Nova guerra fria e ameaças que emergem
por John Pilger
[*]
Entrevistado por Jipson John e Jitheesh P.M.
[**]
O seu recente documentário,
The Coming War on China
, mostra como os Estados Unidos estão em guerra com a China. Pode
explicar o mecanismo dessa guerra secreta? Acha que a
Ásia-Pacífico será a próxima região de
intervenção imperialista? Como ocorrerá essa
intervenção e quais serão as consequências?
É uma "guerra secreta" apenas porque a nossa
percepção é moldada para ignorar a realidade. Em 2010, a
secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, viajou a Manila e
incumbiu o recém-empossado presidente filipino, Benigno Aquino, de tomar
posição contra a China pela sua ocupação das Ilhas
Spratly e de aceitar a presença de cinco bases de Marines dos EUA.
Manila entendia-se bem com Pequim, tendo negociado empréstimos
bonificados para infraestruturas que necessitava muito. Aquino fez o que lhe
foi dito e aceitou que uma equipa jurídica liderada pelos EUA
contestasse as reivindicações territoriais da China no Tribunal
Arbitral da ONU em Haia. O tribunal concluiu que a China não tinha
qualquer jurisdição sobre as ilhas; um julgamento que a China
categoricamente rejeitou. Foi uma pequena vitória numa campanha de
propaganda americana visando retratar a China mais como territorialmente rapace
do que como defensiva na sua própria região. O motivo foi o
crescente receio da elite de segurança nacional/militar/mediática
dos EUA de ter deixado de ser a potência dominante no mundo.
No ano seguinte, em 2011, o presidente Obama declarou uma "viragem para a
China". Isso marcou a transferência da maioria das forças
navais e aéreas dos EUA para a região da
Ásia-Pacífico, o maior movimento de equipamentos militares desde
a Segunda Guerra Mundial. O novo inimigo de Washington ou melhor, um
inimigo de novo era a China, que atingira extraordinários
patamares económicos em menos de uma geração.
Os Estados Unidos têm há muito tempo uma série de bases em
torno da China, da Austrália às ilhas do Pacífico,
passando pelo Japão, Coreia e Eurásia. Estas estão em vias
de ser reforçadas e modernizadas. Quase metade da rede global dos EUA,
que conta mais de 800 bases, cerca a China "como o laço corredio
perfeito", disse um responsável do Departamento de Estado. Sob o
pretexto do "direito à liberdade de navegação",
navios de baixo calado dos EUA entram nas águas chinesas. Os drones
americanos sobrevoam o território chinês. A ilha japonesa de
Okinawa é uma vasta base americana, com os seus contingentes preparados
para um ataque à China. Na ilha coreana de Jeju, os mísseis da
classe Aegis são apontados a Xangai, a 640 quilómetros de
distância. A provocação é constante.
Em 3 de outubro, pela primeira vez desde a Guerra Fria, os Estados Unidos
ameaçaram abertamente atacar a Rússia, a aliada mais
próxima da China, com quem esta tem um pacto de defesa mútua. Os
media interessaram-se pouco pela questão. A China está a armar-se
rapidamente; de acordo com a literatura especializada, Pequim mudou sua postura
nuclear, passando de um alerta baixo para um alerta alto.
Pessoas como Noam Chomsky dizem que o império americano está em
declínio. Pensa realmente isso? Nos últimos tempos, vimos os
Estados Unidos tentarem chegar a um acordo com a Coreia do Norte; antes, eles
tentaram reestabelecer relações diplomáticas com Cuba. O
que indicam esses episódios? Acha que o mundo se está a
diversificar?
O império americano enquanto ideia pode estar em declínio, a
ideia de uma única potência dominante e a
dolarização da economia mundial, mas o poder militar dos EUA
nunca foi tão ameaçador. Uma nova guerra fria conduz ao
isolamento dos Estados Unidos e é um perigo para todos nós. No
início do século XXI, Norman Mailer [jornalista e romancista
norte-americano] escreveu que o poder americano havia entrado em uma era
"pré-fascista". Outros sugeriram que já estamos
lá.
Disse que um dos triunfos do século XXI em matéria de
relações públicas foi o slogan de Obama "a
mudança em que acreditamos". Disse também que a campanha
mundial de assassínios de Obama foi sem dúvida a mais dispendiosa
campanha de terrorismo desde o 11 de Setembro de 2001. Por que foi tão
duro com Obama, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz? Que acha de Donald
Trump e da sua presidência?
Eu não fui duro com Obama. Foi Obama quem foi duro com grande parte da
humanidade, ao contrário da sua muitas vezes absurda imagem
mediática. Obama foi um dos mais violentos presidentes americanos.
Lançou ou apoiou sete guerras e deixou o poder sem que nenhuma delas
fosse resolvida: um recorde. Durante o seu último ano como presidente,
em 2016, lançou 26.171 bombas, segundo o Conselho de
Relações Exteriores. É uma estatística
interessante; trata-se de três bombas a cada hora, 24 horas por dia,
principalmente sobre civis. A técnica de bombardeamento adoptada por
Obama foi o assassínio por meio de drones. Todas as
terças-feiras, relatava o
New York Times,
ele escolhia os nomes daqueles que iriam morrer num "programa" de
execuções extrajudiciais. Todos os homens em idade militar no
Iémen e nas fronteiras do Paquistão eram considerados
inteiramente como animais. Ele multiplicou as operações das
forças especiais dos EUA no mundo, especialmente em África.
Juntamente com a França e a Grã-Bretanha ele e sua
secretária de Estado, Hillary Clinton, destruíram a Líbia
como Estado moderno com o falso e familiar pretexto de que o seu líder
estava prestes a cometer um massacre de "inocentes". Isso conduziu
directamente ao crescimento dos medievalistas Daesh [ou Estado Islâmico]
e uma vaga de emigração de África para a Europa. Ele
derrubou o presidente democraticamente eleito da Ucrânia e instalou um
regime abertamente apoiado pelo fascismo como uma
provocação deliberada à Rússia.
A concessão do Prémio Nobel da Paz a Obama foi uma impostura. Em
2009, esteve no centro de Praga e prometeu ali ajudar a criar um mundo
"livre de armas nucleares". Na verdade, aumentou o número de
ogivas nucleares americanas e autorizou um programa de construção
nuclear de longo prazo de US$1000 milhões. Processou mais denunciantes,
reveladores da verdade, do que todos os presidentes dos EUA juntos. O seu
principal êxito, pode dizer-se, foi pôr fim ao movimento
anti-guerra norte-americano. Os manifestantes regressaram a casa dando
crédito às mensagens de 'esperança' e 'paz' de Obama e
começaram a acreditar nisso. A única diferença de Obama
foi ter sido o primeiro presidente negro na terra da escravidão. Em
quase todos os outros aspectos, ele era apenas outro presidente americano cuja
constante afirmação era que os Estados Unidos eram "a
única nação indispensável", o que presumia que
outras nações seriam dispensáveis.
Talvez a inteligência de Obama residisse na imagem que ele próprio
e outros fabricaram e cultivaram com sucesso. Donald Trump também pode
ser descrito como apenas outro presidente americano (violento). O que o
distingue é que ele é uma caricatura. Muitos membros da elite
americana detestam Trump, não por causa de seu comportamento pessoal,
mas por causa de um embaraço muito mais profundo; ele é a imagem
crua da América, sem a máscara.
O seu filme
The War on Democracy
documenta o golpe de Estado orquestrado pelos Estados Unidos contra Hugo
Chávez, que se opunha ao imperialismo, com a ajuda da burguesia de
direita e capitalista da Venezuela. Isso não era novo para a maioria dos
países latino-americanos. Hoje, porém, vemos cada vez mais
países do continente resistindo ao imperialismo americano. Fora de Cuba
e da Venezuela, governos de esquerda estão no poder em países
como a Bolívia e o Equador. Qual é o significado disso? Hoje em
dia, também ouvimos histórias de ofensivas de direita em
países como a Venezuela e o Brasil. Como avalia o actual cenário
político latino-americano?
Não concordo que "mais e mais países [na América
Latina] estejam a resistir ao imperialismo dos EUA". Pode ter sido verdade
quando Hugo Chávez ainda estava vivo; mas mesmo então, os Estados
Unidos nunca desistiram da sua influência no continente. Hoje, há
apenas Bolívia, Nicarágua e, claro, Venezuela, a Venezuela em
luta pela sobrevivência. A maior parte da América Latina
está de volta à influência de Washington, especialmente o
Brasil. O Equador, anteriormente esclarecido, é outro exemplo eloquente.
O governo obsequioso de Lénine Moreno convidou as tropas
norte-americanas a voltarem e ameaçou abandonar Julian Assange. A
opressão económica do FMI está novamente a prejudicar a
Argentina. Versões do Consenso de Washington, conhecido como
neoliberalismo, dominam quase todo o continente. Cuba está calma, o que
é compreensível.
Nos últimos anos, vimos denunciantes como Julian Assange e Edward
Snowden revelarem documentos confidenciais que mostravam como funciona o
sistema de poder. Notará que o WikiLeaks não fez nada mais do que
The New York Times
e
The Washington Post
haviam feito num celebrado passado revelaram a verdade sobre guerras de
rapina e as maquinações de uma elite corrupta.
Disse que "o WikiLeaks é um marco no jornalismo". Qual
é a importância dessas revelações? O que é
que elas nos ensinam?
O WikiLeaks fez muito mais do que o
New York Times
e o
Washington Post
com todos os louros que estes têm. Nenhum jornal conseguiu igualar
ou chegar perto os segredos e mentiras do poder que Assange e
Snowden revelaram. O facto de os dois homens serem fugitivos testemunha o recuo
das democracias liberais em relação aos princípios da
liberdade e da justiça. Por que o WikiLeaks é um marco no
jornalismo? Porque as suas revelações nos disseram, com 100% de
precisão, como e porquê uma grande parte do mundo é
dividida e dirigida.
Como analisa a evolução do panorama dos media na era digital? Por
um lado, a Internet abriu uma vasta via de espaço livre ou de plataforma
independente. A Internet oferece um espaço contra-narrativo, ao qual os
grandes media corporativos não prestam atenção. Mas, por
outro lado, grandes monopólios digitais controlam o espaço
digital. Como vê a situação? Quais são os desafios a
enfrentar?
Os desafios são tão grandes quanto os povos o permitem. Os dados
digitais são a nova corrida ao ouro do capitalismo; a vigilância
digital é o novo adversário da democracia. Ambos diferem apenas
na forma e na escala das infinitas variedades de poder a que os povos tiveram
de resistir desde o início da história. Hoje, todos nós
temos um pé no mundo digital; temos a Internet, que é poder. A
maneira como aplicamos este poder, ao invés de o banalizar, depende da
nossa vontade de adoptar princípios imemoriais de resistência.
Está envolvido em reportagens de guerra há mais de cinco
décadas. Cobriu a maioria das grandes guerras, incluindo a Guerra do
Vietname, a guerra no Iraque e a guerra no Afeganistão. Um certo
número de países pratica uma política de armamento
crescente como política económica. O papel das grandes empresas
de venda armas também é importante. O que é a economia
política da guerra?
A economia política da guerra na era moderna é a economia
política dos Estados Unidos. Os Estados Unidos privam cerca de 80
milhões dos seus cidadãos de cuidados de saúde adequados e
gastam quase 60% do seu orçamento discricionário federal na
preparação para a guerra. A Índia também tem uma
economia de guerra. Em 2018, a Índia ficou entre os cinco países
que mais gastaram no campo militar, com um orçamento militar de US$63,9
mil milhões, o que supera o da França. Quase metade do
orçamento nacional é dedicado a gastos militares. Quando fui
à Índia pela primeira vez, descobri outro mundo dentro de bases
militares, habitado por pessoas saudáveis e bem nutridas, com
água potável e crianças educadas. No exterior dessas
bolhas magníficas, a Índia conta mais crianças subnutridas
do que qualquer outro país do mundo.
Síndrome do Vietname
A Guerra do Vietname foi um dos capítulos mais sangrentos e
mortíferos do pós-guerra. Começou as suas reportagens de
guerra no Vietname. Esta foi a primeira guerra televisionada. A Guerra do
Vietname é a história do massacre de mais de três
milhões de pessoas. Poderia falar-nos do horror que viu no Vietname?
Qual foi o papel dos media ocidentais no Vietname? Recentemente, captou a
tentativa de reescrever a história da Guerra do Vietname em manuais
escolares norte-americanos. A própria recordação do
Vietname assombra o Estado mais poderoso do mundo?
Não tenho certeza de que "assombrar" seja a palavra certa. O
que incomoda os apologistas americanos é que o exército de
"nação indispensável" foi expulso da Ásia
por uma nação de camponeses, que ela sofreu uma derrota
humilhante. Desde então, eles têm procurado um "melhor
resultado", reescrevendo o que chamaram de "síndrome do
Vietname", um eufemismo para o embaraço prolongado causado por uma
catástrofe.
A série de documentários épicos de Ken Burns para a Public
Broadcasting em 2017 começou com a seguinte declaração:
"A guerra foi desencadeada de boa-fé por pessoas honestas como
resultado de mal-entendidos fatais, do excesso de confiança dos
norte-americanos e dos mal-entendidos da guerra fria". A desonestidade
desta declaração ignora os muitos falsos pretextos que levaram
à invasão do Vietname, como o "incidente" do golfo de
Tonquim em 1964. Não houve boa-fé. A fé era podre e
cancerosa e mais de quatro milhões de pessoas morreram.
Vi algo do sofrimento: o facto de o comandante norte-americano, general William
Westmoreland, ter tomado por alvo civis a quem chamava "baratas". No
delta do Mekong, após um bombardeamento, havia um cheiro de napalm e
árvores petrificadas enfeitadas com pedaços de corpos.
Também testemunhei heroísmo. Em 1975, encontrei a única
sobrevivente de uma bateria antiaérea vietnamita, todas adolescentes;
estava ajoelhada diante dos novos túmulos de seus camaradas.
O terrorismo é o produto de Estados
Questionou a guerra dos EUA contra o terrorismo como um exemplo de hipocrisia e
de duplicidade. Porque diz isso? Se assim for, a questão é de
saber como parar o terrorismo. Até que ponto a ameaça do
terrorismo é um desafio para uma vida moderna e cívica?
A grande maioria do terrorismo é o produto de Estados. O Iémen
é actualmente vítima de incessantes actos de terrorismo por parte
do Estado saudita, que patrocinou outras formas de terrorismo, nomeadamente os
ataques de 11 de Setembro. A "guerra contra o terrorismo"
lançada em 2001 pelo presidente dos EUA, George W. Bush, foi na verdade,
uma guerra de terror, matando milhões de pessoas, na sua maioria
muçulmanos. Estados poderosos, como os Estados Unidos e a
Grã-Bretanha, tornaram o terrorismo uma arma
"estratégica"; o apoio ao jihadismo na Líbia e na
Síria é um exemplo notável disso. A conclusão
é ou deveria ser óbvia: quando os governos pararem de promover o
terrorismo, os ataques sangrentos nas suas próprias cidades
provavelmente acabarão.
Disse que os Estados Unidos têm ao mesmo tempo "bons
terroristas" e "maus terroristas". Quem são os bons e os
maus terroristas da América?
A designação pode mudar sem aviso prévio. Actualmente, os
sauditas são "bons terroristas"; na verdade, nem são
chamados de terroristas. Os extremos terroristas maus Al Qaeda
são agora bons terroristas que lutam ao lado dos Estados Unidos na sua
longa guerra contra os xiítas. Historicamente, os curdos sempre foram ao
mesmo tempo bons e maus terroristas; no Iraque, os curdos eram bons; na
Turquia, eram maus. A designação assentava em eles estarem ou
não lutando contra o mais recente inimigo dos Estados Unidos.
Nas últimas décadas do século XX, o mundo viu a
região da Ásia Ocidental tornar-se o ponto quente da
intervenção ocidental. Depois do 11 de Setembro de 2001, essa
intervenção tomou a forma de duas guerras: a guerra no
Afeganistão e a guerra no Iraque. A islamofobia atingiu novos picos no
Ocidente. A teoria do choque de civilizações encontrou
campeões na máquina estatal, sendo George Bush o melhor exemplo.
Como situa historicamente os interesses ocidentais no Médio Oriente e a
ascensão da islamofobia no Ocidente?
Recomendo o trabalho do historiador britânico Mark Curtis, cujo livro
Secret Affairs
relata a estreita relação entre o estado britânico e o
islamismo extremista. O que está claro é que
organizações como Daesh e Al-Qaeda eram o produto dos governos
imperiais ocidentais.
No Afeganistão, os
mujahidin
poderiam ter permanecido como uma influência tribal se não fosse
a Operação Ciclone, um plano liderado pelos Estados Unidos para
transformar o Islão extremista numa força que expulsaria a
União Soviética e derrubaria o estado soviético. O que o
Ocidente temia no Médio Oriente era o que Gamal Abdel Nasser, no Egipto,
chamava "pan-arabismo". Temia que os povos árabes se
desembaraçassem das cadeias do tribalismo e do feudalismo e controlassem
e desenvolvessem os seus próprios recursos. Por esta razão, o
único governo progressista no Afeganistão foi declarado
"comunista" e destruído. Pela mesma razão, os
palestinos são mantidos num estado de opressão
interminável.
Com os Estados Unidos reconhecendo Jerusalém como capital de Israel em 9
de Dezembro de 2017, o sofrimento e o medo dos palestinos aumentaram. Como
disse, eles são refugiados no seu próprio território.
Descreveu a agressão contra a Palestina como a ocupação
militar mais longa da história moderna. poderia dizer-nos algo mais
sobre a questão palestina? Quais são os interesses
estratégicos e geopolíticos dos Estados Unidos na região?
Qual é o caminho para ser feita justiça aos palestinos?
Um dos principais objectivos dos Estados Unidos é manter o Médio
Oriente num estado de incerteza, instável e dividido por guerras
tribais. John Bolton, o conselheiro de segurança nacional dos EUA,
disse-o com grande satisfação. Foi assim que os britânicos
controlaram a região. O centro de concepção dessa
"política" é Israel, um anacronismo imperial imposto ao
Médio Oriente quando o mundo se descolonizava. Como o historiador
israelense Ilan Pappe documenta no seu último livro, Israel foi
concebido como uma prisão para seus povos autóctones, os
palestinos. Toda a hipocrisia ocidental reside em Israel. Bashar al-Assad
é designado como um monstro, mas Benjamin Netanyahu, um monstro supremo,
goza de impunidade para controlar os palestinos e, em grande medida, o
Congresso dos EUA, a Casa Branca e as Câmaras do Parlamento em Londres.
Essa impunidade manifestou-se recentemente quando Jeremy Corbyn, o líder
trabalhista britânico que pode vir a ser o próximo
primeiro-ministro britânico, foi alvo de uma campanha inteiramente falsa
que o difama como anti-semita. Em vez de a rejeitar com desprezo, Corbyn
curvou-se a ela e traiu os seus muitos anos de apoio aos direitos dos
palestinos aceitando uma definição de sionismo que negava a
Israel o seu verdadeiro estatuto de estado racista. No momento em que escrevo,
os soldados israelenses massacram regularmente palestinos em Gaza, incluindo
crianças. Desde março [2018], 77 palestinos desarmados tiveram
que ser amputados, incluindo 14 crianças; 12 ficaram paralisadas por
toda a vida após serem baleados nas costas. Nem um único
israelense ficou ferido.
Aquilo a que chamamos globalização é, na verdade, o
capitalismo neoliberal. Você provavelmente foi o primeiro a revelar o
primeiro experimento de programa de ajustamento estrutural na Indonésia
na década de 1960. Diz que não há diferença entre a
implacável intervenção do capital internacional nos
mercados estrangeiros hoje e os de antes, quando eram apoiados por canhoneiras.
Como jornalista familiarizado com o funcionamento do Estado profundo, poderia
falar-nos sobre a evolução das experiências
económicas neoliberais? Como funciona isso hoje em dia?
O neoliberalismo é uma extensão do que antes era chamado
monetarismo, as duas versões exóticas ou extremas do capitalismo
dominante. No Ocidente, sob a liderança de Margaret Thatcher e Ronald
Reagan e seus homólogos europeus, foi declarada uma "sociedade a
dois terços". O terço superior seria enriquecido e pagaria
pouco ou nenhum imposto. O terço médio seria
"ambicioso", alguns de entre eles seriam "bem-sucedidos"
num mundo impiedosamente competitivo e outros ficariam irrevogavelmente
endividados. O terço inferior seria abandonado ou ser-lhe-ia oferecido
um empobrecimento estável em troca da sua obediência. A
relação entre as pessoas e o Estado mudaria de benigna para
maligna. Uma nova classe de gestores educados no espírito empresarial
dos Estados Unidos, com a sua própria "cultura" e
vocabulário, supervisionaria a conversão da social-democracia
numa autocracia de empresa. O "debate" público, gerido por
meios de comunicação totalmente integrados, seria dominado por
"políticas de identidade", todas as noções de
classe banidas como "falsidades". Falsos demónios estrangeiros
(liderados pela Rússia, seguidos de perto pela China) seriam designados
como "inimigos necessários".
A unidade europeia é propaganda
A experiência da União Europeia foi saudada como um sinal de
unidade dos europeus e um modelo na era pós-socialista. Mas o Brexit foi
um grande golpe que atingiu essa propaganda. Qual é o seu ponto de vista
sobre a UE? Como analisa o Brexit e reivindicações semelhantes?
A União Europeia é basicamente um cartel. Não há
"livre comércio". Existem regras de exclusividade
estabelecidas e controladas pelos bancos centrais, principalmente o banco
central alemão, com benefícios para os membros mais fracos,
nomeadamente o movimento transfronteiriço de mão-de-obra, embora
isso seja agora posto em causa. O objectivo central da UE é a
protecção e o fortalecimento do poder económico dos mais
fortes. Bruxelas é uma burocracia centralizada; a democracia é
mínima. A "unidade europeia" de que fala é propaganda,
promovida por aqueles que mais recebem da UE. O esmagamento da Grécia
é uma lição que a maioria dos britânicos parece ter
entendido.
O seu trabalho concentra-se em quem controla o destino da humanidade, de que
forma nações poderosas, grandes empresas, a burguesia, lobbies
poderosos fazem as leis e regras do mundo. A democracia parece ser a
vítima. Apesar disso, temos histórias inspiradoras em todo o
mundo sobre a resistência contra essas forças poderosas.
Está optimista e com esperança quanto a um mundo melhor?
Existem forças inspiradoras de resistência em muitos
países, incluindo a Índia. Desde a minha primeira reportagem na
Índia, na década de 1960, emocionou-me o desejo das pessoas
comuns, especialmente dos agricultores, de defender a justiça na sua
vida. A recente grande marcha [de 23 de Setembro a 2 de Outubro] de 50 mil
agricultores de [Haridwar] em Uttar Pradesh, em Nova Deli, era típica.
Disciplinados, políticos e engenhosos, eles têm muito a ensinar
àqueles de nós que no Ocidente imaginam que o protesto consiste
em gozar com Trump ou assinar uma petição dirigida ao deputado da
sua zona. Quando o governo de Deli permitiu que a polícia atacasse os
agricultores no aniversário de Mahatma Gandhi, eles reagiram. A promessa
política destes movimentos talvez seja a mais notável
evocação revolucionária no mundo hoje.
Eles representam a luta dos povos e da agricultura em todo o mundo contra os
bulldozer neoliberais do "desenvolvimento urbano": o roubo do
espaço humano e a sua conversão numa mercadoria grotesca e
lucrativa. O facto de os governos indianos não terem reagido aos
suicídios de mais de 300 mil agricultores é uma tragédia
histórica, mas pode ser revertida a qualquer momento. De certo modo, os
agricultores indianos representam-nos a todos. Como escreve Vandana Shiva, a
sua difícil situação e a sua resistência constituem
uma advertência: a menos que a segurança sobre a terra, a
segurança sobre as sementes e a agricultura pertençam ao povo, a
colonização dos campos do mundo por gente como a Monsanto
é uma ameaça tão séria para a existência
humana quanto
as alterações climáticas
[NR]
. Claro que as pessoas nunca estão paradas. Eles
"levantar-se-ão como um leão depois de acordar
",
como escreveu Percy Bysshe Shelley
Quando a resistência não
é visível, é ainda uma "semente sob a neve".
Nunca conheci tanta sensibilização do público como hoje,
mas reina também a confusão. O "populismo" dos
ocidentais, tantas vezes deturpado como reaccionário, exprima ao mesmo
tempo a disposição de resistir e uma desorientação
sobre como o fazer. Isso vai mudar. O que nunca muda é o medo dos
poderosos do poder das pessoas comuns.
O tipo de jornalismo que pratica é realmente um desafio, e
difícil. Através de seus documentários, artigos e outros
trabalhos jornalísticos, questionou os Estados mais poderosos do mundo e
suas fraudes democráticas. O que moldou o seu ponto de vista para se
tornar uma voz dissidente no jornalismo? Quais são as suas
influências e o que é que o mantém atento?
Hoje, a maioria dos jornalistas estabelecidos são estafetas do poder.
Não são o
mainstream,
que é uma palavra orwelliana. Um
mainstream
real tolera a dissidência, não a censura. O que é que
moldou o meu ponto de vista? O facto de relatar a luta das sociedades pelo
mundo afora, incluindo os seus triunfos, por mínimos que sejam, continua
sendo uma influência duradoura. Ou talvez essas influências tenham
início cedo na vida. "Apoiamos os oprimidos", disse-me minha
mãe um dia, quando eu era pequeno. Eu gosto disso.
02/Janeiro/2018
[NR]
Um falso problema, como se mostra aqui:
Uma impostura científica
[*]
http://johnpilger.com
[**]
Membros do Tricontinental: Institute for Social Research, colaboradores de
The Indian Express, The Wire
e
Monthly Review.
Contactos:
jipsonjohn10@gmail.com
e
jitheeshpm91@gmail.com
O original encontra-se em
frontline.thehindu.com/cover-story/article25661115.ece
e a tradução em
www.odiario.info/nova-guerra-fria-e-ameacas-iminentes/
(efectuadas correcções)
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
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