O país das oportunidades perdidas
por Jorge Figueiredo
A história de Portugal é a história das oportunidades
perdidas. Já no século XVIII, por exemplo, o ouro vindo do Brasil
não serviu como acumulação primitiva para iniciar um
processo de desenvolvimento: a classe dominante daquela época
desperdiçou-o em
inúteis obras de ostentação e esse recurso desvaneceu-se.
Este desbarato foi antecedido pelo suícidio do seu representante e
ideólogo mais lúcido e brilhante, o Conde da Ericeira.
Logo a seguir a "elite" da época assinava o Tratado de Methween
(1703) que enterrava a industrialização incipiente,
confirmava a sua vassalagem aos interesses britânicos e posicionava-a
como mera intermediária do ouro das Minas Gerais.
Em tempos mais modernos, houve outra grande oportunidade histórica. A
Revolução de Abril criou as potencialidades para um belo projecto
de desenvolvimento que retirasse Portugal do seu atraso secular. Dela nasceu um
poderoso Sector Empresarial do Estado (SEE) que poderia e deveria ter sido o
motor do
desenvolvimento. Com o SEE Portugal tinha controle sobre os seus sectores
fundamentais (energia, banca, cimentos, siderurgia, seguros, estaleiros navais,
etc) e restava um espaço amplo para que o sector privado se expandisse.
No campo, a Reforma Agrária absorvia mão-de-obra e criava uma
dinâmica produtiva tendente à auto-suficiência alimentar.
Mas, mais uma vez, a cupidez da classe dominante destruiu a nova oportunidade
criada. A vitória da contra-revolução deitou tudo por
terra, restabeleceu o domínio do capital
monopolista e arruinou o país.
A contra-revolução portuguesa, capitaneada pelo PS, tratou de
erguer barreiras a novos impulsos revolucionários. Foi por isso que
solicitou a
adesão à União Europeia (1986), aceitando de olhos
fechados todo o
acquis communautaire
, como uma espécie de seguro contra "acidentes"
de percurso. O Tratado de Maastricht
(1992) confirmou e reforçou a submissão ao diktat da Europa
dos monopólios e ao capital financeiro internacional. Seguiu-se a perda
de soberania monetária com a adesão ao euro (2002) e a
Constituição Europeia (2003). Esta, nunca referendada em
Portugal, foi o grilhão final para atar o país de pés e
mãos.
Para nada disto o povo português foi consultado. Nem para a adesão
à UE, nem para o Tratado de Maastricht, nem para a adesão ao euro
e nem para a aprovação da dita Constituição
Europeia. Pior: através dos seus representantes políticos e nos
media ditos "de referência", o capital monopolista e
financeiro português mentiu descaradamente. Prometia desenvolvimento,
abundância e modernidade quando estava a preparar um futuro de atraso,
subdesenvolvimento e servidão pela dívida.
O fracasso do projecto executado pela contra-revolução portuguesa
é hoje gritante. O país foi desindustrializado e está
pior do que em 1975. Sectores inteiros da economia nacional foram
destruídos e nada veio substituí-los. A estagnação
perdura há mais de dez anos.
O desemprego é avassalador, a juventude não tem perspectivas, a
auto-suficiência alimentar foi eliminada (hoje Portugal importa 70% dos
cereais que consome),
instituições científicas nacionais foram desmanteladas, o
aparelho de Estado foi severamente abalado, a economia real definhou. Tudo isso
poderia ser um
case study
para demonstrar e confirmar a
Lei do desenvolvimento desigual
, formulada pela primeira vez por Lénine. A tendência à
polarização, entre países e dentro de um mesmo
país, é inelutável no capitalismo.
No fim de 1974 Portugal tinha uma situação financeira
sólida. Em 31/Dezembro/1974 dispunha de 865.936 kg de ouro nas reservas
do seu banco central. A dívida externa era insignificante. Hoje, os
relatórios anuais do Banco de Portugal já nem se atrevem a
informar o peso das reservas-ouro (em grande parte vendidas ou hipotecadas por
Vitor Constâncio). Quanto à
dívida externa (bruta)
, em 31/Dezembro/2010 montava a 396,5 mil milhões de euros, ou seja,
cerca de 229,4% do PIB. Para comparação: a dívida externa
bruta da Grécia é de "apenas" 187% do PIB.
E AGORA?
O caminho ruinoso a que a classe dominante portuguesa submissa e
dependente do capital financeiro europeu conduziu o país
está à vista de todos. As consequências já se fazem
sentir, de modo dramático. Já se viu que nada daquilo que eles
fizeram correspondia aos interesses do povo português. O nível de
desenvolvimento das forças produtivas do país andou para
trás, hoje Portugal é mais subdesenvolvido do que já foi.
Além disso, com uma considerável dose de cinismo, os
representantes políticos desta classe dominante afirmam que agora
já não
há qualquer saída senão a subordinação
completa e total ao capital financeiro internacional. Querem entregar, inerme, o
povo português à sua sanha. Para isso avolumam-se pressões
gigantescas, por vezes quase histéricas, dos banqueiros daqui e
lá de fora em favor da nova
operação de "resgate" que está a ser tramada
. Ao contrário do que pretende essa barragem de
desinformação, mentiras e meias verdades despejadas todos os dias
em todos os media, é preciso afirmar que, pelo menos
conceptualmente, existe outra saída que não a
escravização total do país no altar do capital financeiro
internacional. Ela não é fácil, mas é
possível. Não é preciso ser marxista para admiti-la, basta
ser responsável, patriótico e ter coragem para olhar
o problema de frente.
A primeira condição para isso é Portugal recuperar a sua
soberania monetária através do abandono do euro. Há quem
defenda reformar a
UE "por dentro" e considere que seria possível o BCE comprar
directamente dívida aos Estados, sem intermediação da
banca. Tal posição não é crível e não
tem pernas para andar: a proibição de o BCE comprar
dívida
aos Estados é estatutária. Para alterar disposições
fundamentais da UE seria preciso ter o acordo dos 27 membros. Assim, a
única opção que resta a um país individual é
o abandono unilateral da zona euro. Os benefícios desta
operação
superam os seus custos face ao futuro sombrio que eles tramam para o
país.
Juridicamente o abandono do euro não obriga ao abandono da UE, mas no
plano
das realidades é praticamente certo que esta ruptura também teria
de verificar-se. Entretanto, ela permitiria a Portugal libertar-se da
espessa teia de submissões a que teve de se vergar nas últimas
décadas. As forças progressistas deveriam combater clara e
frontalmente a UE, tal como já o fazem em relação à
NATO, OMC, Banco Mundial e FMI.
Se a recuperação da soberania monetária é
condição absolutamente necessária, ela não é
no entanto suficiente. Nesse sentido, é preciso considerar
como será emitida a nova moeda nacional que
irá substituir o euro. Seria um erro deixar que a criação
de moeda continuasse a ser feita através do crédito, como
até agora, com o mecanismo perverso da reserva fraccionária. A
alternativa é a sua
emissão pelo Estado tal como propõe Rudo Ruijter
. Dessa forma, o Estado não precisaria pagar juros pelos
empréstimos para financiar-se e, ao mesmo tempo, combater-se-iam as
actuais tendências sistémicas para a inflação e o
endividamento.
Por outro lado, a saída do euro e do mercado comum permitiria proteger a
economia nacional sob múltiplos aspectos. Ex.: livrar-se da actividade
especulativa do capital financeiro internacional, proteger o mercado interno
contra a concorrência predatória, abrir espaço para a
produção nacional, controlar câmbios e movimentos de
capital.
Como medida imediata após a saída do euro seria preciso declarar
uma moratória nos pagamentos da dívida externa (em desafio
à UE, que não a autoriza). O período
da moratória seria utilizado para auditar a dívida com o apoio de
economistas experientes
. É evidente que, também de imediato, teriam de ser
nacionalizados os bancos e as companhias de seguros, como propõe
Jacques Nikonoff
. No caso português, em que os bancos parasitam o
Estado, as empresas e as famílias, isso seria saudável.
Todo este conjunto de acções exigiria uma grande
mobilização popular e patriótica. Durante algum tempo o
país seria declarado a besta negra a ser ostracizada pela comunidade
internacional (eufemismo para capital financeiro internacional). Mas valeria a
pena pois o futuro que eles nos propõem é muito pior como se
verifica nos exemplos actuais da Grécia e da Irlanda. Em contrapartida,
há também o exemplo altamente positivo da
Islândia
. Um povo
que soube mobilizar-se e um Presidente da República digno tiveram a
coragem e a lucidez de dizerem
não
à escravatura que o capital
financeiro mundial lhe queria impor.
A alternativa portanto pode ser concebida. Seria triste que as forças
progressistas portuguesas, por timidez, falta de imaginação ou
possibilismos
, não tivessem a coragem de propô-la e bater-se por ela
inclusive nas próximas eleições.
Mesmo que saiam derrotadas, têm o dever de dizer a
verdade: não há caminho alternativo porque todas as alternativas
são piores como demonstram
as medidas brutais agora sofridas pelos povos grego e irlandês. Hoje
começa a haver um movimento à escala europeia pela
liquidação
das amarras que prendem os povos ao capital financeiro mundial, amarras de que
o euro é instrumento. Meias medidas, como propostas acerca de uma
eventual
renegociação, nada resolvem. O capital financeiro não quer
renegociar nada: ele
dita
as suas condições. A
neo-escravização pela dívida é uma realidade antiga
entre muitos países do Terceiro Mundo. Agora chega a vez dos europeus.
Cedo ou tarde, em Portugal e nos demais países, isso
será compreendido.
Os momentos de crise também podem ser de novas
oportunidades para o avanço das sociedades.
06/Abril/2011
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|