Da censura aos bombardeamentos
Al-Manar: como Israel estrangulou a voz da Resistência libanesa
A campanha de censura mundial da televisão do Hezbollah iniciou-se em
finais de 2003 por iniciativa do Estado-maior das Forças Armadas
israelenses. Acusada de difundir programas anti-semitas, Al-Manar, na verdade,
nunca foi condenada por tais feitos, mas antes interditada por motivos de ordem
pública. Essa campanha, cuja história é aqui relatada e
cujos actores escondidos são aqui revelados por Thierry Meyssan, foi
explicitamente concebida com o intuito de suprimir a voz da Resistência
libanesa antes de o país do Cedro ser atacado e destruído.
Trata-se de um princípio inabalável da propaganda: para
que uma
mentira pareça verdade, é necessário assegurar que nenhuma
voz dissidente a venha a contradizer, depois, convém repeti-la
incansavelmente. Foi assim que, antes de lançar a sua ofensiva na
Palestina ocupada e no Líbano, invocando legítima defesa, Israel
se certificou que Al-Manar o canal de televisão da
Resistência à ocupação do Sul do Líbano, do
Golan sírio e da Palestina não chegaria mais à
Europa, às Américas e à Oceania.
É provável que muitos actores que participaram nesta
operação de censura não tenham medido as suas
consequências dramáticas. Mas todos queriam impedir um debate
contraditório e favorecer as mentiras israelenses. Então, todos
têm responsabilidade nos crimes que tornaram possíveis.
Por outro lado, a história desta censura ensina-nos muito sobre os
canais e os métodos de influência das Forças Armadas
israelenses em França e no mundo.
Prelúdio: "Quando queremos matar o nosso cão, dizemos que
ele sofre de raiva"
Não esqueçamos: Al-Manar é um canal de televisão
criado pelo Hezbollah em 1991 e é difundido por satélite desde
2002. Este canal propõe principalmente boletins e magazines de
informação consagrados à ocupação militar
israelense, entrecortados por algumas emissões de entretenimento.
Israel e os Estados Unidos, mas também o Canadá e os
Países Baixos consideram o Hezbollah como uma
"organização terrorista", ou seja, um inimigo
não controlado pelo estado. Ao contrário, a França e os
Estados que lhe são próximos mantêm relações
cordiais com o Hezbollah, ao ponto de o presidente Jacques Chirac o ter
convidado a participar na cimeira da Francofonia e de Bernardette Chirac ter
aceitado inaugurar várias das suas obras de caridade.
Ainda que Al-Manar seja um meio de comunicação social, ou
precisamente, porque é um meio de comunicação social,
Al-Manar tornou-se alvo de obsessão para Tel-Aviv e Washington.
As hostilidades começaram em 3 de Maio de 2003, quando o
secretário de Estado Colin Powell, em visita oficial à
Síria, interdita o acesso do Al-Manar à sua conferência de
imprensa.
[1]
Em Outubro do mesmo ano, o departamento de Estado dos Estados Unidos protesta
junto dos seus homólogos sírios e libaneses ao saber do
anúncio da difusão, por parte do Al-Manar, de uma série
intitulada
Al Chatat (A Diáspora).
Esta apresentava, com efeito, uma versão considerada errónea da
criação do Estado de Israel, e de teor anti-semita.
[2]
Não dando importância a essas acusações, e
pressões, o canal começa a difusão da série durante
o período do Ramadão, mas as outras televisões
árabes recusam-se a emiti-la.
[3]
Finalmente, na sequência da difusão de um episódio
litigioso, Al-Manar retira a série da sua programação.
O Middle East & Research Institute (MEMRI) lança então uma
campanha internacional de interdição do Al-Manar. O MEMRI
é um poderoso
lobby,
sediado em Washington, que se apresenta como uma iniciativa civil. Mas, na
verdade, ele foi fundado em 1998 pelos oficiais de informação das
Forças Armadas israelenses, Yotam e Aluma Solnick, sob o comando do
coronel Yigal Carmon, e está integrado numa rede de
associações neoconservadoras nos Estados Unidos.
[4]
Na sequência dessa campanha, o Conselho Representativo das
Instituições Judias de França (CRIF), constitui em Paris o
Conselho Superior do Audiovisual (CSA). O CSA é "uma autoridade
administrativa independente" encarregada de regular o sector audiovisual,
presidida por Dominique Baudis, antigo representante em França do
Carlyle Group, o fundo de investimento comum das famílias Bush e Bin
Laden.
[5]
Aproveitando a sua cerimónia de apresentação de votos
à imprensa, Baudis anuncia ter estado com o procurador da
República e ter solicitado um encontro com o presidente do
directório da Eutelsat, no sentido de determinarem a melhor maneira de
impedir a difusão do Al-Manar, que a seu ver, é culpado de
incitar à raiva e à violência.
[6]
Uma semana mais tarde, Israel celebra a sua "Jornada nacional do combate
contra o anti-semitismo".
[7]
Nessa ocasião, o general MosheYaalon declara:
"Cerca de 60 anos depois da libertação de Auschwitz, o
anti-semitismo continua a ameaçar a vida dos judeus, embora com uma nova
cara e novas estratégias".
E organiza juntamente com Nathan Sharansky
[8]
um visionamento de excertos da série do Al-Manar
[9]
, preparados pelo Estado-maior das Forças Armadas. Sharansky acumula as
funções de vice primeiro-ministro de Israel e de conselheiro do
presidente dos Estados Unidos, para o qual escreve, por vezes, os discursos.
A rádio militar israelense anuncia que Israel encetou diversas
acções para interditar Al-Manar na Europa e menciona a iniciativa
do CSA, a pedido do CRIF, como o primeiro resultado dessa campanha
[10]
, declarações confirmadas pelo ministro israelense dos
Negócios Estrangeiros.
Primeiro acto: o argumento anti-semita
Em 31 de Janeiro de 2004, o primeiro-ministro francês (UMP) Jean-Pierre
Raffarin, convidado para o jantar anual do CRIF, declara ter visionado a
cassete de vídeo preparada pelas Forças Armadas israelenses, na
companhia da ministra Nicole Guedj, conselheira do GRIF. Ele anuncia ao
auditório arrebatado a sua intenção de mudar a
legislação de modo a permitir ao CSA e ao Conselho de Estado a
interdição administrativa do Al-Manar, sem terem de esperar que o
canal fosse julgado ou condenado penalmente.
[11]
A precipitação do primeiro-ministro só se explica pela
sua convicção de que a acusação proferida contra o
Al-Manar é excessiva e que a justiça penal não
pronunciará nenhuma sanção. Para satisfazer os seus
anfitriões, ele opta, então, por introduzir uma lei de
excepção.
As novas disposições são apressadamente inseridas numa lei
sobre os serviços audiovisuais, aprovadas pelas duas câmaras e
publicadas no
Jornal Oficial,
em 10 de Julho. Dois dias depois, o CSA reúne-se com o Conselho de Estado
para pronunciar uma interdição administrativa. Interrogado sobre
este procedimento, o porta-voz do ministro dos Negócios Estrangeiros
declara:
"Ninguém deverá duvidar da determinação da
França na luta contra todas as manifestações de racismo e
de anti-semitismo",
deixando entrever o que se deve entender por "independência"
do CSA.
[12]
Surpreendidos por esta notícia, o Conselho Nacional do Audiovisual
libanês rapidamente apoiado por toda a classe política
libanesa faz um apelo à França para que seja respeitada a
liberdade de expressão.
[13]
O Conselho libanês chega mesmo a solicitar a todos os meios de
comunicação árabes a organização de uma
jornada de solidariedade para com o Al-Manar, em 12 de Agosto.
[14]
Comentado o litígio perante a imprensa, o ministro libanês dos
Negócios Estrangeiros, Jean Obeid, sublinha:
"Nós não nos queremos intrometer no trabalho da
justiça francesa, no entanto, acreditamos que o aspecto político
domina este caso (
). De cada vez que se critica uma injustiça
histórica cometida por certos israelenses ou judeus, isso é de
imediato entendido como uma crítica ao povo judeu ou à sua
religião".
[15]
O Presidente libanês, em pessoa, Émile Lahoud, publica um
comunicado solene indicando que:
"toda a medida que for aplicada contra o Al-Manar atentará contra
os meios de comunicação libaneses e impedi-los-á de
manifestarem os seus pontos de vista perante a opinião pública
francesa e europeia, que tinha começado a compreender, por meio dos
canais de satélite libaneses, a legitimidade da causa árabe e a
denúncia das práticas agressivas de Israel".
[16]
Neste estádio da polémica, torna-se evidente que a
selecção de excertos da série, realizada pelo Estado-maior
das Forças Armadas israelenses é falaciosa. Retiradas do seu
contexto, as cenas parecem
"insuportáveis",
segundo as palavras de Raffarin. Mas repostas no curso da obra, elas
são apenas caricaturais e comparáveis a muitas cenas de
séries anglo-saxónicas, excepto que estas últimas
não denigrem as populações em causa. O argumento de que
esta série lamentável não estava à altura dos
restantes programas do Al-Manar é uma desculpa esfarrapada para a
interrupção da série. A acusação proferida
pelo presidente Lahoud é confirmada por um despacho da AFP no qual se
pode ler com mais franqueza:
"para além da série, as autoridades francesas acusam
também o Al-Manar de fazer a apologia do terrorismo sob a coberta de
militância política contra o Estado de Israel. 'Há uma
linha editorial geral que favorece imensamente a imagem do mártir que se
faz explodir para matar israelenses', explica uma fonte do CSA, juntamente com a
difusão complacente das cerimónias fúnebres dos autores de
atentados, cantos e clips bélicos"
[17]
A única e verdadeira questão é a de saber se o
público europeu pode ou não ter acesso ao ponto de vista
libanês.
Para a defesa das autoridades francesas, deve-se, no entanto, observar que
imagens concebidas para um público do Próximo Oriente, claramente
entendidas por este, podem ser mal interpretadas por um público europeu;
podem até contribuir para a exportação de um conflito do
Próximo Oriente para a Europa. Mas este tipo de problema não
é exclusivo do Al-Manar e está relacionado com todas as imagens
produzidas em zonas de conflito. O problema só poderá ser
resolvido através da educação dos telespectadores adaptada
a um período de mundialização dos canais por
satélite.
São muito raras as organizações que se mobilizam pela
liberdade de expressão, quando esta se aplica aos árabes. A
Réseau Voltaire envia uma delegação ao Líbano para
apoiar o Al-Manar e encontra o sheik Naïm Qassem, secretário-geral
adjunto do Hezbollah.
[18]
Contra todas as expectativas, o Conselho de Estado, longe de interditar o
Al-Manar, contenta-se em exigir que o canal se reorganize em conformidade com a
nova lei. O canal Al-Manar entrega, então, um dossier de acordo junto do
CSA, que não encontrando nenhum motivo de rejeição se
vê obrigado a aceitá-lo
[19]
, para grande descontentamento do CRIF. A associação sionista
protesta lembrando as
"promessas do Primeiro-Ministro",
mostrando assim a consideração que ela própria tem pela
"independência" do CSA e dos juízes administrativos. Com
um humor involuntário, o CRIF estigmatiza as
"pressões estrangeiras"
no dossier.
[20]
Em conformidade com os acordos internacionais, ainda que proveniente do CSA
francês, a autorização de difusão aplica-se a toda a
União Europeia.
Segundo acto: o argumento da perturbação da ordem pública
O antigo primeiro-ministro socialista Laurent Fabius é convidado para o
Fórum da Rádio J, uma estação criada pelo Fundo
Social Judeu unificado e domiciliado nas instalações do CRIF.
Durante o seu tempo de antena, ele declara-se "chocado" e indignado
com a "dupla linguagem" do governo de Raffarin, mostrando a seu turno
a sua alta concepção de "independência" do CSA.
[21]
Colérico, o CRIF publica um novo comunicado:
"A decisão do CSA em estabelecer acordos com o canal de
televisão do Hezbollah, Al-Manar, equivale a uma
autorização oficial, dada pela França, à propaganda
anti-semita. Se o Comité interministerial de luta contra o
anti-semitismo ainda tem um sentido, nunca a sua convocatória foi
tão urgente. Gostaríamos de conhecer a posição do
Presidente da República sobre a situação criada pelo
CSA."
[22]
O Partido Socialista não descansa, e qualifica Al-Manar de
"instrumento de propaganda ao serviço do terrorismo e do
anti-semitismo".
[23]
O seu primeiro secretário, François Hollande, escreve ao CSA:
"Como foram capazes de imaginar que o canal do Hezbollah, que difunde
ciclicamente, durante horas, clips incitando as crianças à raiva
e ao martírio, pudessem reconsiderar por completo programas concebidos
para substituir uma fraseologia incompatível com os valores que fundam a
União Europeia?"
[24]
Enquanto isso, o Centro Simon Wiesenthal, com o seu notório sentido de
medida, afirmava:
"O CSA e os outros oficiais que acordaram ao Hezbollah uma nova
licença para matar (
) serão tidos por
co-responsáveis de todas as consequências violentas que
poderão daí resultar."
[25]
O porta-voz do Partido Socialista, Julien Dray, insinua que a decisão do
CSA poderá ter sido tomada no quadro de uma negociação
relativa à libertação de reféns franceses no
Iraque; uma apetecível amálgama rapidamente retomada por toda a
imprensa.
[26]
Este murmúrio teve os seus efeitos. Em 30 de Novembro, o CSA
reúne-se com o Conselho de Estado por causa da nova lei e por ter
permitido que se difundissem declarações que perturbaram a ordem
pública, e ainda por ter tido falta de honestidade no tratamento da
informação. O canal tinha citado, com efeito, durante uma revista
de imprensa, um artigo em que se afirmava:
"Temos assistido, durante os últimos anos, a tentativas sionistas
de transmitir doenças perigosas, tais como a SIDA, através de
exportações para os países árabes. Esse inimigo
não terá qualquer escrúpulo em cometer actos que atentem a
saúde dos cidadãos árabes e muçulmanos".
[27]
Interpelando o ministro da Comunicação da Assembleia Nacional, o
deputado Rudy Salles, presidente do grupo de amizade parlamentar
França-Israel, retoma o argumento da perturbação da ordem
pública:
"Esse canal transmitiria em árabe, mas também em
francês. Imaginem o efeito que poderiam produzir, nas nossas cidades e
subúrbios, essas mensagens de ódio e violência contra os
judeus".
Ao que o ministro responde que tendo a Assembleia adoptado uma nova lei, ela
tinha de ser aplicada com severidade.
[28]
Mas temendo o desgaste do Conselho de Estado ao deixar-se convencer da
interdição de um canal de televisão por este ter realizado
uma revista de imprensa, o grupo UMP na Assembleia Nacional propõe de
imediato o endurecimento da nova lei.
[29]
No decorrer de uma outra sessão de questões ao governo, o
deputado UMP, Pierre Lellouche, presidente da Assembleia Parlamentar da NATO,
interpela, por seu turno, o ministro da Comunicação nestes
termos:
"O canal Al-Manar pertence ao grupo terrorista do Hezbollah, que esteve na
origem dos atentados da rua de Rennes e das Galeries Lafayette em Paris, em
1985 e 1986, e que raptou diversos cidadãos franceses, nomeadamente
Jean-Paul Kaufmann e Marcel Fontaine. Esse canal difunde quotidianamente apelos
à morte de judeus de Israel e, subsidiariamente, de cristãos.
Há um ano atrás, ele difundiu em França uma série
intitulada Al-Shatat, Diáspora em francês, que, retomando a
propaganda nazi do "Protocolo dos sábios de Sião",
mostrava o conluio judeu mundial ilustrado pela degolação de uma
criança cristã, cujo sangue servia para fabricar bolos
ázimos para a Páscoa judia. Esta série conduziu o
presidente do CSA, Baudis, a reunir a justiça e o procurador da
República no mês de Janeiro passado. Desde essa data, nenhuma
notícia dessa queixa (
). Porque é que nos vemos hoje
chegados ao ponto de fazer acordos com um canal de televisão
terrorista?"
[30]
Uma intervenção que fez sensação em vez de
respeitar a honestidade de informação. Com efeito, nenhum
inquérito judicial ligou alguma vez os atentados de 1985 e 1986 ao
Hezbollah; Jean-Paul Kaufman e Marcel Fontaine foram detidos pela Jihad
islâmica; Al-Manar não apela à morte dos judeus e dos
cristãos, mas antes à luta contra a ocupação
militar e a Colaboração; a série
Diáspora
não se inspira no
Protocolo dos sábios de Sião;
quanto à queixa do CSA, isso não foi senão uma chamada
de atenção ao procurador da República, o qual tinha aberto
uma instrução confiada ao juiz Emmanuelle Ducos que não
encontrou motivo suficiente para a sua prossecução. Pouco
importa, incitado pelos socialistas e pelo UMP, o ministro Renaud Donnedieu de
Vabres exclama:
"Se são necessários meios jurídicos suplementares
[para interditar Al-Manar],
o primeiro-ministro e o governo encarregar-se-ão de os propor".
[31]
Aquando do debate transmitido pela France 3, o vice-presidente da Réseau
Voltaire, Issa El-Ayoubi, contesta perante Pierre Lellouche e sugere que seja
pronunciada uma sanção penal a propósito da série,
se houver razão para isso, mas que não se aplique uma
sanção colectiva de modo arbitrário a toda a
programação do canal. Mas a hora do debate expira e o moderador
põe termo à discussão.
[32]
Já mais ninguém esconde que o objectivo é interditar
Al-Manar para o impedir de difundir os seus boletins de
informação, que se votará não importa que lei for e
que se encontrará não importa que pretexto for para que isso
aconteça. O presidente do CSA, Dominique Baudis, deixa de preservar a
ficção da sua independência e dirige-se para o gabinete do
primeiro-ministro, para acordarem juntos uma solução.
[33]
Á saída dessa reunião, Jean-Pierre Raffarin anuncia a sua
intenção de relançar o processo legislativo passando pela
União Europeia
[34]
e "aconselha" o CSA a rescindir
sine die
o seu acordo com o Al-Manar,
[35]
, suscitando de imediato as felicitações do ministro israelense
dos Negócios Estrangeiros.
[36]
Na sequência destes acontecimentos, o primeiro-ministro recebe uma
delegação do American Jewish Committee (AJC), uma poderosa
organização neoconservadora norte-americana, da qual faz parte
Sharansky, e que trabalha em estreita colaboração com o CRIF. Em
conjunto, eles coordenam uma estratégia
europeia. Num comunicado,
o AJC felicita Raffarin e precisa:
"O Al-Manar e outros canais que difundam mensagens anti-semitas,
anti-americanas e anti-ocidentais, não terão lugar numa Europa
que promove a tolerância, o pluralismo e a paz".
[37]
Para aplicar o golpe de misericórdia, é desencadeado um terceiro
apelo do Conselho de Estado, desta vez, por parte do CRIF por causa da nova
lei.
[38]
Uma emoção viva abala o mundo árabe.
Manifestações e colóquios no Líbano e no Egipto.
Intervenções políticas de todas as frentes, até ao
secretário-geral da Liga Árabe, Amr Moussa.
[39]
O Conselho Nacional libanês do Audiovisual anuncia medidas
recíprocas, ou seja, suprimirá ele também os
privilégios acordados aos meios de comunicação franceses
no Líbano, caso o Al-Manar seja interditado em França.
[40]
Em definitivo, a ordem de interdição do Conselho de Estado
é anunciado no dia 13 de Dezembro de 2004. O canal é interditado,
mas não devido ao anti-semitismo imaginário.
"Ele não teria sido excluído, caso a
reiteração das emissões abertamente contrárias
às disposições do artigo 15 da lei de 30 de Setembro de
1986
[protecção da infância e da adolescência]
não causassem incidentes nefastos na salvaguarda da ordem
pública".
Noutros termos, o canal é censurado porque as
informações que difunde são susceptíveis de
revoltar jovens que perturbariam a ordem pública com os seus actos.
[41]
O ministro israelense dos Negócios Estrangeiros exulta:
"Só nos podemos alegrar com a medida tomada contra esse canal que
difunde discursos de ódio feroz contra os judeus, os cristãos e
os países ocidentais."
[42]
Com todas as ambiguidades a que já nos habituou, a
Associação Repórteres sem Fronteiras (RSF) desaprova o
método empregado contra o Al-Manar para o acusar de difundir
"declarações anti-semitas inaceitáveis".
[43]
Posteriormente, ficámos a saber como a NED/CIA financia essa
associação que se diz defensora da liberdade de imprensa.
[44]
Tecnicamente, para que a Eutelsat cessasse de difundir o canal Al-Manar na
Europa, teria sido necessário cortar simultaneamente Sharjah TV, Quatar
TV, Saudi Arabian TV, Kuwait Space Channel, Jamahirya Satellite Channel, Sudan
TV, Oman TV, e a Egyptian Satellite Channel. Preocupado em não fazer
sofrer aos outros o peso da censura de que era vítima, o Al-Manar
desiste e rescinde os seus contratos.
[45]
Contudo, o canal permanece acessível através da Internet e via
ArabSat 2B a 30.5 graus Este, Badr 3 a 26 graus Este e NileSat 102 a 7 graus
Oeste.
Para tornar pública essa decisão, o Ministério da
Comunicação francês organiza uma campanha denominada
"Viver juntos". As instituições culturais e os meios
audiovisuais públicos transmitem mensagens explicando
que "o ódio e a intolerância não têm direito de
cidadania",
e que por essa razão o Al-Manar foi interditado. Para
edificação dos jovens revoltados, o canal Arte volta a difundir a
série
Holocausto.
[46]
Durante esse tempo, o presidente do UMP, Nicolas Sarkozy, começa uma
tournée triunfal em Israel, onde se encontra com Ariel Sharon e com
numerosos outros responsáveis políticos, e elogia-se a si mesmo,
e ao seu partido, por terem tido um papel central na censura da voz do
Hezbollah.
[47]
Terceiro acto: a generalização da censura
Enquanto a classe dirigente francesa batalhava para fabricar um quadro
jurídico que lhe permitisse censurar o Al-Manar, um processo
idêntico se desenrolava na Austrália por iniciativa do deputado
trabalhista Robert Ray. Este tinha já conseguido a
interdição do satélite TARBS.
A pedido do primeiro-ministro israelense Ariel Sharon, uma célula de
coordenação é criada em Washington com o objectivo de
estender a censura ao mundo inteiro: a Coalition Against Terrorist Media
(CATM). Esta fica sediada nas instalações da Foudation for the
Defense of Democracies, uma poderosa organização sionista.
[48]
A documentação dessa fundação não deixa
dúvidas sobre a finalidade dessa campanha: trata-se de embargar a voz do
Hezbollah na perspectiva de uma intervenção militar no
Líbano. E entre os responsáveis da fundação,
encontram-se os autores do plano de ataque ao Líbano, como por exemplo,
Richard Perle.
[49]
Até aí, os franceses e os australianos não saberiam,
talvez, que crimes estavam a preparar, mas a partir daí nenhum mais os
ignorou.
Transformado em estafeta do Estado-maior das Forças Armadas israelenses,
o governo francês põe em marcha a estratégia acordada com a
American Jewish Committee: ele introduz a questão da censura deste tipo
de canais na ordem do dia do Conselho de Ministros Europeus.
[50]
O dossier é entregue à comissária europeia encarregada da
Sociedade de Informação e dos Media, Viviane Reding. Esta
irá trabalhar em colaboração com o gabinete de Bruxelas
que o antigo presidente checo, Vaclav Havel, abriu para a Foundation for the
Defense of Democracies.
Nos Estados Unidos, o Departamento de Estado inscreve o canal de
televisão na sua lista de "organizações
terroristas".
[51]
Este é o primeiro meio de comunicação social a ser assim
qualificado e, a menos que se considere que as notícias do Al-Manar
são "verdadeiras bombas", não compreendemos o que isso
poderá querer dizer. Seja como for, a Intelsat e a Globecast (uma filial
da France-Télécom) deixam de difundir o canal Al-Manar na
América do Norte.
[52]
Para o antigo Primeiro-Ministro libanês Salim El-Hoss, os Estados Unidos
manipularam todo este caso para interditarem a expressão de um ponto de
vista na Europa e na América.
"Washington qualifica de "terrorismo" o direito à
resistência contra a ocupação israelense, e de
"legítima defesa" o terrorismo israelense e a
usurpação por Israel de uma terra que pertence a um outro
povo",
comenta El-Hoss.
[53]
Em resposta, a maioria das operadoras libanesas por cabo deixam de transmitir
o canal francês TV5.
Em Julho de 2005, é a vez do ministro da Indústria e do
Comércio espanhol de retirar o sinal do Al-Manar do satélite
público Hispasat dirigido à América Latina. Depois, o
Centro Simon Wiesenthal intervém junto do governo francês para que
a Globast (outra filial da France-Télécom) corte o seu sinal
dirigido à Ásia. Em Março de 2006, o Departamento do
Tesouro dos Estados Unidos congela os capitais das sociedades aliadas ao
Al-Manar nos bancos norte-americanos.
Quarto acto: a eliminação física
Em 12 de Julho de 2006, o Hezbollah captura os soldados israelenses durante uma
disputa na zona das quintas de Chaaba. Esse território é
reconhecido como libanês pela comunidade internacional, mas ocupado por
Israel que o considera sírio. Este incidente serve de pretexto a uma
vasta ofensiva militar contra o Líbano. Desde o início das
operações, em 14 de Julho, que a aviação israelense
bombardeia os estúdios do Al-Manar em Beirute para apagar de vez a voz
do Hezbollah.
[54]
O raid faz três feridos graves.
No entanto, a Resistência libanesa continua a emitir em diferido e
intermitentemente a partir de locais mantidos secretos.
[55]
O secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah consegue assim
dirigir-se aos seus concidadãos e dar notícias da guerra. Para
terminar, as Forças israelenses bombardeiam, em 22 de Julho, todas as
estações de difusão de todos os canais do país,
para se certificarem que nenhuma substitui o sinal do Al-Manar
[56]
, mas ainda assim Arabsat continua a emitir.
Por outro lado, Al-Manar continua a ser visível através do seu
sítio na Internet. Como medida de precaução, o Hezbollah
utiliza um servidor na Índia. Mas, servindo-se de uma prerrogativa
governamental, o governo indiano preocupado em não comprometer o seu
recente contrato nuclear com os Estados Unidos, desconectou o sítio a fim
de
"preservar as boas relações com um Estado amigo".
O sítio, todavia, ressurgiu [durante algum tempo] em
http://www.islamicdigest.net/almanar/start.php
Para compreender o que se passa no Líbano e na Palestina ocupada, o
mundo tem de se contentar com a informação das grandes
agências noticiosas submetidas à censura militar israelense.
[57]
Os esforços desenvolvidos, desde há três anos, por Israel
para matar Al-Manar são proporcionais aos crimes que quer esconder.
Notas
[1] "La TV du Hezbollah indésirable au point presse de
Powell", Reuters, 3 mai 2003.
[2] "Un documentaire de la TV du Hezbollah accusé
d'antisémitisme" par Karim Marouni, Reuters, 29 octobre 2003.
[3] "Un feuilleton d'Al-Manar TV accusé
d'antisémitisme",
Le Monde,
6 décembre 2003.
[4] "
Les marionnettistes de Washington
" par Thierry Meyssan,
Voltaire,
13 novembre 2002.
[5] "
Le Carlyle Group, une affaire d'initiés
",
Voltaire,
9 février 2004.
[6] "Le CSA veut empêcher la diffusion d'Al Manar.",
Reuters, et "CSA - M.Baudis dénonce la diffusion par
satellite de "propos intolérables"", AFP, 20
janvier 2004.
[7] A "Jornada nacional do combate contra o anti-semitismo"
foi fixada pelo governo israelense para 27 de Janeiro, data do
aniversário da libertação do campo de extermínio de
Auschwitz.
[8]
"Natan Sharansky, idéologue de la démocratisation forcée"
,
Voltaire,
24 février 2005.
[9] "Israël dénonce une résurgence de
l'antisémitisme" par Marius Schattner, AFP, 27 janvier 2004.
Le montage vidéo de l'état-major a servi de base à la
publication en avril 2004 du DVD
Beacon of Hatred: Inside Hizballah's Al-Manar Television
et d'un livret de retranscription par le The Washington Institute for Near
East Policy.
[10] "Israël veut l'interdiction de diffusion de la TV du
Hezbollah en Europe", AFP, 30 janvier 2004.
[11] "Le gouvernement va interdire les chaînes par satellite
diffusant des programmes antisémites", Associated Press, 31
janvier 2004.
[12] Declaração à imprensa do Ministério dos
Negócios Estrangeiros, 28 de Julho de 2004.
[13] "Soutien de l'audiovisuel libanais à la TV du Hezbollah
poursuivie en France", AFP, 30 juillet 2004.
[14] "Journée de solidarité le 12 août avec la TV
du Hezbollah", AFP, 2 août 2004.
[15] "L'interdiction de la TV du Hezbollah en France est
"politique" (ministre)", AFP, 5 août 2004.
[16] Comunicado da presidência do Líbano, 12 de Agosto de 2004.
[17] "Al-Manar, chaîne ennemie d'Israël qui verse aussi
dans
l'antisémitisme", AFP, 20 août 2004.
[18] "
CSA: le censeur supérieur de l'audiovisuel
",
Voltaire,
20 août 2004.
[19] "Le CSA aurait décidé d'autoriser Al Manar
(presse)", AFP, 18 novembre 2004.
[20] "Feu vert à Al Manar: le Crif dénonce des
"pressions" étrangères", AFP, 22 novembre
2004.
[21] "France/Al Manar-Fabius demande des explications au
gouvernement", Reuters, 21 novembre 2004.
[22] "Al-Manar: déclaration du Président du CRIF
Roger Cukierman", CRIF, 23 novembre 2004.
[23] "Le PS "s'indigne" du feu vert accordé par le
CSA
à la TV Al Manar", AFP, 23 novembre 2004.
[24] "Al Manar: M.Hollande demande des
éclaircissements au CSA", AFP, 26 novembre 2004.
[25] "Protestations de plusieurs associations au feu vert
donné
à Al Manar", AFP, 23 novembre 2004.
[26] Por exemplo, "Bienvenue sur Al-Manar, chaîne
judéophobe",
Libération,
26 de Novembro de 2004.
[27] "Al Manar: le Conseil met la chaîne en demeure et
saisit le Conseil d'État", Comunicado 568 do CSA, 30 de
Novembro de 2004.
[28] Assembleia nacional, 23 de Novembro de 2004.
[29] "Affaire Al-Manar: les députés UMP
souhaitent
renforcer la législation", Associated Press, 30 novembre 2004.
[30] Assembleia nacional, segunda sessão do dia 30 de Novembro de 2004.
[31] Ibid.
[32] Paradoxalmente, este moderador será objecto de uma
condenação penal por ter passado no ecrã
declarações racistas relativas a Dieudonné. Contudo ele
não cessa as suas funções e ninguém manda
interditar o canal público.
[33] "Le président du CSA à Matignon ce mercredi
à
la suite de l'affaire Al Manar", AFP, 1er décembre 2004.
[34] "Images racistes: Raffarin veut renforcer le dispositif
législatif", AFP, 1er décembre 2004.
[35] "Al-Manar/Raffarin - La convention avec le CSA sera
résiliée", Reuters, 2 décembre 2004. Ver
também a resposta de Jean-Pierre Raffarin a uma questão oral do
senador Ladislas Poniatowski, Sénat, 2 décembre 2004.
[36] "Israël félicite Paris pour la résiliation de
la convention avec Al-Manar", AFP, 2 décembre 2004.
[37] "Le Comité juif américain félicite le
premier
ministre français d'avoir suspendu la chaîne TV du
Hezbollah", PR Newswire, 3 décembre 2004.
[38] "CRIF - Al Manar: Le Conseil d'Etat à nouveau
saisi", News Press, 6 décembre 2004.
[39] "Manifestations de solidarité tous azimuts avec
Al-Manar", AFP, 6 décembre 2004.
[40] "Al-Manar: Beyrouth menace les médias
français
de mesures réciproques", AFP, 10 décembre 2004.
[41] Ordenança do juiz dos recursos de 31 de Dezembro de 2004, Conselho
de
Estado nº 274757.
[42] "Israël se félicite de l'interdiction de la
diffusion
d'Al-Manar", AFP, 13 décembre 2004.
[43] "Pour RSF, la méthode employée pour interdire Al
Manar n'est pas la bonne", AFP, 14 décembre 2004.
[44] "
Quand Reporters Sans Frontières couvre la CIA
" par Thierry Meyssan et "
Le financement de Reporters sans frontières par la NED/CIA
" par Diana Barahona et Jeb Sprague,
Voltaire,
25 avril 2005 et 7 août 2006.
[45] "En mettant fin à ses émissions, Al Manar calme le
jeu", AFP, 14 décembre 2004.
[46] "Audiovisuel et culture mobilisés pour promouvoir la
tolérance", AFP, 15 décembre 2004.
[47] "Reçu en Israël en homme d'Etat, M.Sarkozy
s'est
posé en héraut de la lutte contre
l'antisémitisme",
Le Monde,
17 septembre.
[48] "
Les trucages de la Foundation for the Defense of Democracies
",
Voltaire,
2 février 2005.
[49] "
Les néo-conservateurs et la politique du "chaos constructeur"
" par Thierry Meyssan, Voltaire, 25 juillet 2006.
[50] "Al Manar: Paris souhaite que la question soit
abordée au niveau européen", AFP, 14 décembre
2004.
[51] "USA - Al Manar dans le collimateur du département
d'Etat" et "USA-El Manar rangée parmi les
"organisations terroristes"", Reuters, 17 décembre
2004.
[52] "Globecast retire Al Manar de son offre satellitaire aux
Etats-Unis", AFP, 18 décembre 2004.
[53] "Le Liban fustige les mesures de Washington et Paris contre
Al-Manar", AFP, 18 décembre 2004.
[54] "La télévision du Hezbollah touchée par un
raid israélien (Hezbollah)" et "Raid
israélien contre la télévision du Hezbollah: 3
blessés (Hezbollah)", AFP, 13 juillet 2006.
[55] "Al-Manar, la télévision du Hezbollah qui ne veut
pas se taire", AFP, 31 juillet 2006; "La
télévision du Hezbollah émet toujours",
Le Figaro,
1er août 2006; "Al-Manar, la voix du Hezbollah qui
fait écran à Israël" par Jean-Pierre Perrin,
Libération,
4 août 2006.
[56] "Israël impose la loi du silence au Libanais",
AFP, 22 juillet 2006.
[57] "
Les agences de presse occidentales victimes consentantes de la censure militaire israélienne
",
Voltaire,
18 juillet 2006.
Ver também:
A cadeia de televisão Al Manar, a face mediática do Hezbollah
[*]
Jornalista e escritor, presidente da Réseau Voltaire.
O original encontra-se em
http://www.voltairenet.org/article142899.html
Tradução de Rita Maia.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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