O mito dos biocombustíveis
Nova fase da colonização do Brasil: fornecimento de
biocombustíveis baratos para os EUA
por Edivan Pinto, Marluce Melo
e Maria Luisa Mendonça
[*]
Recentes estudos sobre os impactos causados pelos combustíveis
fósseis contribuíram para colocar o tema dos
biocombustíveis na ordem do dia. Atualmente, a matriz energética
brasileira é composta por petróleo (35%), carvão (23%) e
gás natural (21%). Apenas 10 dos países mais ricos consomem cerca
de 80% da energia produzida no mundo. Entre estes, os Estados Unidos são
responsáveis por 25% da poluição atmosférica.
Analistas estimam que, dentro de 25 anos, a demanda mundial por
petróleo, gás natural e carvão tenha um aumento de 80%.
A aceleração do aquecimento global é um fato que coloca em
risco a vida do planeta
[1]
. Porém, é preciso desmistificar a principal
solução apontada atualmente, difundida através da
propaganda sobre os supostos benefícios dos biocombustíveis. O
conceito de energia "renovável" deve ser discutido a partir de
uma visão mais ampla que considere os efeitos negativos destas fontes.
A propaganda do "combustível verde" ou "energia
limpa" tem sido amplamente difundida no Brasil. "Usados em
substituição aos derivados de petróleo, tanto o etanol
quanto o biodiesel se convertem em ferramentas capazes de deter o aquecimento
global", afirma texto da revista Globo Rural (Novembro, 2006).
Por outro lado, já existem diversos estudos que contradizem essa
idéia. Especialista em genética e bioquímica, a professora
Mae-Wan Ho, da Universidade de Hong Kong, explica que "os
biocombustíveis têm sido propagandeados e considerados
erroneamente como ´neutros em carbono´, como se não
contribuíssem para o efeito estufa na atmosfera; quando são
queimados, o dióxido de carbono que as plantas absorvem quando se
desenvolvem nos campos é devolvido à atmosfera. Ignoram-se assim
os custos das emissões de CO2 e de energia de fertilizantes e pesticidas
utilizados nas colheitas, dos utensílios agrícolas, do
processamento e refinação, do transporte e da infra-estrutura
para distribuição". Para a pesquisadora, os custos extras
de energia e das emissões de carbono são ainda maiores quando os
biocombustíveis são produzidos em um país e exportados
para outro.
Um estudo do Gabinete Belga de Assuntos Científicos mostra resultados
semelhantes. "O biodiesel provoca mais problemas de saúde e
ambientais porque cria uma poluição mais pulverizada, libera mais
poluentes que promovem a destruição da camada de
ozônio".
Sobre a produção de etanol, Mãe-Wan-Ho explica que
"não foi levada em consideração a enorme
liberação de carbono do solo orgânico provocada pela
cultura intensiva de cana-de-açúcar que substitui florestas e
terras de pastagem que, se fossem regeneradas, poupariam mais de sete toneladas
de dióxido de carbono por hectare por ano do que o bioetanol
poupa". Além disso, cada litro de etanol produzido consome cerca de
quatro litros de água, o que representa um risco de maior escassez de
fontes naturais e aqüíferos.
No caso da soja, as estimativas mais otimistas indicam que o saldo de energia
renovável produzido para cada unidade de energia fóssil gasto no
cultivo é de menos de duas unidades. Isso se deve ao alto consumo de
petróleo utilizado em fertilizantes e em máquinas
agrícolas. Além disso, a expansão da soja tem causado
enorme devastação das florestas e do cerrado no Brasil.
Mesmo assim, a soja tem sido apresentada pelo governo brasileiro como principal
cultivo para biodiesel, pelo fato do Brasil ser um dos maiores produtores do
mundo. "A cultura da soja desponta como a jóia da coroa do
agronegócio brasileiro. A soja pode ser considerada a cunha que
permitirá a abertura de mercados de biocombustíveis",
afirmam pesquisadores da Embrapa - Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária. (Revista de Política Agrícola. Ano XIV-
nº. 1 - jan/fev/mar. 2005).
O papel do Brasil
Apesar de não contar com terras agrícolas suficientes para o
aumento da produção, a União Européia estabeleceu
que até 2010 seus países-membros devem adicionar 5,75% de
biodiesel em seu combustível e, até 2015 esta meta seria de 8%.
Porém, diversos analistas estimam que além das dificuldades
práticas de implementação, dificilmente este projeto
alcançaria os objetivos desejados. Segundo a professora Mae-Wan Ho,
"se os 5,6 milhões de hectares de reservas da União
Européia fossem cultivados com plantas energéticas,
pouparíamos apenas de 1,3% a 1,5% das emissões de transportes
rodoviários, ou seja, cerca de 0,3% do total de emissões de 15
países."
O governo dos Estados Unidos oferece incentivos fiscais para que a
indústria aumente o percentual de biodiesel no diesel comum.
Porém, seria necessário utilizar 121% de toda a área
agrícola dos EUA para substituir a demanda atual de combustíveis
fósseis naquele país.
Neste contexto, o papel do Brasil seria fornecer energia barata para
países ricos, o que representa uma nova fase da
colonização. As atuais políticas para o setor são
sustentadas nos mesmos elementos que marcaram a colonização
brasileira: apropriação de território, de bens naturais e
de trabalho, o que representa maior concentração de terra,
água, renda e poder.
Estima-se que mais de 90 milhões de hectares de terras poderiam ser
utilizadas para produzir biocombustíveis. Além disso, a
"eficiência" de nossa produção se deve à
disponibilidade de mão-de-obra barata e até mesmo escrava. Essas
características são difundidas por órgãos
governamentais e por alguns intelectuais, que criam a idéia de que a
produção de agroenergia traria grandes benefícios.
"Nosso país possui a maior extensão de terra do mundo que
ainda pode ser incorporada ao processo produtivo", afirmam pesquisadores
da Embrapa. Eles estimam que a produção de biomassa
"poderá ser o mais importante componente do agronegócio
brasileiro". Em relação à expansão da
produção de etanol, concluem que há a "possibilidade
de expansão da cana-de-açúcar em quase todo o
território nacional".
Atualmente as usinas brasileiras têm capacidade de produzir 800
milhões de litros de biodiesel por ano, utilizados na mistura de 2% ao
diesel comum. A meta estabelecida pelas empresas do setor é chegar a um
bilhão de litros por ano até 2008, quando a previsão
é adicionar 5% ao combustível fóssil.
Análises do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social) indicam este tipo de investimento como prioridade e estimam a
construção de cem usinas até 2010. Em 2004, o banco
investiu R$580 milhões no setor e em 2006, este montante subiu para
R$2,2 mil milhões. O Brasil produz atualmente 17 mil milhões de
litros de álcool por ano. Segundo o BNDES, seriam necessários
mais oito mil milhões de litros somente para atender o mercado interno.
Portanto, o banco prevê que o Brasil deve expandir sua
produção para outros países. Com a pretensão de
controlar 50% do mercado mundial de etanol, o BNDES estima que o Brasil deve
chegar a produzir 110 mil milhões de litros por ano.
"Apenas na região do cerrado, podem ser disponibilizados nos
próximos anos para plantio de grãos mais de 20 milhões de
hectares", revela relatório da Embrapa. No Nordeste, segundo os
pesquisadores, "somente para a mamona há uma área de
três milhões de hectares apta ao cultivo". Eles afirmam ainda
que "A Amazônia brasileira possui o maior potencial para plantio de
dendê no mundo, com área estimada de 70 milhões de
hectares".
Todavia, este produto é conhecido como "diesel do
desmatamento". A produção em massa do óleo de palma
(como é conhecido em outros países) já causou a
devastação de grandes extensões de florestas na
Colômbia, Equador e Indonésia. Na Malásia, maior produtor
mundial de óleo de palma, 87% das florestas foram devastadas.
Além da destruição ambiental e da utilização
de terras agrícolas para a produção de biomassa, há
outros efeitos poluidores neste processo, como a construção de
infraestrutura de transporte e armazenamento, que demandam grande quantidade de
energia. Seria necessário também aumentar o uso de
máquinas agrícolas, de insumos (fertilizantes e
agrotóxicos) e de irrigação para garantir o aumento da
produção.
O Brasil pode também cumprir a missão de legitimar a
política externa do governo estadunidense. Em visita ao Brasil, em
fevereiro de 2007, o subsecretário de Estado, Nicholas Burns, afirmou
que "A pesquisa e o desenvolvimento de biocombustíveis podem ser o
eixo simbólico de uma parceria nova e mais forte entre Brasil e Estados
Unidos". Os dois países controlam 70% da produção
mundial de etanol. Recentemente, em resposta ao impacto deste tema na
sociedade, o governo Bush anunciou que pretende reduzir o consumo de
petróleo em 20%. Segundo Burns, "A energia tende a distorcer o
poder de alguns Estados que nós achamos que têm um peso negativo
no mundo, como a Venezuela e o Irã". (
Folha de S. Paulo,
7 de fevereiro de 2007).
A expansão da produção de bioenergia é de grande
interesse para empresas de organismos geneticamente modificados, que esperam
obter maior aceitação do público se difundirem os produtos
transgênicos como fontes de energia "limpa".
"Todas as empresas que produzem cultivos transgênicos
Syngenta, Monsanto, Dupont, Dow, Bayer, BASF têm investimentos em
cultivos concebidos para a produção de biocombustíveis,
como o etanol e o biodiesel. Têm, além disso, acordos de
colaboração com transnacionais como a Cargill, Archer, Daniel
Midland, Bunge, que dominam o comércio mundial de cereais. Na maioria
dos casos, a investigação está voltada para a
obtenção de novos tipos de manipulação
genética de milho, cana-de-açúcar, soja, dentre outros,
convertendo-os em cultivos não comestíveis, o que aumenta
dramaticamente os riscos que por si sós já implica a
contaminação transgênica", explica Silvia Ribeiro,
investigadora do Grupo ETC do México.
Segundo Eric Holt-Gimenez, coordenador da organização Food First,
"Três grandes empresas (ADM, Cargill e Monsanto) estão
forjando seu império: engenharia genética, processamento e
transporte-uma aliança que vai amarrar a produção e a
venda de etanol. E acrescenta que outras empresas do agronegócio como
Bunge, Sygenta, Bayer e Dupont, aliadas à transnacionais de
petróleo como Shell, TOTAL e British Petroleum, e também à
automotoras como Volkswagen, Peugeot, Citroen, Renault e SAAB, formam uma
parceria inédita visando grandes lucros com biocombustíveis.
O papel da agricultura camponesa
Edna Carmélio, coordenadora de biocombustíveis do
Ministério de Desenvolvimento Agrário, afirma que "A
produção do etanol é concentradora de renda; já a
de biodiesel, mesmo não sendo exclusiva da agricultura familiar, tem
forte componente social".
Experiências como a plantação da mamona por pequenos
agricultores no Nordeste demonstraram o risco de dependência a grandes
empresas agrícolas, que controlam os preços, o processamento e a
distribuição da produção. Os camponeses são
utilizados para dar legitimidade ao agronegócio, através da
distribuição de certificados de "combustível
social".
A expansão da produção de biocombustíveis coloca em
risco a soberania alimentar e pode agravar profundamente o problema da fome no
mundo. No México, por exemplo, o aumento das exportações
de milho para abastecer o mercado de etanol nos Estados Unidos causou um
aumento de 400% no preço do produto, que é a principal fonte de
alimento da população.
Este modelo causa impactos negativos em comunidades camponesas, ribeirinhas,
indígenas e quilombolas, que têm seus territórios
ameaçados pela constante expansão do capital. Silvia Ribeiro
alerta que "agora são os automóveis, não as pessoas,
os que demandam a produção anual de cereais. A quantidade de
grãos que se exige para encher o reservatório de uma camionete
com etanol é suficiente para alimentar uma pessoa durante um ano".
Alguns analistas empresariais até admitem que há problemas
ambientais e risco à produção de alimentos, mas afirmam
que precisamos escolher "o mal menor". Neste caso, defendem
até mesmo a destruição de florestas com o objetivo de
expandir seus lucros com a produção de bioenergia, também
conhecida como "ouro verde".
Na verdade, uma mudança na matriz energética que buscasse
realmente preservar a vida no planeta teria que significar também uma
profunda transformação nos padrões atuais de consumo, no
conceito de "desenvolvimento" e na própria
organização de nossas sociedades. É preciso investir em
alternativas como a energia eólica, solar, fotovoltaica, das
marés, geotérmica. Porém, discutir novas fontes de energia
implica, em primeiro lugar, refletir a serviço de quem estará
esta nova matriz. A construção de uma nova matriz
energética deve levar em conta quem se beneficiará ou qual
propósito servirá.
O modelo agrícola deve estar baseado na agroecologia e na
diversificação da produção. É urgente
resgatar e multiplicar experiências de agricultura camponesa, a partir da
diversidade dos ecosistemas. Existem múltiplas tecnologias e
conhecimentos tradicionais de produção como as agroflorestas,
sistemas agropastoris, integrados e duradouros. Há também
tecnologias e saberes locais de captação, armazenamento, manejo e
usos de água para consumo e produção, que preservam fontes
naturais.
Estas não são soluções simplistas. Tampouco
são suficientes mudanças em atitudes individuais de
"consumidores", como comprar um outro tipo de carro, de
lâmpada, etc. A maior responsabilidade pelo aquecimento global
[1]
é justamente de grandes empresas que destroem as florestas e poluem o
meio ambiente-as mesmas petroleiras, automotivas, agrícolas, entre
outras, que pretendem lucrar com a bioenergia.
22/Fevereiro/2007
[1] Trata-se de um equívoco. O dito aquecimento global, apresentado
como se fosse um facto e não uma teoria, é outro mito muito
difundido. Ver
A impostura do aquecimento global
, de Marcel
Leroux. Mas não é preciso recorrer ao argumento do suposto
aquecimento global para condenar a proliferação dos
biocombustíveis líquidos, cujos efeitos nefastos são bem
assinalados pelos autores. No entanto, eles não se referem
à
vertente mais promissora dos biocombustíveis: os gasosos (biometano,
produzido a partir do biogás). Nota de resistir.info.
[*]
Edivan Pinto e Marluce Melo são membros da Comissão Pastoral da
Terra Regional Nordeste - CPT NE. Maria Luisa Mendonça é membro
da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
O original encontra-se em
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/analise/o-mito-dos-biocombustiveis
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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