. Lindo, J. Meadway,
J.Michell, J.P. Painceira, E. Pires, J. Powell, A. Stenfors e N. Teles.
4.
"A Eurozona entre a austeridade e o Incumprimento"
. Stephanie Jacquemont , "The Eurozone between austerity and
default".
5.
"Comissão Internacional de Auditoria da dívida grega: um imperativo"
, Lapavitsas Costas.
6.
"Grécia: símbolo da dívida ilegítima"
,
Eric Toussaint.
7.
"Repudiar a dívida já. Exijamos um referendo já."
, Declaração do Partido Comunista da Irlanda, 03/Fevereiro/2011.
Quand l'Islande réinvente la démocratie
,
16 décembre 2010, Jean Tosti
9.
"A morte da Europa Social"
. Michael Hudson e Jeffrey Sommers.
[*]
Arquitecto.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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