O espectro do incumprimento na Europa
por C. Lapavitsas, A. Kaltenbrunner,
G. Lambrinidis,
D. Lindo, J. Meadway, J.Michell,
J.P. Painceira, E. Pires, J. Powell,
A. Stenfors e N. Teles
[*]
Incumprimento, renegociação de dívida e saída
Quanto a crise da Eurozona irrompeu no princípio de 2010, um
relatório RMF
identificou três opções
estratégicas para países periféricos. Eram elas: primeiro,
a austeridade imposta pelo núcleo e a transferência dos custos de
ajustamento para a sociedade como um todo; segundo, uma vasta reforma
estrutural da Eurozona em favor do trabalho e, terceiro, a saída da
Eurozona acompanhada do incumprimento
(default),
mudando assim o equilíbrio social em favor do trabalho.
[1]
Não surpreendentemente, a política preferida dos governos da
Eurozona às ordens do FMI foi a austeridade. Houve
também algumas reformas, todas elas na direcção
neoliberal, como foi discutido nos capítulos 3 e 4. Este rumo da
acção é coerente com a natureza da Eurozona e a ideologia
neoliberal arraigada no seu cerne. E não é de surpreender que a
segunda opção tenha encontrado pouca receptividade, tanto nas
discussões oficiais como na decisão política. A natureza
da crise exigiu medidas imediatas que deixavam pouco espaço para
iniciativas de reforma a longo prazo, além da dificuldade inerente de
reforma a Eurozona em favor do trabalho. Na verdade, a Eurozona tornou-se ainda
mais conservadora durante este período.
No entanto, como a política de austeridade tem-se difundido, a ideia do
incumprimento da dívida pública também tem feito progresso
significativo. A austeridade é um caminho altamente tormentoso para as
economias tanto da periferia como do núcleo, como mostrado no
capítulo 4, a qual pode mesmo piorar o problema do endividamento. Nos
mercados financeiros globais é geralmente esperado que a Grécia,
pelo menos, incorrerá em incumprimento no futuro. Têm sido ouvidas
vozes dentro da corrente dominante a afirmar que a austeridade pode ser um beco
sem saída, particularmente para a Grécia, e portanto favorecendo
uma reestruturação controlada da dívida pública.
[2]
No extremo radical do espectro político na Grécia e alhures
houve também apelos ao incumprimento. É provável que mesmo
governos tenham considerado a possibilidade, embora em gabinetes hermeticamente
selados.
O capítulo de conclusão deste relatório trata do
incumprimento e renegociação de dívida tendo em vista a
análise anterior. Uma vez que o incumprimento inevitavelmente levanta a
questão da condição de membro da Eurozona, a possibilidade
de saída por parte de países periféricos é
também considerada. O centro da discussão reside na economia
política destas opções, todas as quais envolvem
mudanças sociais complexas e diferentes conjuntos de vencedores e
perdedores, tanto internamente como internacionalmente. Não é
fácil afirmar que é no interesse dos trabalhadores na periferia,
para não mencionar os do núcleo. A abordagem aqui adoptada
é que se o caminho do incumprimento, renegociação e
saída for encetado, ele deveria levar a uma mudança no
equilíbrio social em favor do trabalho. Da mesma maneira, deveria romper
o jugo do conservadorismo e do neoliberalismo na Eurozona.
A discussão abaixo é efectuada sob as rubricas do incumprimento
conduzido pelo credor e conduzido pelo devedor. Distinguir entre os dois
é útil a fim de verificar os interesses sociais envolvidos no
incumprimento, renegociação e saída. O incumprimento
conduzido pelo credor é provável que seja um caminho
político conservador que ainda imporia os custos do ajustamento aos
trabalhadores, enquanto deixaria inalterada a natureza subjacente da Eurozona.
O incumprimento conduzido pelo devedor, em contraste, poderia trazer
benefícios significativos para países periféricos, ao
mesmo que tempo criaria espaço para mudar o equilíbrio social em
favor do trabalho. O incumprimento conduzido pelo devedor coloca imediatamente
a questão da saída da Eurozona, convidando portanto à
análise das implicações para a economia e a sociedade.
Incumprimento, renegociação e saída são discutidos
abaixo sobretudo na medida em que isto se aplicasse a um único
país periférico. É natural fazer esta
suposição, uma vez que as pressões da crise têm sido
esmagadoramente mais pesadas na Grécia quando esta é comparada a
outros países periféricos. A Grécia tem estado na linha de
fogo da crise da Eurozona e é provável que permaneça nessa
posição no futuro previsível. Mas mesmo apenas para
propósitos analíticos, ainda teria sido necessário fazer a
suposição de que o incumprimento, renegociação e
saída ocorreriam num único país. Só então o
equilíbrio de forças sociais, as alavancas da política
económica e o contexto económico internacional poderiam ser
considerados como um dado com algum grau de precisão.
Não é preciso dizer que, se estes acontecimentos decisivos
ocorressem num país periférico, haveria grandes
repercussões no resto da Eurozona. Em primeiro lugar, o que se aplica
individualmente à Grécia aplica-se também individualmente
à Espanha e a Portugal (e provavelmente à Irlanda, embora
não seja considerada neste relatório). Há
diferenças significativas entre os três, como ficou estabelecido
no corpo deste relatório, mas a sua situação como
países periféricos da Eurozona é semelhante. Se um deles
adoptasse o incumprimento, renegociação e saída, o efeito
demonstração junto aos outros seria grande. Cada um naturalmente
abordaria a questão a partir da sua própria perspectiva social,
política e institucional, mas a compulsão económica
subjacente seria semelhante. A narrativa pode ser contada basicamente para a
Grécia, mas a Espanha e Portugal nelas também se
reconhecerão.
Deveria finalmente ser mencionado que incumprimento, renegociação
e saída, no limite, conduzem à fractura, ou mesmo ao colapso, da
Eurozona como um todo. É impossível analisar com alguma
credibilidade as repercussões de um evento tão
cataclísmico, pode-se apenas declarar que os custos tanto para a
periferia como para o núcleo seriam grandes. Contudo, mesmo este
resultado seria em última análise o resultado da natureza da
Eurozona exploradora, desigual e muito mal juntada. A falha não
residiria nos países periféricos e sim com a união
monetária como um todo, a qual colocou a periferia numa
situação impossível. Os trabalhadores nos países
periféricos não têm obrigação de aceitar a
austeridade durante um futuro indefinido a fim de resgatar a Eurozona.
Além disso, se a Eurozona entrou em colapso sob o peso dos seus
próprios pecados, levantar-se-ia a oportunidade de colocar as
relações entre os povos da Europa sobre uma base diferente. A
solidariedade e a igualdade entre os povos europeus certamente seriam
possíveis, mas elas requerem iniciativas enraizadas no terreno. A
Eurozona na sua forma actual é uma barreira para este desenvolvimento.
Incumprimento conduzido pelo credor:
Reforçar a camisa de força da Eurozona
A austeridade é uma estratégia altamente arriscada quando se
trata de dívida pública porque ela restringe a actividade
económica, como foi mostrado no capítulo 4. Mesmo
projecções oficiais esperam que o rácio entre a
dívida pública e o PIB continue a ascender em todos os
países periféricos até 2012-13, atingindo 149% na
Grécia. A dinâmica da dívida podia tornar-se
insustentável, se houvesse uma recessão interna mais profunda do
que o esperado, se perturbações sociais e políticas se
verificassem grande escala, ou se as economias europeia e mundial tivessem uma
viragem para o pior. As pressões seriam maiores na Grécia devido
à extensão das medidas de austeridade e ao volume de
dívida pública, mas o perigo estaria presente em todos os
países periféricos.
Se ficasse claro que a austeridade havia começado a falhar na
Grécia e alhures a perspectiva da
reestruturação da dívida conduzida pelo credor ganharia
força. O incumprimento conduzido pelo credor não envolveria
necessariamente uma suspensão unilateral de pagamentos de juros e o
incumprimento formal poderia não ser declarado. No entanto, uma forma
controlada de incumprimento ocorreria na prática, envolvendo a permuta
de velha por nova dívida, talvez de acordo com as linhas da Argentina no
período imediatamente anterior ao seu incumprimento final, discutido no
Apêndice A. Este processo obviamente teria lugar sob a égide de
bancos e dentro da estrutura da Eurozona. Isto significaria, no melhor dos
casos, um moderado "corte de cabelo" para os prestamistas acompanhado
por um alongamento de maturidades e possivelmente taxas de juro mais baixas. Os
bancos que organizassem uma tal reestruturação podiam esperar
ganhar comissões substanciais.
O incumprimento conduzido pelos credores seria no interesse dos prestamistas,
particularmente bancos. Deveria ser enfatizado que isto inclui prestamistas
internos, como por exemplo bancos internos que possuam volumes significativos
de dívida pública. Os prestamistas [internos] sairiam
beneficiados porque os mecanismos institucionais da Eurozona seriam levados a
relacionar-se com os estados receptores de empréstimos com o objectivo
de minimizar perdes dos prestamistas. Os bancos também seriam
beneficiados uma vez que continuariam a ter acesso à liquidez do BCE,
utilizando efectivamente os mecanismos do BCE para facilitar o incumprimento.
Acima de tudo, os bancos prestamistas seriam beneficiados pela
aceitação do facto já conhecido de que alguma da
dívida pública na sua contabilidade era má, retirando-a a
seguir do balanço em termos favoráveis. Neste contexto, os bancos
internos também tentariam converter dívida velha por nova em
termos que transferissem para dentro do estado tanto do custo quanto
possível.
Será concebível que um incumprimento controlado pelo credor possa
ocorrer junto com uma reforma radical da Eurozona? Alguns círculos
políticos na Grécia ainda estão a abrigar a
esperança de uma abordagem associativa
(associational)
ao problema da dívida, oferecendo os países do núcleo
apoio genuíno aos países da periferia. Poderia haver uma
acção que aliviasse decisivamente o fardo da dívida sobre
o tomadores dentro da estrutura da Eurozona, permitindo ao mesmo tempo
transferências fiscais de ricos para pobres, um orçamento europeu
mais ampla, protecção salarial e assim por diante?
As enormes dificuldades de reformar a Eurozona numa direcção
pró-trabalho foram tornadas claras no decorrer da crise actual. A
renegociação do incumprimento e da dívida exigiram
urgência, requerendo contra-medidas de igual urgência. A Eurozona
introduziu um pacote de resgate ao custo de austeridade, primeiro na
Grécia mas a seguir em grande parte do resto da união.
Confrontada com perturbações, optou por mais pressão sobre
os trabalhadores, maior rigidez fiscal e termos punitivos impostos aos
países endividados. Ao mesmo tempo, tomou passos fortes para resgatar
bancos. Estas acções são coerentes com a natureza do euro
como moeda mundial servindo primariamente os interesses do capital financeiro
na Europa. As acções também são coerentes com o
neoliberalismo arraigado no coração da Eurozona. Não se
trata de um sistema admitisse reforma pró-trabalho no período de
uma crise de dívida, de modo algum.
Em suma, a reestruturação da dívida controlada pelo credor
dentro da estrutura da Eurozona é uma abordagem conservadora que seria
coerente com a actual política de austeridade. Por esta razão,
é improvável que apresentasse uma solução a longo
prazo para a crise e nem que trouxesse benefícios significativos para
trabalhadores em países periféricos. O fardo da dívida
permaneceria substancial e políticas de austeridade provavelmente
continuariam. A perspectiva a longo prazo para a Grécia e outros
países periféricos permaneceria má.
O incumprimento conduzido pelo devedor e a factibilidade da saída da
Eurozona
O incumprimento conduzido pelo devedor é uma opção
potencialmente mais radical, embora seus resultados variassem conforme o modo
como tivesse lugar. Se, por exemplo, a austeridade fracassasse e a
reestruturação conduzida pelo credor não produzisse
resultados decisivos, a opção do incumprimento conduzido pelo
devedor emergiria mesmo para a safra actual de governos periféricos. Mas
a perspectiva subiria então em meio ao caos social e económico
provocado pela austeridade fracassada. Portanto, o perigo mais profundo das
políticas actuais da UE e do FMI e que possam levar a uma
repetição da experiência da Argentina, discutida no
Apêndice A. Desta perspectiva, se países periféricos
viessem a adoptar incumprimento conduzido pelo devedor, eles poderiam fazer
isso por sua própria iniciativa, decisivamente, no momento certo e
enquanto começassem profundas mudanças sociais.
Incumprimento conduzido pelo devedor significaria, em primeira instância,
suspensão unilateral de pagamentos. Esta abriria um período
intenso de luta social interna bem como grandes tensões nas
relações internacionais. Portanto, o país teria de decidir
quais das suas obrigações externas honrar e em que ordem. Ainda
mais complexamente, bancos internos, investidores institucionais e outros
possuidores de dívida pública procurariam proteger os seus
próprios interesses.
Da perspectiva dos trabalhadores, assim como da sociedade como um todo, seria
imperioso que houvesse uma auditoria pública da dívida a seguir
à suspensão dos pagamentos. A transparência é uma
exigência vital em vista do manto de segredo que envolve a
contratação de empréstimos pelo governo. A auditoria da
dívida permitiria à sociedade saber o que é devido a quem
bem como os termos nos quais os contratos de dívida foram firmados.
Permitiria também mostrar se partes da dívida eram
"odiosos" ou ilegais, permitindo ao devedor que se recusasse sem
rodeios a honrar tais dívidas. A direcção futura do
incumprimento e a sua capacidade de produzir benefícios para os
trabalhadores estaria dependente de prevalecer transparência em
relação ao stock de dívida. Isto seria o terreno
primário de luta social interna uma vez materializado o incumprimento.
Negociações para acertar a dívida se seguiriam à
iniciativa do devedor, tendo em vista serem concluídas tão
rapidamente quanto possível. O objectivo da mesma poderia apenas ser
alcançar um "corte de cabelo" profundo dos prestamistas,
levantando portanto o peso esmagador da dívida sobre os países
tomadores. É impossível averiguar a extensão do
"corte" previamente e antes da auditoria da dívida mas, para a
Grécia, é improvável que seja menor do que para a
Rússia ou a Argentina, alguns pormenores das quais são
apresentados no Apêndice A. Dois terços da dívida
pública grega é possuída pelo estrangeiro, enquanto o
resto é possuído internamente. Os maiores possuidores, tanto
internamente como no estrangeiro, são bancos. Note-se mais uma vez que o
grosso dos títulos públicos parecem ter sido emitidos sob a lei
grega, portanto permitindo possivelmente ao país evitar vastas batalhas
legais em tribunais dos EUA e Reino Unido, como teria acontecido para outros
países de rendimento médio.
[3]
Uma vez que os bancos do núcleo estão expostos substancialmente
à Grécia (e ainda mais pesadamente à periferia) como foi
mostrado no capítulo 2, há algumas vantagens para a Grécia
em renegociar a sua dívida pública. Um governo que reflicta a
vontade popular e actue decisivamente pode ser capaz de assegurar profundos
"cortes de cabelo" num espaço de tempo razoavelmente
rápido.
Mas o incumprimento conduzido pelo devedor também acarretaria riscos
significativos. O risco mais imediato seria o de ficar isolado dos mercados de
capitais durante um período de tempo. Mais complexamente, o
incumprimento podia levar a que o crédito comercial se tornasse escasso
pois os bancos internacionais e internos seriam afectados, prejudicando
portanto as exportações do devedor. Ainda mais gravemente, o
incumprimento implicaria o risco de precipitar uma crise bancária, uma
vez que volumes substanciais de dívida pública são
mantidos por bancos tanto internos como estrangeiros.
A experiência internacional mostra que o período de corte dos
mercados de capital não perduraria demasiado e há sempre fontes
alternativas de financiamento. Tipicamente, países recuperam
credibilidade dentro de um breve espaço de tempo e os mercados de
capital exibem uma memória muito curta. A ameaça ao
crédito comercial, por outro lado, provavelmente seria de maior
consequência e o governo teria de intervir para garantir dívidas
comerciais. Mas o perigo mais grave seria colocado pela ameaça de crise
bancária, a qual poderia ampliar grandemente o choque do incumprimento.
Para impedir uma crise bancária, teria de haver extensa e decisiva
intervenção governamental. Na Grécia isto certamente
significaria estender propriedade pública e controle sobre bancos,
protegendo-os portanto do colapso e impedindo corridas de depositantes. Sob
propriedade pública, os bancos podiam actuar como alavancas para a
transformação geral da economia em favor do trabalho.
Poderia uma acção tão drástica ocorre dentro dos
limites da Eurozona? Note-se em primeiro lugar que é inteiramente
incerto se isto seria formalmente factível. Não existem
precedentes de incumprimento soberano dentro da Eurozona e sua estrutura legal
não prevê tal evento.
[4]
Não há meio seguro de verificar a resposta formal da Eurozona a
uma suspensão unilateral de pagamentos por um ou mais dos seus membros.
E não é claro o que significaria o incumprimento em termos de
participação nos mecanismos de tomada de decisão a
Eurozona, incluindo o estabelecimento de taxas de juro. Seria inevitável
que o incumpridor se tornasse um pária, mas a perspectiva formal
permanece obscura.
Deixando de lado a factibilidade formal, seria desejável para o
incumprimento conduzido pelo devedor ocorrer dentro dos limites da Eurozona? A
resposta é negativa. Primeiro, seria mais difícil para o
país em incumprimento enfrentar uma crise bancária interna sem
pleno comando sobre a política monetária. Mais amplamente, se
bancos fossem colocados sob propriedade pública a seguir ao
incumprimento para continuassem a permanecer dentro do Eurosistema, seria
praticamente impossível accioná-los a fim de reperfilar a
economia. Segundo, a continuada condição de membro da Eurozona
apresentaria pouco benefício para o incumpridor em termos de acesso a
mercados de capital, ou de redução de custos de tomada de
empréstimos. Terceiro, a opção da
desvalorização seria impossível, removendo portanto um
componente vital da recuperação. A acumulação de
dívida do país periférico está inextrincavelmente
ligada à divisa comum e enquanto o incumpridor permanecesse dentro da
Eurozona o problema reapareceria.
Consequentemente, o incumprimento conduzido pelo devedor levanta a perspectiva
de saída da Eurozona. A saída ofereceria controle imediato sobre
a política fiscal e monetária interna. Ela também
removeria os constrangimentos de um sistema monetário que tem resultado
em défices em conta corrente para a periferia. É razoável
esperar que a desvalorização permitiria a
recuperação da competitividade. Também é
plausível que haveria reequilíbrio de recursos em favor da
indústria interna. O resultado seria protecção do emprego
bem como levantamento das pressões de austeridade sobre salários.
Como se pode ver para a Argentina e a Rússia no Apêndice A,
incumprimento e desvalorização resultaram em
recuperação rápida. Temos de admitir que as economias
periféricas europeias são diferentes destes ricos exportadores de
recursos e
commodities
primárias. Mas não há razão para esperar que
outras áreas de actividade, tais como turismo e partes do sector
secundário, não respondessem positivamente à
desvalorização.
Mas a saída também implicaria custos, dada a mudança
violenta de sistema monetário. O retorno a uma divisa nacional para a
Grécia, ou outro país periférico, seria mais
difícil do que a "pesificação" da economia
argentina, dado o grau sem precedente de integração
monetária dentro da Eurozona. Contudo, substituir o euro não
é uma política complexa e seus parâmetros básicos
não são difíceis de verificar. A decisão teria de
ser anunciada subitamente a fim de minimizar fuga de capitais; haveria um
feriado bancário externo; bancos seriam instruídos a converter
depósitos e outros passivos e activos internos para a nova divisa a uma
taxa escolhida a nível nacional. Quando os bancos reabrissem, haveria
circulação paralela do euro e da nova divisa, resultando em
preços emparelhados para uma gama de bens e serviços. Haveria
também agitação monetária quando contratos e
obrigações fixas se ajustassem à nova unidade de conta.
Para impedir o colapso da confiança, o qual poderia ter efeitos
catastróficos para a actividade económica, não deveria
haver hesitação uma vez adoptada a política. Finalmente,
preços e circulação monetária seriam ajustados
à nova divisa, enquanto o euro seria excluído da economia interna.
O valor internacional da nova divisa cairia inevitavelmente, criando complexos
movimentos no equilíbrio de forças sociais internas. Bancos e
empresas com serviço de dívida no exterior enfrentariam maiores
dificuldades; a sua resposta imediata seria tentar comutar algo da sua
própria devida para o estado. Por outro lado, aqueles que
possuíssem activos no exterior procurariam especular contra a nova
divisa. Para a classe capitalista interna, o retorno a uma divisa nacional
representaria uma oportunidade de transferir custos para a sociedade, enquanto
tentando obter uma transferência de riqueza quando a nova divisa
desvalorizasse.
Da perspectiva do trabalhador, e também da sociedade como um todo, a
resposta seria um vasto programa de propriedade e controle público sobre
a economia, a começar com o sistema financeiro. A propriedade
pública sobre bancos garantiria a sua existência contínua,
impedindo uma corrida a depósitos. Controles de capital e câmbios
estrangeiros também seria impostos para impedir exportação
de capital e minimizar transacções especulativas. Um conjunto de
condições seria portanto criado para a adopção de
política industrial a qual alteraria o equilíbrio da economia
interna pelo fortalecimento do sector produtivo. As fontes de crescimento no
médio prazo seriam encontradas na reestruturação decisiva
da economia, ao invés da expansão de exportações
através da desvalorização.
A nova divisa também criaria pressões inflacionárias
quando aumentassem preços de importações, particularmente
preços de energia; salários reais cairiam em consequência.
Enfrentar estas pressões estaria longe de ser fácil, mas
certamente é factível. É, acima de tudo, impossível
contar o que seria a experiência de passar preços de
importações para preços internos. Além disso, o
comando renovado sobre a política monetária permitiria medidas
anti-inflacionárias, particularmente durante os meses do choque inicial
da desvalorização. Apoio a salários reais podia
então ser proporcionado através de uma política de
redistribuição do rendimento efectuada através da
tributação dos rendimentos mais elevados e da riqueza. Afinal de
contas, os países periféricos são os mais desiguais na
Eurozona e a necessidade da redistribuição é urgente.
Notar que um episódio de inflação reduziria o vasto fardo
da dívida interna.
Incumprimento e saída, finalmente, criaria problemas de finanças
públicas, particularmente quando o acesso a fundos internacionais
chegasse a um fim. A experiência internacional mostra que a
balança primária tipicamente retorna a excedentes logo
após a ocorrência de um evento desta natureza. No curto prazo, os
problemas de finanças públicas seriam aperfeiçoados quando
a recuperação começasse após o incumprimento. O
governo também podia contrair empréstimos junto ao sistema
bancário nacionalizado bem como monetizar o défice em certa
medida. Mas para um país como a Grécia, a resposta a médio
prazo deve ser reestruturar o sistema fiscal pela expansão da base
fiscal a fim de incluir os ricos e o próprio capital. Isto seria uma
parte integral da reestruturação do estado grego como um todo,
tornando-o mais democrático e responsável. Não poderia
haver resolução permanente dos problemas das finanças
públicas na Grécia, ou em outros países
periféricos, a menos que houvesse uma mudança na natureza do
estado, reflectindo uma mudança básica no equilíbrio das
forças de classe. Mais amplamente, não poderia haver
reequilíbrio da economia em favor do povo trabalhador sem uma profunda
reestruturação do estado.
Em suma, não há alternativas fáceis para o povo
trabalhador nos países periféricos da Eurozona. O dilema
enfrentado por estes países é implacável. Eles poderiam
aquiescer à austeridade, permanecendo dentro da Eurozona e suportando a
recessão, ou estagnação, durante um futuro indefinido.
Alternativamente, eles poderiam optar pelo incumprimento conduzido pelo devedor
acompanhado pela saída da Eurozona. A última opção
poderia assinalar uma transformação radical da economia e da
sociedade, mudando o equilíbrio de poder contra o capital. A luta
distribucional sobre quem arcaria com os custos da crise continuaria, mas
teriam sido criadas condições mais favoráveis para
combater por uma solução progressista no interesse da maioria. O
incumprimento conduzido pelo devedor podia vir a ser o arranque de uma viragem
anti-capitalista por toda a periferia da Eurozona o que removeria a
sufocação neoliberal sobre a UE, portanto empurrando a Europa
numa direcção associativa, socialista. Está para ser visto
se os trabalhadores europeus na periferia, e também no núcleo,
têm bastante força organizacional e ideológica para
provocar tão profunda mudança.
1. Ver RMF report, "Eurozone Crisis: Beggar Thyself and Thy
Neighbour", March 2010, chapter 7, pp. 49-59.
2. Ver Roubini, N.,
"Greece's Best Option Is an Orderly Default"
,
Financial Times,
28 June 2010; or Beattie, A., "Why Greece Should
Default", lecture delivered at the LSE, 14 July 2010. Podcast
disponível em:
richmedia.lse.ac.uk/...
.
3. Ver Buchheit, L. and Gulati G. Mitu, "How to Restructure Greek
Debt", 2010.
4. Ver Athanassiou, P.,
"Withdrawal and Expulsion from the EU and EMU: Some Reflections"
, European Central Bank, Eurosystem, Legal Working Paper
Series, No. 10, December 2009. Athanassiou pensa que a saída da
Eurozona sria "inconcebível" sem sair também da UE.
Basta notar que o que é inconcebível para juristas em determinado
ponto do tempo torna-se eminentemente concebível em outro.
O texto acima é o capítulo de conclusão de
"The Eurozone between Austerity and Default"
, de C. Lapavitsas,
A. Kaltenbrunner, G. Lambrinidis, D. Lindo, J. Meadway, J. Michell, J.P.
Painceira, E. Pires, J. Powell, A. Stenfors, e N. Teles, (Research on Money
and Finance, September
2010); aqui reproduzido para propósitos educacionais e não
lucrativos.
Ver, também, Andrew F. Cooper and Bessma Momani,
"Negotiating Out of Argentina's Financial Crisis: Segmenting the International Creditors"
(New Political Economy 10.3, September 2005); Eric Helleiner,
"The Strange Story of Bush and the Argentine Debt Crisis"
(Third World Quarterly 26.6, December 2005); Eduardo Levy-Yeyati e Ugo
Panizza,
"The Elusive Costs of Sovereign Defaults"
(Inter-American Development Bank Research Department Working Paper #581,
November 2006); Samir Amin,
"Managing the Euro: Mission Impossible!"
(MRZine, 17 June 2010); Luiz Carlos Bresser-Pereira,
"Greek Debt: Default or Restructuring?"
(MRZine, 10 July 2010); Yanis Varoufakis,
"Uma modesta proposta para ultrapassar a crise do euro"
(MRZine, 5 November 2010):
Tracy Alloway,
"Who's Bailing Out Whom?"
(FT Alphaville, 18 November
2010); Landon Thomas Jr.,
"In European Debt Crisis, Some Call Default Better Option"
(New York Times. 22 November 2010); Bob Davis,
"Amid Irish Aid, a New Option: Some Critics of Latest Bailout Propose Sovereign Default to Keep Debt in Check"
(Wall Street Journal, 23 November 2010).
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/2010/rmf241110.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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