Agora está muitíssimo claro que toda e qualquer resposta da zona
euro (ZE) à crise de dívida soberana que se aproxima a galope tem
sido sistematicamente decepcionante. Isto inclui a operação
conjunta ZE-FMI, em Maio último, da "resgatar" a Grécia
e, no mesmo momento, a bastante notável formação da noite
para o dia de um assim chamado "veículo especial"
(oficialmente a European Financial Stability Facility, ou EFSF), no valor de
mais de 750 mil milhões, para apoiar os membros restantes da ZE
fiscalmente
desafiados (ex.: Irlanda, Portugal, Espanha). Mais recentemente, líderes
europeus anunciaram o seu acordo provisório para criar um mecanismo
permanente para substituir a EFSF bem como uma série de medidas para,
supostamente, atacar as causas da crise, assegurando portanto que não
seria repetida. Infelizmente, nem bem estas medidas foram anunciadas e a crise
intensificou-se.
A razão é simples. A ZE está a confrontar a escalada de
uma crise dupla mas reconhecer apenas uma das suas duas
manifestações. Por um lado, temos a crise de dívida
soberana que permeia o sector público na maioria dos seus países
membros. Por outro, temos bancos do sector privado da Europa, muitos dos quais
se encontram no limite. Sobrecarregados com activos em papel (emitidos tanto
publicamente como privadamente) os quais estão a valer quase nada, eles
constituem buracos negros para dentro dos quais o Banco Central Europeu (BCE)
continua a bombear oceanos de liquidez que, naturalmente, só dão
origem a um minúsculo gotejamento de empréstimos extras para os
negócios. Enquanto isso, a liderança da ZE recusa-se firmemente a
discutir a crise da dívida privada, concentrando-se unicamente na
necessidade de restringir a dívida pública através de um
impulso maciço para a austeridade. Num ciclo infindável, estes
cortes fiscais constrangem ainda mais a actividade económica e portanto
puxam o tapete sob as já enfraquecidas pernas dos banqueiros europeus.
Assim, a crise está a reproduzir-se a si própria.
Ainda que seja difícil simpatizar com os banqueiros, o seu fracasso em
serem confortados pela resposta europeia à crise é
compreensível. Considere-se por um momento o plano de
"resgate" imposto sobre a Grécia pela ZE e pelo FMI, em
conjunto. O estado grego deve mais de 320 mil milhões, a maior
parte a bancos europeus, e comprometeu-se a reembolsar os seus
empréstimos com taxas de juros que são tão elevadas como
7%. Em Maio último, os bancos ficaram tão preocupados acerca de
conceder mais dinheiro ao governo grego que começaram a exigir taxas de
juro de mais de 10%, durante um extenso período no qual eles
próprios estavam a tomar emprestado do BCE a taxas entre 0 e 1%. Foi
neste ponto que o governo grego atirou a toalha e saiu dos mercados, aceitando
o pacote de "resgate" da ZE-FMI o qual, sob a condição
de sujeitar a sua economia à mais selvagem forma de austeridade,
permitiu à Grécia tomar emprestados 110 mil milhões
ao longo dos três anos seguintes a taxas de juro em torno dos 5%.
O que pensaram os banqueiros desta tentativa de "resgate"? Por um
lado, foram reassegurados de que, pelo menos por algum tempo, o governo grego
cumpriria seus reembolsos periódicos utilizando os empréstimos
ZE-FMI. Por outro, contudo, tornaram-se ainda mais suspeitosos de perigos a
longo prazo. No pensamento deles, a certeza de reembolsos ao longo dos
três anos seguintes foi comprada à custa de um muito maior risco
futuro de incumprimento. Os bancos entendem que as medidas de austeridade
impostas à Grécia, num momento em que o PIB já está
a contrair-se a dramáticos 4% ao ano, simplesmente diminuirá a
perspectiva de que o governo grego virá a ser capaz de reembolsar tanto
os seus antigos empréstimos (a eles) e os novos (à ZE-FMI).
Além disso, os bancos entram em pânico ao pensarem na chamada
super-hierarquia dos empréstimos ZE-FMI, isto é, o compromisso
legalmente forçoso do governo grego de que, caso não possa
atender a todas as suas obrigações de reembolso, pagará
primeiro à ZE e ao FMI. Por outras palavras, os bancos sabem que, se a
Grécia não puder reembolsar toda a montanha de dívida em
que estará mergulhada em 2012, quando o seu PIB se tiver
contraído mais uma vez,
eles serão os últimos a receber quaisquer pagamentos que o
governo grego possa fazer.
Uma modesta proposta para deter a crise actual
O que temos agora é um caso de manual de como
não
executar um salvamento. Será de admirar que os bancos não
estejam reconfortados pela "resolução" a longo prazo da
crise grega efectuada pela Europa? E será surpreendente que os mercados
estejam prontos a especular sobre qual será a próxima peça
do dominó a cair, uma vez que a Grécia e alguns bancos (que
concederam grandes somas no passado) tenham ruído? Esta é, em
poucas palavras, a essência da euro-crise. Uma crise que é jovem e
que tem muita energia dentro de si. A questão que naturalmente se
levante em vista do acima exposto é: Poderia a Europa ter respondido de
forma diferente? E em caso afirmativo, porque não o fez? No que se
segue, concentrar-me-ei nestas questões, começando com um
esboço de uma modesta proposta para um plano de resgate alternativo, um
plano que leve em consideração a ligação
simbiótica entre a crise da dívida soberana e a crise do sector
privado (bancos e negócios em geral).
No caso da Grécia, o seu "resgate" actualmente assume a forma
de uma "negociação" bilateral entre da
delegação conjunta ZE-FMI e o governo grego. Supostamente, a
ideia é amarrar um acordo sobre que medidas a Grécia deve tomar
para aumentar a sua arrecadação fiscal e reduzir sua despesa
pública em troca de uma outra prestação de novos
empréstimos da ZE-FMI. É uma "negociação"
que tanto enreda a economia grega numa recessão acelerada como, ao mesmo
tempo, provoca calafrios nas espinhas de banqueiros europeus (pelas
razões acima explicada). Ao invés daquela
negociação bilateral, a minha modesta proposta é que a ZE
deveria orquestrar uma negociação multilateral, uma
negociação que envolvesse os seguintes participantes:
a) Representantes de todos os países com défices elevados que,
potencialmente, exigirão assistência durante os próximos
cinco anos (ex.: não só a Grécia como também
Espanha, Irlanda, Portugal, Itália);
b) Os dirigentes da ZE e do BCE, que efectivamente estarão a
representar, como é seu costume, os interesses dos países
dominantes, com défices baixos (ex.: Alemanha, Finlândia, Holanda);
c) Representantes de todos os principais bancos europeus que possuem a maioria
dos títulos dos países com altos défices.
A razão para por estes três lados na mesma mesa é simples:
tratar o problema da dívida na sua totalidade isto é,
evitar comprimi-lo no domínio da dívida pública só
para vê-lo inchar no sector bancário, ou vice-versa. Aqui
está um exemplo de um possível acordo racional:
1) Bancos europeus concordam em limitar suas exigências sobre a
dívida de países com altos défices (isto é,
reestruturar a dívida da Grécia, etc);
2) Países com altos défices concordam em implementar reformas que
reduzam desperdício, corrupção e partes do seu
défice cuja redução tenha impacto limitado sobre a
pobreza, coesão social e crescimento da produtividade a longo prazo
(ex.: compras para a defesa, isenções fiscais para
cidadãos mais ricos, subsídios a agricultura ambientalmente
danosa);
3) A ZE-BCE compromete-se a dar a assistência de
instituições financeiras europeias que estejam pressionados por
1) acima e, crucialmente, utilizar o Banco Europeu de Investimento para
aumentar o investimento produtivo através do continente, especialmente
nas suas regiões atingidas por recessão.
Uma tal grande negociação potencialmente produziria um acordo
racional sobre como redistribuir os fardos (privado e público) da crise
em desdobramento ao nível da eurozona como um todo e de uma maneira que
fortalecesse os nervos de mercados, firmas, consumidores e investidores
potenciais. Constituiria, sugiro, o beijo da vida para a ZE pois daria uma
poderosa pancada no mecanismo de retro-alimentação que
actualmente reforça o círculo vicioso de (a) a incerteza dos
bancos acerca da capacidade dos estados de os reembolsarem e (b) as
forças recessivas que impedem os estados de pagarem estas dívidas.
Uma modesta proposta para redesenhar a arquitectura do Euro
Se a crise do euro revela alguma coisa é a simples verdade (outrora
melhor entendida ver o excelente artigo de George Krimpas
aqui
) de que uma união da divisa não pode depender do comércio
equilibrado dentro da sua região). A Alemanha, seja como for,
terá um excedente comercial com Portugal. Assim, se as divisas dos dois
países tiverem de estar atadas indefinidamente, manter a balança
equilibradas exige ou uma transferência firme de capital da Alemanha para
Portugal ou uma diminuição constante nos salários
portugueses. Embora ambos os fenómenos sejam possíveis, e muitas
vezes observáveis, a vida tem provado que nem os fluxos de capital nem
as reduções de salários são suficientemente grandes
para impedir os desequilíbrios sempre crescentes entre défice e
excedente nos países da ZE. Em suma, ou a união de divisas
será dissolvida ou uma solução política e
institucional será encontrada. O que se segue é uma modesta
proposta do que pode implicar a solução institucional a longo
prazo. Por que modesta? Por que ela não apela à
solução óbvias do problema: isto é, a
federação.
A ideia central da proposta
[1]
é que a actual arquitectura do euro
é um edifício em que falta um importante pilar e que este pilar
em falta é algum mecanismo para reciclar excedentes entre seus estados
membros centrais e periféricos. A minha afirmação
subjacente aqui é que o Crash de 2008 colocou a ZE na sua desordem
actual ao revelar os desequilíbrios que haviam estado a expandir-se
durante os anos de boom devido a este mecanismo em falta mas que não se
haviam tornado aparentes até o choque desagradável. Assim, aqui
está a proposta:
1) Transferir uma fatia em torno de 60% da dívida soberana de todos os
estados membros para títulos da UE. Isto reduzirá imediatamente
os custos de contracção de empréstimos para os estados
membros mais expostos, atrairá investimentos dos Bancos Centrais de
países com excedentes (ex.: China) e de fundos de riqueza soberana (ex.:
norueguesa, russa, chinesa), estabilizará a ZE no longo prazo e
transformará o euro numa verdadeira divisa de reserva global.
2) Dar poderes ao Banco Europeu de Investimento para financiar um programa de
investimento pan-europeu, em grande escala e eco-social para servir como uma
contrapartida permanente às forças de recessão,
especialmente nas periferias, as quais continuam a arrastar o resto da
união de divisas rumo à estagnação.
3) Por em aplicação, como a chanceler alemã reclama
constantemente, mecanismos que forcem a disciplina fiscal entre estados membros
da ZE, banindo todas as tentativas de utilizar o sistema fiscal de um estado
membro para minar a política de investimento de outro estado membro.
Porque esta modesta proposta não será aceite (por enquanto)
Inúmeras objecções serão apresentadas contra esta
minha modesta proposta. Contudo, é improvável que alguma vez seja
ouvida a razão real para a oposição, pelo menos nas bocas
do funcionalismo ou de economistas incorporados
(embedded economist).
[2]
Toda espécie de razões técnicas serão
apresentadas, mas a verdadeira razão porque esta proposta será
combatida com unhas e dentes é terrivelmente simples: ela não
atende aos interesses de classe daqueles com autoridade pelo menos
não como eles os percebem.
A ideia de que o fardo da crise deveria ser partilhado entre capital e
trabalho, entre sectores produtivo e financeiro, entre regiões com
défice e excedente é anátema para eles. A
noção de que taxas de juro pagas pelo governo alemão
terão de elevar-se (ainda que muito modestamente) de modo a manter uma
aparência de equilíbrio dentro da UE é abominável
para as elites alemãs. Pois eles estão bastante felizes com a
situação actual em que as suas taxas de lucro estão em
ascensão enquanto os trabalhadores alemães estão tendo de
aguentar salários reais em declínio. Quando confrontada com a
realidade dos desequilíbrios entre a Alemanha e a Grécia ou
Portugal, a sua resposta dá o que pensar: "Bem, se os nossos
trabalhadores alemães, que são consideravelmente mais produtivos,
aceitam descansados constantes diminuições dos seus
padrões de vida, então os preguiçosos trabalhadores gregos
e portugueses deveriam ser atingidos por enormes cortes salariais e de
benefícios. Do contrário, os nossos próprios trabalhadores
poderiam objectar quanto ao seu destino". Na verdade, eles estão
convencidos da posição moral para tal proteccionismo
macroeconómico, incapazes de reconhecer que a sua insistência
é incompatível com a manutenção de uma divisa comum
que promove seus próprios excedentes, por outras palavras, a
manutenção do défice do países da ZE e do resto do
mundo.
Em conclusão, a austeridade pode ser a resposta mais irracional e
destrutiva para uma grande crise como aquela que grava a sua marca sobre esta
geração. Contudo, ela dá ao capital global uma
oportunidade para reagrupar a sua guerra de classe contra o trabalho e,
portanto, para arrebatar uma grande vitória mesmo junto às
mandíbulas de uma próxima catástrofe. Se a austeridade
está actualmente abraçada com entusiasmo por quase toda parte
(agora que os capitalistas recuperaram sua segurança após os
salvamentos financiados pelos estado de 2008-09), é porque ela
representa uma estratégia para retirar os fardos da dívida
privada e pública das sua próprias costas e colocá-los nas
dos que nunca foram beneficiados pelo impulso conduzido pela dívida de
antes da Queda. É nada menos do que uma guerra de classe por outros
meios. Além disso é global no seu alcance.
Embaraçosamente, mesmo quando esta guerra de classe contra o senso comum
está a ser travada a uma escala global, as únicas pessoas que
chegam a mencioná-la, embora perversamente, são ... o Tea Party
nos Estados Unidos. Ao atacarem os seus inimigos (incluindo o Fed!) como
"socialistas", eles pelo menos evocam um projecto o qual, se bem que
presentemente afogado, costumava ser o brado de guerra do trabalho quando
atacado pelo capital. Tudo isto seria uma deliciosa ironia se não fosse
uma tragédia real de povos reais a sofrerem grave sofrimento e a
tentarem desesperadamente encontrar uma narrativa que proporcione
justiça poética.
Retornando à Europa, uma última vez... A nossa própria
tragicomédia aparece na forma de elites cujas escolhas
estratégicas são tornadas contraditórias pelo facto de
que, na sua pressa para travar a sua própria guerra de classe contra os
povos da Europa, sub-repticiamente minam a própria união de
divisas que constituía a sua própria ideia para facilitar a
acumulação de capital no continente. Será interessante ver
para quais caminhos elas saltarão quando a crise atingir um crescendo e
exigir ou a ruptura do euro ou uma modesta proposta como esta acima seja
considerada seriamente.
___________
[1] A proposta emergiu de extensas discussões com Stuard Holland
(actualmente professor na Universidade de Coimbra, Portugal, e anteriormente
um destacado deputado do Partido Trabalhista no Reino Unido).
[2] Devo esta expressão, "embedded economists", ao meu colega
Thanassis Maniatis que a cunhou a fim de aludir ao vasto número de
colegas nossas que foram cooptados pelo poder e que de pensadores independentes
transformaram-se em legitimizadores do ilegítimo.
Do mesmo autor:
Acerca do prémio de teoria económica em memória de Alfred Nobel atribuído em 2010 pelo Banco da Suécia
[*]
Professor de Teoria Económica e Director do Departamento de Economia
Política na Faculdade de Ciências Económicas da
Universidade de Atenas; autor de
The Global Minotaur: The True Origins of the Financial Crisis and the Future
of the World Economy
(a publicar);
Modern Political Economics: Making Sense of the Post-2008 World
(com Joseph Halevi e Nicholas Theocarakis);
Game Theory: A Critical Text
;
Foundations of Economics: A Beginner's Companion
; e
Rational Conflict
. O artigo acima resume os argumentos apresentados no Capítulo 12 de
Modern
Political Economics: Making Sense of the Post-2008 World,
a ser publicado em Março de 2011.
O original encontra-se em
http://mrzine.monthlyreview.org/2010/varoufakis051110.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.